A Disneylei
A Disneylândia é um parque de diversões, em diferentes lugares do mundo. Já a Disneylei acontece na manhã de sexta-feira, no plenário da Assembleia da República. Aí será discutido o projecto de lei do PAN para proibir as touradas em Portugal, após outros ataques do mesmo partido, do BE e do PEV, perseguindo touradas e toiros no nosso país.
Devo dizer que não sou aficionado. Vejo touradas, mas não viajo para ver uma corrida de toiros. Não sou especialista. Não me verão a dissertar sobre a matéria – sei não ter competência. Mas sou um aficionado dos aficionados, compreendo a sua cultura, respeito a sua arte, defendo a sua liberdade. Indigna-me, revolta-me a tentativa de imposição de uma visão fanática contra um grupo de pessoas e, para todos os efeitos, uma tradição cultural.
Há uns anos, ainda no Parlamento Europeu, a delegação espanhola convidou-me para uma sessão de defesa da tauromaquia contra uma tentativa de proibição, votada em Outubro de 2006 em Bruxelas. O orador principal da sessão, uma grande figura da tauromaquia espanhola, culpou, meio a rir, Walt Disney, convocando “Ferdinando, o Touro”, um filmezinho de animação de 1938, baseado num livro infantil. Ainda novilho, Ferdinando preferia sentir o cheiro das flores a marrar contra as vacas. Um dia, já grande, quando vieram escolher o touro para a corrida, Ferdinando sentou-se por acaso em cima de uma abelha, que o picou. Com a dor, desatou a correr, enraivecido, aparentando formidável bravura. Os homens escolheram-no. Mas, quando chega à praça, Ferdinando só é atraído pelo ramo de flores que uma espectadora lançou ao toureiro.
Nunca percebi se, ao convocar a história do doce Ferdinando, um touro que fala, o orador culpava Walt Disney ironicamente ou a sério. A verdade é que o filme logo ganhou o Óscar para a melhor curta-metragem de animação. E o orador seguiu dissertando sobre a influência que os desenhos animados, contendo a humanização aparente dos animais, animais que falam, animais que exprimem os nossos sentimentos e emoções, exercem na cultura popular, sobretudo em meio urbano. Por isso, em memória dessa sessão, vejo este projecto como uma Disneylei.
A iniciativa do PAN, porém, como outras do Bloco e do PEV, nada têm da doçura suave de Ferdinando. São iniciativas intrinsecamente carregadas de fascismo, mostras de pura brutalidade política, bolçando intolerância por todos os poros e querendo impor tirania cultural pelo braço musculado do Estado e pela força coerciva da lei.
Compreendo bem que haja quem não goste de touradas, assim como compreendo que haja quem goste. Os que gostam não devem impô-las aos que não gostam; e os que não gostam têm bom remédio: não ver. Mas este movimento mobilizou-se, assanhado, contra os que gostam, insultando-os na sua sensibilidade, ofendendo-os na dignidade e querendo esmagá-los na sua liberdade. Isto é intolerável. É a negação da sociedade de liberdade que dizemos ser. É a recusa da sociedade de liberdade que dizemos querer ser.
Escandaliza o descaramento de estes movimentos, provindo dos que se dizem herdeiros do Maio de 68, não hesitarem em espezinhar o emblemático “É proibido proibir.” Quando agarram um pedacinho de poder, aí estão eles a saltar a pés juntos sobre os outros, para proibir o que não é de seu gosto.
O espírito autoritário do projecto de lei fica bem realçado na Exposição de Motivos, ao invocar, como referência, o Concílio de Trento (1545-1563) e, logo a seguir, a Bula "Salute Gregis Dominici" (1567), em que o Papa Pio V, conta o PAN, “condenava à excomunhão todos os católicos que (…) participassem [nas touradas] ou a ela[s] assistissem, decretando ainda que não fosse dada sepultura eclesiástica aos católicos que morressem na sequência de qualquer espectáculo taurino.” Fico à espera de futuras iniciativas em que PAN, BE ou PEV citem trechos da Inquisição para fundamentar as medidas que preconizam.
O olhar totalitário sobre a cultura e a visão centralista do Estado que ressumam do projecto do PAN revelam-se neste trecho preambular: “não é demais referir que, dos 308 municípios do país, apenas 44 têm atividade taurina, i.e., 14,8%.” O PAN não se dá conta de que 44 municípios é imenso? Que fosse um só! Que fosse só Barrancos. Não tem direito de guardar as suas tradições e cultura? Esse povo tem que ser esmagado por meia dúzia de iluminados?
