Uma lei em fraude é inexistente


Todas as leis devem ser bem discutidas e bem votadas. Todas as leis devem resultar, na Assembleia da República, de um processo apropriado, conforme à Constituição. E, por maioria de razão, uma lei como a votada na sexta-feira, 13 de Abril, com a sensibilidade humana da lei sobre identidade de género, deveria ter particular cuidado processual.

As normas do processo legislativo não existem por acaso. Existem para garantir o debate profundo e transparente, como é essencial à democracia representativa, e assegurar a formação da vontade livre e informada de todos os decisores (os deputados), bem como a sua manifestação igualmente livre e informada. Tenho criticado práticas negativas parlamentares em que se tem decaído. Esta lei bateu o recorde: conjugou três práticas inaceitáveis, geradoras de inconstitucionalidade formal da lei e mesmo inexistência jurídica.

O processo de elaboração das leis, depois de iniciado, tem duas fases: generalidade e especialidade. E um momento final: votação final global. É o que resulta da Constituição e não pode ser destruído, nem mascarado. A fase da generalidade aprecia as linhas gerais da proposta, a doutrina, os propósitos. Termina pela aprovação ou reprovação, na generalidade. Se foi tudo reprovado, acaba aí. Se houve textos aprovados na generalidade, passam à fase da especialidade, que os examina artigo a artigo, aceitando sugestões e procurando melhorar. A votação final global é a votação de aprovação ou reprovação do diploma, sendo frequente haver diferença entre a votação na generalidade e a final global, por causa das emendas entretanto introduzidas na especialidade. Esta sequência – pausada – é essencial à dignidade e à transparência do processo legislativo.

Desde há alguns anos, a Assembleia da República ora por normas regimentais insuficientemente claras, ora por habilidosas interpretações de conjugação de normas, adoptou um procedimento profundamente irregular que torpedeia a limpidez constitucional do processo, contra que protestei algumas vezes. Os povos do Norte chamar-lhe-iam o procedimento de almôndega; os povos do Sul, o procedimento de açorda. Em que consiste?

No final do debate na generalidade, em plenário, emerge uma combinação política para não se votarem os textos, mas um requerimento para os baixar de novo à comissão, sem votação, para reapreciação dentro de determinado prazo. É dito que o requerimento não tem importância e é meramente formal, não envolvendo a substância, o que leva a que usualmente a “formalidadezinha” seja engolida e votada por unanimidade. A seguir, os projectos são remetidos para uma saleta (subcomissão ou grupo de trabalho) para conveniente mastigação fabril. Apesar de não terem sido votados, os projectos ficam a marinar largos meses na salinha de laboração, desenvolvendo-se objectivamente o respectivo trabalho na “especialidade” como se tivessem passado na generalidade. Ao fim destes meses de laboratório, se a coisa teve sucesso, é adoptado um “texto de substituição”, que a comissão parlamentar confirma, enviando para plenário para se proceder de uma vezada, consecutivamente, às votações na generalidade, na especialidade e final global, assim ratificando, por sumaríssimas carimbadelas gerais, a engenhosa produção da fabriqueta.

Foi o que se passou com esta lei da autodeterminação da identidade de género. A 20 de Setembro de 2017, o debate na generalidade de três textos (BE, PAN e Governo) foi interrompido sem votação, pelo tal inocente requerimento da praxe. Mergulhou na salinha fabril, marinando na subcomissão durante seis meses e meio até 6 de Abril de 2017. Esta trabalhou na “especialidade” os textos que o plenário não votou, tomando como referência a proposta de lei do governo. E assim produziu, convenientemente amassado, o novo espécime “texto de substituição”, que, devidamente apessoado, foi passado à comissão.

