Eleições locais: selo da paz, tronco da democracia
Em meados de Maio, participei em Angola na conferência “Autarquias locais, caminho para o desenvolvimento dos Municípios”, uma iniciativa do grupo parlamentar da CASA-CE, a terceira força política angolana. O Presidente João Lourenço, no discurso ao Conselho da República em que, em Março passado, anunciou as primeiras eleições autárquicas para 2020, frisou expressamente “a necessidade de um amplo debate ao nível da sociedade angolana à volta deste assunto que afecta a vida dos cidadãos, com vista a alcançar-se o máximo de consenso possível.” A coligação política liderada por Abel Chivukuvuku foi a primeira bancada parlamentar a responder à chamada do chefe do Estado e líder do executivo.
A conferência correu muito bem ao longo de dois dias, com painéis de muita qualidade, que permitiram o aprofundamento do tema, incluindo contributos de partidos angolanos (UNITA, CASA-CE, PRS e FNLA), da sociedade civil e dirigentes religiosos e de quadros de outros países (Cabo Verde, Moçambique e Portugal). Todos partilharam visões e experiências, bem como, quanto aos participantes nacionais angolanos, expectativas e preocupações. Foi pena o MPLA, presente na abertura, não ter participado no painel dos partidos, nem, a partir da plateia, nos ricos e animados debates que os painéis proporcionaram. A assistência era um público interessado e conhecedor, proveniente de todo o território, sendo plural e diversificado, mas predominando naturalmente quadros e dirigentes da coligação organizadora, a CASA-CE.
Deu-me muita alegria participar e partilhar com os meus colegas e irmãos angolanos a muito rica experiência portuguesa, tanto mais que, de há muitos anos, defendo que as eleições locais são as eleições que mais falta fazem em Angola. Tenho-o dito e escrito várias vezes e olho com muita esperança para 2020 e depois. Desejo muito que corra muito bem – e em toda Angola.
A partir da experiência portuguesa – e do ponto de observação que constitui – habituei-me a ver nas eleições locais as eleições-pilar para enraizar e consolidar da democracia. Além da extraordinária importância que têm, na teoria política e na ciência da Administração, enquanto garantia da proximidade do Estado e instrumento de auto-governo das populações em tudo o que são necessidades básicas e os interesses mais próximos, as eleições locais são as únicas que verdadeiramente regam de democracia todo o país. Por estas eleições, não vamos apenas lá abaixo pôr umas questões aos cidadãos para, depois, tudo voltar para o Poder Central: Presidente, Governo, Assembleia. Não. Nas eleições locais, vamos lá abaixo pôr questões aos cidadãos e, depois, os órgãos que estes escolhem e elegem ficam a trabalhar próximos deles.
Se pode ter-se alguma reserva quanto às eleições locais em Angola, é a de que vêm tarde. Angola estaria hoje muitíssimo melhor, se tivesse podido realizá-las mais cedo e em todo o país. Não tenho sobre isto a mais pequena dúvida.
É evidente que a longa guerra civil é explicação suficiente para que não pudessem acontecer até 2002. Mas, a partir daqui e sobretudo depois da estabilização, creio que as eleições locais poderiam ter sido feitas – ou, pelo menos, começado a ser feitas experimentalmente. E, já na vigência da Constituição de 2010, cada ano que passou foi um ano que se perdeu.
A memória dura da guerra civil e o rasto que deixou são até, a meu ver, razões adicionais para a importância das eleições locais. Nas eleições nacionais de 2008 e 2012, foi sensível uma acentuada crispação entre os principais contendores. Embora em menor grau, isso ainda aflorou em 2017. Isto é, apesar da paz de 2002, há uma longa história de combates entre grandes actores da política nacional. Ora, as eleições locais e a democracia local a que dão lugar proporcionam um contexto completamente diferente, que favorece a descrispação da política e a normalização do ambiente. O exclusivo do confronto nacional cava e cristaliza trincheiras; a democracia local proporciona distensão e um clima cooperativo. Tende a ser assim em todo o mundo.
Portugal vive essa experiência desde 1976, o que muito ajudou à rápida consolidação da democracia. Cabo Verde tem vivido a mesma experiência brilhante, tendo realizado em 2016 já as sétimas eleições autárquicas em todo o país após o multipartidarismo aberto em 1990 – o exemplo extraordinário que é a democracia em Cabo Verde encontra na democracia local a fonte mais radiosa da sua vitalidade. Algo semelhante vemos em São Tomé e Príncipe. E, em Moçambique, onde se têm feito eleições locais apenas numas partes do território e não noutras, temos, ao invés, a evidência do erro e das limitações desta metodologia parcelar. O processo, aliás, entupiu – e, com isso, entupiu também o desenvolvimento democrático de Moçambique, além de a desigualdade contribuir para um país mais fraco e a diferentes velocidades.
A lição a tirar é esta: os países com implantação precoce e simultânea da democracia local em todo o território colhem significativas vantagens para os seus povos, no plano da proximidade da Administração, da respiração da democracia, da qualidade do ambiente político e social e do grau de satisfação da cidadania. Por isso, perante o dilema “democracia local, sim ou não”, não devemos ter medo de fazer; devemos ter medo de não fazer. Por cada passo que dermos a menos, pior.
Há muito que acredito e defendo que Angola tem todas as condições para ascender a um lugar liderante em África e no Atlântico Sul através da ousada consolidação da democracia, se decidir atingir (e, se for possível, superar) o grau de desenvolvimento das instituições políticas de Cabo Verde, exemplo referencial no continente africano. Estas eleições locais de 2020 são a oportunidade para um grande passo em frente. Para o país e para a sociedade. Para a democracia e para a economia. Para a confiança e para o desenvolvimento. A meu ver, é a hora.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-eurodeputado, antigo líder do CDS
O PAÍS (Angola), 16.Junho.2018
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