Eleições locais em Angola: a etapa de ouro do futuro
Defendo há
muitos anos que as eleições locais são as que mais falta fazem a Angola. Se
pode haver alguma reserva, é a de que vêm tarde. Angola estaria hoje muitíssimo
melhor, se já tivesse podido realizá-las em todo o país – não tenho sobre isso
a mais pequena dúvida. Tenho-o dito e escrito várias vezes e olho com muita
esperança para 2020. Por isso, há um mês, participei com muita alegria na conferência “Autarquias locais, caminho para
o desenvolvimento dos Municípios”, iniciativa do grupo parlamentar da
CASA-CE. Foi uma honra partilhar com colegas e irmãos angolanos a muito rica
experiência portuguesa.
Foi vivo o
debate sobre o “gradualismo”, questão que marca as discussões desde há meses.
Por um lado, fala-se em gradualismo
funcional, que consistiria em as atribuições e competências dos órgãos
autárquicos eleitos serem definidas de forma progressiva ao longo do tempo. E,
por outro, em gradualismo geográfico (ou territorial), segundo o qual a
democracia autárquica não seria já implantada em todo o país, mas apenas numa
parte dele (a definir), com ampliações sucessivas em futuras eleições. Quanto
ao primeiro (funcional), podemos achar alguma similitude na experiência
portuguesa, embora não num processo planeado como gradual: a legislação
autárquica evoluiu nos últimos quarenta anos, ampliando-se a cada reforma o
elenco de atribuições, competências e poderes das autarquias, assim como os
meios financeiros. Já quanto ao segundo (geográfico), não há paralelo em
Portugal: municípios e freguesias arrancaram todos ao mesmo tempo, em 1976; e
mesmo as regiões administrativas, que ainda aguardam, têm constitucionalmente que
ser instituídas em simultâneo.
Estudando a
Constituição angolana, não vejo traço do gradualismo
geográfico. Mas encontro um outro, que designo de gradualismo institucional, à luz do artigo 218º da Constituição. Na
verdade, este preceito prevê que, além da organização autárquica dos Municípios
(n.º 1), que arrancará em 2020, possa também haver autarquias supramunicipais
(n.º 2) e autarquias inframunicipais (n.º 3), conforme a lei definir no futuro.
Em Portugal, há semelhanças: há autarquias inframunicipais (freguesias),
implantadas junto com os municípios; e autarquias supramunicipais (regiões
administrativas), que ainda esperam. O gradualismo
institucional é isto: o legislador pode decidir não implantar ao mesmo
tempo todas as categorias de autarquias, mas activar, primeiro, um dos
patamares institucionais (Municípios) e, na construção gradual do edifício de
uma Administração descentralizada, deixar outros para mais tarde.
Esta leitura leva-me
a pensar que o gradualismo geográfico
não tem cabimento constitucional, mas apenas os gradualismos institucional e funcional.
O artigo 242.º da Constituição angolana, que enuncia o princípio do
gradualismo, fixa as duas áreas de incidência: por um lado, quanto à “oportunidade da sua criação” (isto é, recordemos,
a criação das categorias apontadas no artigo 218º – gradualismo institucional); e, por outro, quanto ao “alargamento gradual das suas atribuições, o
doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade entre a administração local
do Estado e as autarquias locais” (isto é, matérias compreendidas no gradualismo funcional).
Por mim, compreendo
bem que a Constituição não pensasse no gradualismo
geográfico: uma coisa é democratizar os Municípios, mas deixar para mais
tarde a democratização de Províncias, Comunas, Distritos ou outras entidades
que a lei crie, acima e abaixo dos Municípios (gradualismo institucional); outra coisa completamente diferente
seria avançar para a democratização dos Municípios, fazendo-o só quanto a uns e
não quanto a outros. Há formas de adequar o figurino e proporcionar apoio a
Municípios com condições mais frágeis, sem prejudicar o princípio da eleição
democrática dos seus órgãos. E deixá-los para trás conduz a agravar as
desigualdades, em vez de favorecer a coesão. Isto seria, ainda, susceptível de contender
com os princípios que regem a organização do território (art. 5º, nº 3) e o
Estado unitário (art. 8º), conjugados com o princípio da igualdade (art. 23º,
nº 1): “Todos são iguais perante a
Constituição e a lei.” Na verdade, como parece evidente, não seriam iguais
perante a Constituição e a lei os cidadãos angolanos que vivessem em Municípios
com democracia local e os que vivessem noutros sem democracia local.