Não tenho dúvida de que esta prática é inconstitucional. Determina inconstitucionalidade formal dos diplomas assim contruídos e aprovados. Na verdade, se os textos baixam à comissão sem votação na generalidade, das duas, uma: ou morrem aí, por falta de condições políticas; ou, findo o prazo fixado, têm de regressar a plenário, para encerrar o debate na generalidade e se efectuar a respectiva votação. Não se pode realizar trabalho na especialidade sobre um diploma que não tenha sido previamente aprovado na generalidade. E, se de negociações parlamentares resultou um texto novo, este deve abrir um novo processo legislativo, subscrito por quem for o caso. Assim é que deve ser. Mas só o Tribunal Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade formal, se a questão lhe for posta por quem de direito, juntando os factos de cada caso, pois há variações culinárias consoante o tempo e o modo da manipulação.

Além da questão jurídica, esta é também uma questão política e de primeira grandeza. As normas processuais têm uma função de garantia, sendo sobretudo garantia das minorias. As maiorias não precisam tanto de garantias – têm o poder e a força. As minorias necessitam mais do direito e das regras. É inexplicável – e muito reprovável – que minorias consintam e colaborem no desenvolvimento destas práticas parlamentares “simplificadoras”. Ainda que votem contra as leis, acabam por colaborar paradoxalmente na sua confecção e adopção. O primeiro direito e o dever das minorias é o respeito exemplar do processo, já que o processo não está lá para seu uso e desfrute, mas para garantia dos eleitores que representam.

Neste caso concreto, houve outras irregularidades menores. E mais duas, gravíssimas e fatais.

A 1ª Comissão aprovou, a 11 de Abril, o chamado “texto de substituição”. Mas o relatório levado a plenário não indica sequer quem o aprovou. Indica como foram rejeitados dois artigos, por empate: a favor PS, BE e PEV; contra PSD e CDS-PP; abstenção PCP. Mas é omitido quem aprovou o projecto levado a plenário. Presumindo que PS, BE e PEV mantiveram o voto a favor, quem mais votou a favor ou passou a abster-se para viabilizar a aprovação? O PCP? O PSD? O CDS-PP? Há que conhecer. Não pode deixar de ser publicado, até porque essa é a votação de “autoria”.

Pior: pelo registo das votações de empate, vê-se que foram contados os votos não dos participantes na votação, mas o total dos grupos parlamentares, como se fosse uma votação virtual. Isto é irregular e determina a inexistência da votação e da deliberação. Só vota quem vota. Não se pode contar votos de ausentes e até não membros da comissão.

A fechar, o mesmo vício ecoou no plenário a 13 de Abril, como o PÚBLICO relatou: “A contabilização dos votos foi feita globalmente por bancada, contando com o número total dos deputados eleitos e não com os realmente presentes no plenário da Assembleia da República nesta sexta-feira.” De novo: isto é profundamente irregular e determina a inexistência da votação e do diploma. Não se pode fantasiar votações. A Assembleia é constituída por 230 deputados e não por grupos. Não se contam deputados-fantasma, mas só os presentes e participantes. Esta prática é uma perigosa violação da Constituição, um atropelo da democracia representativa, uma ofensa aos eleitores.

É gravíssimo que a Casa das Leis viole princípios gerais de direito e consinta na manipulação do processo legislativo. Faz muito dano a si mesma; e marca um terrível paradigma para todo o país. Não nos admiremos se, nas assembleias autárquicas e até associativas, passarem a presumir-se e contar-se os votos dos ausentes. Dir-se-á: “Na Assembleia da República faz-se assim.” É a sementeira da desordem. Se esta votação ocorresse num dia após o falecimento de um deputado ainda não substituído, lá teríamos os mortos a votar em São Bento – e duas vezes: primeiro, em comissão, depois em plenário. Creio que nem em ditadura tal coisa se passou.

Há que pôr um travão; e repor a normalidade do processo legislativo democrático. É preciso defender a democracia e proteger a sua qualidade. Lei aprovada em fraude não existe. Sendo inexistente, não pode ser publicada. Tem de fazer caminho desde o início.


José Ribeiro e Castro
Advogado e ex-líder do CDS

PÚBLICO, 18.Abril.2018

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