É errada a ideia de unicidade cultural que irradia deste projecto e doutros similares. Escreve o PAN: “A identidade de um povo cria-se a partir do que é pertença comum e não daquilo que nos divide, pelo que forçar a identidade tauromáquica à população portuguesa é ofensivo e contraproducente para uma desejada unidade nacional.”
Não, não é assim. A identidade de um povo faz-se do que é plural e diferente, não do que é único. E a unidade nacional faz-se da tolerância e da compreensão, da capacidade para abraçar e incluir, do conhecimento e do respeito pelo que é plural e diferente. Por outro lado, as touradas não dividem ninguém. As touradas só dividem os intolerantes dos demais. E aqueles, os intolerantes que carregam dentro de si o fascismo cultural, não podem ser levados a sério, não podem triunfar. Têm todo o direito a não gostar, mas não podem proibir, nem perseguir.
O mirandês diz respeito somente a um município: Miranda do Douro. E faz parte, como é evidente, do património cultural português. Em altíssimo grau, aliás – apesar de quase todos nem o sabermos falar. A viola campaniça toca-se em três concelhos: Odemira, Ourique e Castro Verde. E não faz parte da nossa identidade nacional? Claro que faz! Os chocalhos de Alcáçovas até foram declarados Património Cultural Imaterial da Humanidade. E nem são sequer de um município. São de uma simples freguesia (Alcáçovas) de um concelho (Viana do Alentejo).
As touradas são uma manifestação cultural do mundo rural, uma expressão tradicional do mundo rural ligado à criação de gado e dos touros. São um costume emergente das suas gentes e da sua história popular, que merecem mais respeito por parte do diletantismo urbano e dos seus pedantes, a tresandar de superioridade. É o mundo rural, e não a cidade, que melhor conhece os animais, mais os cuida e melhor os trata. Não é a cultura do canário na gaiola, do gato na marquise, do cão na varanda, do peixinho no aquário, do papagaio amarrado ao poleiro, que pode dar qualquer espécie de lições ao mundo rural sobre como lidar com os animais.
O mundo rural (como o mundo marinho) é o mais próximo da ordem natural das coisas, em que é mais estreita e genuína a relação entre o homem (e a mulher também, bem entendido) e os animais, consoante as suas espécies. Há animais de trabalho, animais de companhia, animais de guarda, animais de caça e outros para serem caçados, animais domésticos e animais selvagens. Há animais que comemos e outros que nem pensar nisso. Lembro-me, na minha juventude, dos documentários maravilhosos de Félix Rodríguez de la Fuente, um grande naturalista espanhol. Lembro-me das suas narrativas espantosas sobre a vida animal na ordem natural. Lembro-me da sua extrema beleza e também da sua brutalidade. A natureza não é apenas prriu-piu-piu, nem as florezinhas que deliciavam Ferdinando, no desenho animado.
Onde espreita a maior soberba da ameaça do PAN é na parte em que descreve o alegado “declínio acentuado” do espectáculo tauromáquico, para justificar a proibição imediata por imperativo da lei, explicando que o desemprego provocado seria “residual” (sic). Os proibicionistas não se satisfazem com o alegado declínio das touradas. Podiam vislumbrar o fim quando acabassem. Mas não. Querem proibir pela violência do Estado. E buscam votos, acicatando o ódio aos que pensam e sentem diferente.
O PAN publica o número oficial (IGAC) de 377.952 espectadores no ano de 2017, que compara com 681.140 (IGAC) ou 311.900 (INE), em 2010. Mas, mesmo seguindo os cálculos apertados do PAN, para colocar em apenas 200.000 os espectadores de touradas em 2017, a verdade é que, ainda assim, são quase o triplo dos eleitores do PAN – teve 75.140 votos, em 2015. Seria esta circunstância justificação para proibir o PAN?
A ideologia destas ofensivas filia-se no “anti-especismo”, que equipara os animais – os “animais não-humanos” – ao homem (e à mulher, bem entendido), gerando infinitas perplexidades e intermináveis problemas. Sem prejuízo do respeito que devemos ter pelos animais, a nossa relação com eles não é uniforme, sendo definida pela cultura e pelos costumes. Não é uniforme relativamente a todos os animais, nem é uniforme para todos os povos ou todas as pessoas. Nós fazemos touradas, mas a vaca é sagrada para os indianos. Não nos passaria pela cabeça comer cães, mas outros fazem-no. Idem quanto a insectos vários. Por cá, a maioria pela-se por caracóis, mas muitos se enojarão. Não há sinal de aflição pela forma como morre o bacalhau pescado ou a sardinha, apanhada em cardumes nas redes. Para a formiga trabalhadora, que, como o touro Ferdinando, também falava nas fábulas de Esopo e La Fontaine, o frequente é buscarmos o insecticida mais eficaz, apto a provocar formigocídio massivo e fulminante. O Pato Donald não nos apoquenta quando nos deliciamos com um arroz de pato. Já o Rato Mickey, outra criação de Disney, não corre o risco de acabar em arroz, mas tem de fugir de paulada, veneno ou ratoeira. E a cobra é geralmente detestada, mais do que apenas temida, assim se justificando toda a sorte de violências para a eliminarmos. Não será a cobra senciente? E o rato ou o pato? E a sardinha ou o bacalhau?
