Os artistas
Quando entrei na actividade política em 1974, no princípio do Partido do Centro Democrático Social, não ia tratar da minha vida, mas da vida de Portugal, da vida de todos, da vida dos outros nas ideias a que eu pertencia. Tinha 20 anos, o 25 de Abril mudara o país, a revolução acelerava a caminho da PREC. Só por absoluta estupidez alguém iria cuidar da sua vida no CDS. Nem eu, nem ninguém estava no CDS para tratar de si. Todos estavam por uma ideia, um chamamento cívico urgente, algum grau de idealismo.
Isto que era verdade no meu universo, creio que era verdade para todos, mesmo para aqueles com posição mais confortável, até de preponderância, na maré da revolução. Na minha observação, foi assim. À esquerda, ao centro ou à direita, as ideias eram muito diferentes, às vezes até opostas, mas o espírito tendia a ser o mesmo: todos militavam para servir. Os tempos, aliás, não eram apropriados a quem quer que seja aspirar a servir-se do que quer que fosse. Tudo era instável, tudo era efémero, tudo era incerto.
Este espírito de fundo marcou uma geração de políticos na nossa democracia. Uma geração das duas ou três gerações que viveram intensamente esses anos. E uma geração de cores diferentes: todos os que, em diferentes correntes políticas, deram o passo em frente nessa altura, respondendo à chamada.
Esse clima durou até à estabilização democrática, a meio da década de 1980. Além da estabilização, que passou a atrair pessoas com perspectivas de carreira, houve dois outros factos que marcaram essa mudança: a entrada na CEE e a primeira maioria absoluta monopartidária (Cavaco Silva, PSD). A partir daqui – 1986, 1987 –, o espírito da entrada na política passou a ser marcado por postos e pelas lutas e jogos de poder – entendendo o “poder” não como poder realizar (ao abrigo de ideias, programas ou valores), mas como poder dispor (ao abrigo de interesses e ambições pessoais). O poder norteado por ideias tende a ser guiado por uma determinada ideia de Bem Comum e, portanto, um desígnio fundamentalmente generoso. O poder norteado por interesses derrapa facilmente para longe do Bem Comum, sentando-se no colo do interesse pessoal ou de grupo.
É aqui que o problema da escolha se torna mais crítica. Enquanto o ambiente é todo coração, patriotismo, vibração cívica, ideal, paixão genuína, a tutela directa pelos eleitores quanto aos indivíduos que os representam pode não parecer tão importante. O ambiente geral dos partidos é marcado por uma grande generosidade, que naturalmente atrai os generosos e afasta os que o não são. Aos eleitores, chega-lhes escolher entre as diferentes correntes políticas, pois tenderão a ser bem servidos, seja qual for o sector. Mas deixa de ser assim onde a política roda para o império dos interesses: o eleitor corre cada vez mais o risco de levar gato por lebre.
Dentro dos partidos mais ligados ao poder e ao seu exercício, o clima e a dinâmica também foram mudando. Formam-se tribos internas, para conquista de posições. E, depois, para repartição de benefícios e influências ou na perspectiva dessa repartição. O exercício partidário torna-se cada vez mais marcado e entrincheirado. Um líder ganha, arregimentando determinados apoios, que logo ficam conhecidos como os respectivos “istas”. Estes consolidam as partes do aparelho que já dominavam e tentam ocupar tudo o resto. O debate político interno deixa de ser aberto e franco, para se tornar fortemente condicionado. E, aproximando-se as eleições, as escolhas dominantes para as listas são feitas para consolidar o “poder” dos “istas” triunfantes, com uma ou outra concessão que embeleze a imagem plural. O serviço dos eleitores é critério que pesa pouco – e, se fizermos esta pergunta, até são capazes de se admirar com a pergunta.
Este modo de funcionamento da política guiada por interesses e posições é um modo eminentemente intestino e teatral. As escolhas internas do partido são norteadas, única e exclusivamente, por posições de “poder” e controlo do acesso ao “poder” ou da sua detenção. E o discurso público é esvaziado de convicções, tendendo a escolher (até de modo fragmentário) linhas que sirvam a capacidade de atrair alguns segmentos de voto pelos chamados “nichos” ou de alimentar o espectáculo do debate político, interpretado como zaragata.
Os grupos de candidatos aparentam ser representantes de grandes cobertores e vastas memórias, treinados na ocupação do espaço a que o respectivo partido pertence ou aspira. Salvo quando o discurso resvala para um dos temas que alimentem a zaragata ou a picardia do quotidiano, é raro ouvir sustentar de forma genuína o que quer que seja que tenha a aparência de uma convicção. Evoluíram para o modo profissional dos advogados: atendem quem vier ao cartório. Tornam-se artistas na representação vaga da “direita”, da “esquerda”, do “centro”, na evocação solene de ideias gerais, na convocação dos “nichos” de ocasião. A arte passou a ser essa: representação no sentido teatral, não representação no sentido político.
É por isso que não é de estranhar que as legislaturas passem, uma atrás doutra, e reformas essenciais sejam negligenciadas e fiquem sempre por fazer. Ao longo de décadas até. E não é que sejam esquecidas: elas são lembradas, e são faladas, mas não são feitas, nem cumpridas. É por isso também, com tantos problemas que vemos a acumular-se, que é muito difícil conseguirmos lembrar-nos de quando foi a última vez que ouvimos um líder político, um dirigente, a transmitir uma ideia de Portugal, a sua visão da Europa, uma leitura do mundo, do tempo, da sociedade, das pessoas. Porquê? Porque as convicções foram arredadas. Porque ter visão foi desprezado. Porque o foco no Bem Comum foi atirado para o lixo. Porque sentido de servir foi posto em último plano.
A intervenção do eleitor na escolha democrática dos deputados é absolutamente crucial neste contexto. Só a acção directa dos eleitores pode corrigir a viciação do funcionamento interno dos partidos e restituir substância política ao elenco dos candidatos e dos eleitos. O sistema de eleição proporcional personalizada, que temos defendido na esteira do artigo 149º da Constituição, opera esse “milagre”, através da conjugação dos círculos uninominais e das listas plurinominais. Os deputados em que nós votamos individualmente têm dificuldade em ser fingidores: por um lado, estão sujeitos a escrutínio mais próximo; por outro, se traírem a confiança, nunca mais a receberão de novo. Esses candidatos uninominais contagiam de modo positivo o espírito da formação das listas plurinominais e podem também integrá-las. Ou seja, salvamos o sistema eleitoral proporcional.
Nunca voltaremos para o espírito “heróico” dos primeiros anos da democracia. Não é possível, nem desejável. Por outras palavras, temos que lidar com os interesses ao lado dos ideais. Faz parte da vida. O que é importante é termos aprendido com a experiência e rectificarmos o sistema por forma a dotá-lo mais de valores e ideias e menos de servilismo e espírito interesseiro. Os partidos são indispensáveis, mas temos de libertar a escolha pelo eleitorado do império dos jogos partidários. Não há mal nas carreiras políticas, desde que regidas pelo eleitorado e não pelo circuito fechado dos chefes e cliques: carreiras abertas, transparentes, democráticas. Os deputados são representantes dos eleitores: é isso que temos que repor, se queremos verdade e Bem Comum a presidir à política em Portugal.
José Ribeiro e Castro
Advogado, antigo líder do CDS
JORNAL "I", 20.Junho.2018
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