Penso que
seria grave erro não avançar para Municípios democráticos em todo o país, em
2020. Toda a experiência portuguesa aconselha fortemente contra a ideia de
fasear a democratização dos Municípios. A experiência cabo-verdiana também. E
só conheço o caso de Moçambique, como exemplo desse “gradualismo” geográfico;
mas os resultados são maus e fracos – Moçambique estaria muito melhor, se
tivesse seguido o exemplo de Cabo Verde e outros.
As autárquicas
de 2020 podem ser forte impulso para o futuro de Angola. Enraizando a
democracia em proximidade por todo o país, podem ser um segundo momento de
reconciliação nacional após o histórico 4 de Abril, partilhado agora em todos
os recantos. Gerando uma malha administrativa descentralizada e democrática,
aproximam o Estado e a cidadania como nunca aconteceu. Operam novo reencontro
do país. E são condição indispensável para a ansiada diversificação da
economia.
Há demasiados
anos que Angola prossegue esse desígnio: diversificar a economia. É decisivo para
a prosperidade da sociedade e do povo. Ouvi-o pela primeira vez ao Eng.º José
Severino, presidente da AIA, em 2002, numa visita pelo Parlamento Europeu. Ouvi-o,
depois, vezes sem conta: sempre apontado, sempre adiado. O Presidente João
Lourenço pô-lo novamente no eixo da agenda nacional no discurso de posse, em
2017: “é imperioso levar à prática a
palavra de ordem da diversificação da economia e do combate às assimetrias
regionais.” Será a hora?
Este eixo da
agenda nacional é gémeo da municipalização democrática por todo o país. Além
das tentações e da inércia gorda da economia extractiva, há uma razão para a
incapacidade na diversificação da economia: é a centralização do aparelho
administrativo. Sem descentralização efectiva em todo o território, é ilusão
pensar que se vai diversificar a economia. A economia acompanha os pólos de
poder de decisão. Os recursos e capacidades das várias regiões nunca terão
sérias oportunidades de desenvolvimento se não houver capacidades adequadas de
decisão própria, descentralizada e desconcentrada, no quadro das leis e das
políticas nacionais.
Por isso,
acredito sinceramente que Angola não pode, não deve perder esta oportunidade
extraordinária que serão as eleições locais de 2020. É muito importante que
todo o país, a sociedade, os partidos agarrem já este horizonte e comecem já a
definir candidaturas e programas mínimos, Município e Município, começando pelo
mais simples e essencial: em Portugal, por exemplo, os municípios logo responderam
às carências no abastecimento de água ao domicílio e no saneamento básico. E é
fundamental formar e apresentar já candidatos, que as populações possam ir
conhecendo. O êxito destas eleições exige rostos e mãos, braços e coração. Não
são abstractas; são as eleições mais concretas que há. Podem ser também uma
oportunidade para regresso ao interior de muitos que a guerra empurrou para
Luanda e o litoral; ou ocasião de retorno dos filhos, para ajudarem a reconstruir
e desenvolver a terra de seus pais.
Há muito que
acredito que Angola tem todas as condições para ascender a um lugar liderante
em África e no Atlântico Sul através da ousada consolidação da democracia, se
decidir atingir (e, se for possível, superar) o grau de desenvolvimento das
instituições políticas de Cabo Verde, exemplo referencial no continente
africano. Estas eleições locais são a oportunidade para um grande passo em
frente. Para o país e para a sociedade. Para a democracia e para a economia.
Para a confiança e para o desenvolvimento. É a hora.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-eurodeputado, antigo líder do CDS
VANGUARDA (Angola), 22.Junho.2018
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