O pior da ideologia do projecto é a forma como distrata e ofende os que gostam de touradas ou nelas participam. O slogan do PAN, na promoção pública da iniciativa, fala por si: “Tortura não é cultura”. É preciso indignarmo-nos. A tourada não é um espectáculo de tortura.
Gostemos ou não dela, a tourada é um combate entre um indivíduo e um animal bravo que tem seis a dez vezes mais o seu peso. No modo português, o indivíduo monta a cavalo e, no final, um grupo a pé e de mãos nuas procura pegar e imobilizar o animal. Mesmo tendo a tourada momentos violentos, como é próprio dos combates, nenhum actor está ali para torturar e nenhum espectador está ali a babar-se como um sádico. Basta olhar para as pessoas e suas expressões ao longo de uma tourada para tomar consciência da enormidade caluniadora daquele insulto. O que o espectador está a apreciar é um ritual de coragem, uma lide de bravura e virilidade, um bailado de toureiro e toiro ou de cavaleiro, cavalo e toiro e o triunfo final da pega, com arte, destemor e força de braços. Quem fala em tortura insulta e calunia; e sabe que insulta e calunia. Não há demagogia, nem populismo que o possam atenuar ou desculpar.
O animal mais fascinante que conheci foi uma osga: a osga que é o narrador num livro magnífico de José Eduardo Agualusa, “O Vendedor de Passados”. Também tive, uma vez, uma companhia assim. Era uma barata, a Carlota. Fez-me companhia várias vezes à noite, em 2014, quando, depois das reuniões da Assembleia Municipal de Odemira, ficava lá a dormir na casa que foi de meus avós. No quarto grande, que fora o dos meus pais, a Carlota apareceu sempre, pontualmente, madrugada já entrada, todas as noites que lá dormi nesse ano. Grandes conversas tivemos. Mandou cumprimentos para Lisboa, via WhatsUp. Mas, apesar desta amizade, se, no Verão, a minha mulher se cruzasse com ela na sala, na cozinha ou na dispensa e desatasse a gritar – há uma inimizade inata entre mulheres e baratas, não sei se recíproca -, eu não teria remédio senão esmagá-la com o sapato, esquecido de poder ser a Carlota. De facto, em 2015, já lá não estava nas minhas noites solitárias em Odemira. Mas não foi violência minha, antes certamente fim do seu ciclo de vida, que é curto.
A Carlota foi real, mas as conversas pura fantasia. Como fantasia é a fantástica osga de Agualusa. Fantasia é o simpático touro pacifista, o Ferdinando, como todas as figuras de Disney, dos desenhos animados e das fábulas. Fantasia é fazer de conta que o touro é pessoa. Fantasia é, com base nessa fantasia, olhar as pessoas como menos que os animais, insultando-as na sua cultura e procurando esmagá-la. Fantasia é ignorar que a cultura contém, entre outros elementos, o código definidor do nosso relacionamento com os animais, conforme as suas espécies e os nossos costumes.
Por isso, o projecto do PAN é uma violência. E, em rigor, inconstitucional. Diz o artigo 78º, n.º 1: “Todos têm o direito à criação e fruição cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural.” Não passará!
José Ribeiro e Castro
Advogado, antigo líder do CDS
OBSERVADOR, 4.Julho.2018
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ResponderEliminarArtigo muito bem escrito e desenvolvido, com coerência e com a razão que faz, ou deveria fazer, parte do indivíduo. É necessário no mundo actual vozes que equilibrem o apetite voraz de relegar o ser humano para segundo plano. Deixemos ao tempo o desenvolvimento cultural?! Não! Certamente conduzirá ao declínio de várias artes, entre elas a touromaquia, que com certeza não acabará de todo. Deveria ser uma imposição legislativa apoiar a cultura em toda a amplitude por forma a combater o vazio populismo e demagogo que nos entra pelo televisor. Ao circo o que é do circo (e também o circo é cultura e forma de vida) ao parlamento o que é do parlamento...
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