As eleições locais em Angola e a questão do gradualismo
A conferência de Maio passado, organizada pela CASA-CE, sobre a activação das autarquias locais em Angola, foi muito marcada pela questão do gradualismo, tema que marca o debate angolano desde há meses, entre o gradualismo territorial (ou geográfico) e o gradualismo funcional. O primeiro levaria a que a democracia autárquica não fosse já implantada em todo o país, mas apenas numa parte dele, a definir, com ampliações sucessivas em cada futura eleição – é este "gradualismo" que suscita a principal polémica. O segundo consiste em as atribuições e competências dos órgãos autárquicos eleitos serem definidas de forma progressiva ao longo do tempo – o que não suscita tanta polémica em termos de princípio, tudo dependendo naturalmente da legislação.
Começo por dizer que, estudando a Constituição angolana, encontro um outro gradualismo, o que talvez possa lançar um pouco mais de luz na controvérsia. É o que, lendo o artigo 218º, designo de gradualismo institucional. Na verdade, este preceito prevê que, além da organização dos Municípios como autarquias (n.º 1), que arrancarão agora, poderá haver autarquias supramunicipais (n.º 2) e autarquias inframunicipais (n.º 3), conforme a lei definir no futuro. Na experiência portuguesa, há semelhanças: temos autarquias inframunicipais (freguesias), que foram implantadas ao mesmo tempo que os municípios democráticos; e autarquias supramunicipais (regiões administrativas), que continuam a aguardar. O gradualismo institucional é isto: o legislador pode decidir não implantar ao mesmo tempo todas as categorias de autarquias, activando agora apenas um dos patamares (municípios) e deixando para mais tarde as restantes, na construção gradual de um modelo completo de Administração descentralizada. E também quanto ao gradualismo funcional, podemos descortiná-lo em Portugal, ainda que sem previsão expressa e sem grande consciência de um processo planeado como gradual: a legislação autárquica portuguesa tem evoluído nos últimos quarenta anos, ampliando-se a cada reforma o elenco de atribuições, competências e poderes das autarquias, assim como os respectivos meios financeiros.
É isso que me leva a pensar que o chamado gradualismo territorial não tem cabimento constitucional em Angola, mas apenas o gradualismo institucional e o funcional, tal como em Portugal. O artigo 242.º da Constituição angolana, que enuncia o princípio do gradualismo, identifica as duas grandes áreas de sua incidência: por um lado, na “oportunidade da sua criação” (isto é, criação das três categorias autárquicas apontadas no artigo 218º – gradualismo institucional); e, por outro, quanto ao “alargamento gradual das suas atribuições, o doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais” (matérias compreendidas no gradualismo funcional).
Compreende-se bem que a Constituição não pensasse no gradualismo territorial ou geográfico: uma coisa é democratizar os Municípios, mas deixar para mais tarde fazê-lo quanto a Províncias, Comunas, Distritos ou outras entidades que a lei entenda criar acima e abaixo dos Municípios (gradualismo institucional); mas outra completamente diferente seria avançar para a democratização dos Municípios, fazendo-o quanto a uns e não quanto a outros. Penso que isto contenderia com os princípios de organização do território (art. 5º, nº 3) e do Estado unitário (art. 8º), conjugados com o princípio da igualdade (art. 23º, nº 1): “Todos são iguais perante a Constituição e a lei.” Como é evidente, não seriam iguais perante a Constituição e a lei os cidadãos angolanos que vivessem em municípios com democracia local e os que vivessem noutros sem democracia local.
Acredito que seria grave erro não avançar para Municípios democráticos em todo o país, em 2020. Toda a experiência portuguesa aconselha fortemente contra a ideia de fasear a democratização municipal. A experiência cabo-verdiana também. Só conheço o caso de Moçambique, como exemplo desse “gradualismo” geográfico, mas os resultados são maus – Moçambique estaria muito melhor, se tivesse seguido o exemplo de Cabo Verde e outros. Há modos de ajustar o figurino e proporcionar apoio a municípios com condições mais frágeis, sem prejudicar o princípio da eleição democrática dos seus órgãos em todo o país. Além de que deixá-los para trás propende a agravar as desigualdades, em vez de favorecer a coesão.
As eleições autárquicas de 2020 podem ser um impulso enorme para o futuro de Angola. Enraizando a democracia em proximidade por todo o país, podem ser um segundo momento de reconciliação nacional após o histórico 4 de Abril, partilhado agora em todos os recantos. Gerando uma malha administrativa descentralizada e democrática, aproximam o Estado e a cidadania como nunca aconteceu. Isto dará um extraordinário impulso para novo reencontro do país inteiro. E, sobretudo, é factor indispensável para a tão ansiada diversificação da economia.
Há demasiados anos que Angola prossegue esse desígnio: diversificar a economia. Todos o sabem: é decisivo para a prosperidade da sociedade e do povo. Ouvi-o pela primeira vez ao Eng.º José Severino, presidente da AIA, em 2002, numa visita pelo Parlamento Europeu. Foi impossível não concordar com ele. Depois, ouvi este mote vezes sem conta: sempre apontado, sempre adiado. O Presidente da República João Lourenço pô-lo novamente no eixo da agenda nacional, no discurso de posse, em Setembro de 2017. Afirmou: “é imperioso levar à prática a palavra de ordem da diversificação da economia e do combate às assimetrias regionais.”
Ora, este eixo da agenda nacional é claramente gémeo da municipalização democrática integral. Além das tentações e da inércia gorda da economia extractiva, há uma razão para a incapacidade em diversificar a economia: é a centralização do aparelho administrativo. Sem descentralização efectiva em todo o território, é uma quimera pensar que se consegue diversificar a economia. A economia segue sempre os pólos de poder de decisão. Os recursos e capacidades das várias regiões do país jamais terão sérias oportunidades de desenvolvimento se os municípios não dispuserem de capacidades adequadas de decisão própria, descentralizada e desconcentrada, no quadro das leis e das políticas nacionais.
Por isso, acredito sinceramente que Angola não pode, não deve perder esta oportunidade extraordinária que serão as eleições locais de 2020. Diversificar exige descentralizar - são irmãos.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-eurodeputado, antigo líder do CDS
Advogado, ex-eurodeputado, antigo líder do CDS
O PAÍS (Angola), 18.Junho.2018
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