Borba – a responsabilidade do Estado


Em Cabo Verde, na Ilha de Santo Antão, há uma estrada fabulosa: a Estrada da Corda. Construída nos anos 1960, é uma notável obra da engenharia portuguesa: uma estrada basáltica, ligando Ribeira Grande a Porto Novo, que atravessa a ilha de Norte a Sul, a 1.500 metros de altitude, ao longo de mais de 30 quilómetros que são uma obra de arte.

É uma estrada para fazer devagar, quer pelo prazer inesquecível das vistas fantásticas, quer pelo perigo frequente. A estrada corre pelos picos e cumeadas das montanhas vulcânicas de Santo Antão, sendo vários – e às vezes extensos – os troços em que a estrada, com as suas curvas, segue uma estreita linha de cumeadas, com precipícios profundos à esquerda e à direita.

Admira como foi possível construí-la, com a limitada tecnologia de então, acertando no percurso exacto naquela sinuosa linha de cumeadas irregulares, sem encostas que pudessem ser alternativa. A estrada merece ser classificada como património mundial e preservada. Só uma palavra a define: notável.

Já a EM 255, de Borba, que matou cinco pessoas em 19 de Novembro, não merece tal distinção. E, todavia, o troço que ruiu e outros similares também eram bordejados por precipícios abruptos. A estrada de Borba, a merecer algum prémio, será o Prémio Mundial da Asneira, o Colar de Alumínio da Irresponsabilidade.



É enorme a diferença entre fazer estradas para vencer precipícios e barreiras naturais ou construir precipícios ao lado de estradas que os não tinham. É uma diferença de engenheira – entre a boa e a péssima – e de Administração e política – entre as diligentes e as levianas.

O que mais surpreende na discussão sobre se a responsabilidade do desastre de Borba foi da Câmara Municipal ou do Estado é esta palavrinha “ou”. A disjuntiva não faz sentido.

Quanto à da Câmara, pareceu mais fácil apurá-la: a estrada fora municipalizada há 13 anos, passando a ser municipais as responsabilidades de gestão e manutenção. Para mais, apurou-se que a Câmara fora advertida para o perigo em 2014 e nada fez para cortar a circulação.

Porém, isto não encerra o problema, nem trata sequer do principal: o precipício louco colado às bermas da EM 255 em vários troços, de um lado e do outro, conforme imagens que arrepiam só de as olhar, não é um precipício natural; foi um precipício construído com repetidas autorizações administrativas ou grosseira falta de fiscalização. A actividade das pedreiras não era clandestina. O Estado não pode afastar a participação e colaboração, no mínimo negligente, na criação de um perigo infelizmente mortal. O perigo foi construído – não estava lá.

Por isso é que o Estado não pode lavar as mãos, usando a Câmara como lavabo. Até serem esclarecidos vários pontos, creio que o Estado é o principal responsável, senão único.



Creio que não há leis que permitam criar precipícios sem cautelas, nomeadamente em zonas adjacentes a vias de circulação. Creio haver leis que proíbem a criação de um tal perigo. Se estas leis não existem ou o que existe são leis erradas, a responsabilidade é inteirinha do Estado – porque é o Estado o legislador. E essas leis, permissivas ou cúmplices, têm que ser mudadas. Já!

A exploração de pedreiras está sujeita a apertado regime de licenciamento, envolvendo autorizações administrativas e fiscalização permanente. Importa saber, ao longo de décadas, como foram os processos administrativos dos organismos que permitiram a criação daquele grau de perigosidade nas bermas daquela estrada, sem respeito pelas faixas de protecção.

Mesmo o argumento da municipalização da estrada pode ser falacioso. Se há 13 anos, quando foi feita a transferência, a estrada já tinha aqueles precipícios, a responsabilidade será toda do Estado: não a devia ter transferido, mas encerrado. A transferência de um bem em muito mau estado não alivia a responsabilidade do Estado, antes a agravará.

Enfim, o Estado mantém o dever de seguimento, para que tem as capacidades técnicas que o município (recebedor) não tinha, nem tem. O dever principal de encerrar a estrada não era do município, mas das Direcções-Gerais. O encerramento não era ditado por uma razão de gestão, ou para passar uma procissão ou um cortejo. Era por causa de um perigo público grave. Aqui, a competência é do Estado: verificar o perigo; e agir, de imediato, em conformidade.

Foi o Estado que falhou: como legislador, como administrador, como fiscalizador. Cabe apurar em que medida. Para que não se repita.


José Ribeiro e Castro
Advogado

MAIS ALENTEJO, 1.Fevereiro.2019
Crónicas "AQUÉM-GUADIANA"




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