O assunto de Estado Américo Sebastião
Ontem e hoje de manhã, muito ouvi perguntar: “O que é isso aí, na sala? Quem está aí?” Parecia aquela cena do “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, “Romeiro, quem és tu?” É Américo Sebastião – ele mesmo, ali presente em todas as salas de cada uma das reuniões e das conversas desta visita oficial a Portugal do Presidente da República de Moçambique, Filipe Nyusi.
Em 29 de Julho de 2016, de manhã cedo, Américo António Melro Sebastião foi raptado em Nhamapaza, distrito de Maringué, província de Sofala, Moçambique. Américo Sebastião é um cidadão português com actividade empresarial em Moçambique desde 2001. O rapto ocorreu num posto de combustível. Segundo testemunhas oculares, os autores do rapto estavam fardados e transportaram-no numa carrinha de marca Mahindra, de cor cinzenta, veículo frequentemente utilizado pelas forças de segurança moçambicanas. Desde esse dia, apesar de contínuas diligências junto das autoridades moçambicanas, além de responsáveis portugueses e entidades internacionais, a família de Américo Sebastião nunca mais teve qualquer contacto com ele, nem informação segura a seu respeito, desconhecendo o seu paradeiro e estado de saúde. As autoridades moçambicanas não aceitaram até ao momento a oferta da cooperação portuguesa nas investigações, apesar de ter sido oferecida por diversas vezes, a última das quais já neste ano – foi rejeitada mais uma vez em Abril. Até à presente data, mais nenhuma notícia há sobre Américo Sebastião.
Pelas evidências do primeiro dia da visita oficial do Presidente Nyusi, parecia haver instruções de que não responderia a jornalistas. Não havendo perguntas, não teria de haver respostas.
Acredito, porém, que o nosso Presidente da República, o nosso Presidente da Assembleia da República o nosso Primeiro-Ministro e os nossos deputados não deixaram de colocar logo, pessoalmente, ao Presidente Nyusi as perguntas óbvias quanto ao caso Américo Sebastião e sua investigação. Acredito que, assim perguntado, o Presidente da República de Moçambique terá dado, em privado, as respostas necessárias. As respostas não podem deixar de ser muito boas, para gerarem e ampliarem o ambiente caloroso, de alegria e confiança mútua, que pudemos ver. A opinião pública certamente virá a conhecer essas notícias positivas, dadas em privado.
O desaparecimento de Américo Sebastião, em boa verdade, fá-lo aparecer – presente – em todo o lado. Não é possível ignorá-lo. Pode estar tudo calado, mas é por causa da força da sua presença. Podem fingir que não sabem ou que não vêem, mas é porque sabem e vêem.
Nas honras militares na Praça do Império, nas homenagens nos Jerónimos ao túmulo de Camões, no encontro entre os dois Presidentes em Belém, na visita à Assembleia da República, no jantar oficial no Palácio da Ajuda, no encontro a sós com o Primeiro-Ministro, no Fórum de Negócios Portugal/Moçambique (com tantos empresários, como ele), na IV Cimeira Portugal-Moçambique, esteve lá sempre.
Alguém pode pensar que era um elefante na sala. Não era. É mesmo Américo Sebastião. Os mais atentos viram-no bem. Quinta e sexta-feira, poderá ser visto no Fórum Euro-África e na Câmara Municipal de Viseu, bem perto do Presidente Filipe Nyusi, o Presidente da República do país onde vive, investiu e tanto trabalhou, o chefe do Estado a quem confiou a sua guarda. Como outros empresários, estará lá. Quanto mais for calado, mais será visto.
Não me surpreendeu, por isso, inteiramente, que, no segundo dia, o Presidente da República de Moçambique, na conferência de imprensa que encerrou a IV Cimeira Portugal-Moçambique, não pudesse evitar responder a perguntas sobre Américo Sebastião. Fundamentalmente, afirmou quatro coisas. Primeiro, que “esse não é um assunto de Estado, pelo menos pela parte de Moçambique”. Segundo, que é “um caso concreto que o Governo moçambicano, através dos serviços de Justiça e segurança, tudo fez para que fosse esclarecido, até ao momento sem sucesso.” Terceiro, que “coisas como essas em Moçambique, durante os 16 anos que tivemos de conflitos, acontecem muito”. Quarto, que o desaparecimento de um cidadão é um problema da “estabilidade de um país”, sendo “preocupação número um” perceber porque é que um cidadão residente em Moçambique desaparece.
É verdade que este terrível caso humano é um problema da estabilidade do país e é bom saber que o Estado moçambicano terá o seu cabal esclarecimento como preocupação número um. Já é duvidoso empurrá-lo para a responsabilidade difusa dos 16 anos de conflitos – não há outro caso como o de Américo Sebastião; e a verdade tem sempre de apurar-se. As peripécias e insuficiências do processo foram tantas que também não pode dizer-se que os serviços de justiça e segurança fizeram tudo. Não fizeram. O que já é bem verdade é que não tiveram sucesso. Também não fizeram o que parece evidente face às dificuldades e ao insucesso: acolher de boa vontade a cooperação policial e judiciária, oferecida por Portugal. Por último, o caso Américo Sebastião é nitidamente um assunto de Estado, porque contende com segurança e Justiça, competências fundamentais de qualquer Estado. É, aliás, de modo incontornável, assunto de Estado dos dois Estados: da República de Moçambique e da República Portuguesa.
Repesco, aqui, ecos da III Cimeira Moçambique-Portugal, realizada há um ano, em Maputo. Pelos jornais, soubemos que, em 2018, os dois governos “congratularam-se” pela “crescente interacção entre delegações ministeriais”, tendo assinado acordos e memorandos de cooperação em áreas nomeadas nas conclusões. E destacaram “os progressos conseguidos na negociação de instrumentos para assinatura futura, designadamente nos domínios das Finanças, Administração Estatal e Função Pública, Justiça, Saúde e Assuntos do Mar.” Estes auspícios na área da Justiça são muito importantes para Américo Sebastião. Tenho curiosidade em saber se, nesta IV Cimeira, em Lisboa, foi assinado algum acordo que garanta fluidez na cooperação judiciária e policial entre os dois países, sobretudo quando estejam em causa, como vítimas, nacionais de qualquer um. Não é possível continuarmos a assistir, impávidos, à inoperância investigatória no rapto de Américo Sebastião, com bloqueio por Moçambique da cooperação portuguesa – a inversa também seria inadmissível. Este bloqueio não é próprio do nosso tempo, não se adequa ao quadro humanitário e é impróprio de relações entre países amigos e povos irmãos no espaço CPLP.
Quero o melhor para Moçambique e os moçambicanos. A primeira vez que visitei Moçambique foi em 1993, pouco depois do Acordo Geral de Paz de 1992 e por causa deste. Era dirigente da TVI, que arrancava. Tínhamos organizado um grande projecto de solidariedade, imaginado e coordenado pelo Rui Marques – fantástico, como outros da sua lavra. No fim da guerra, após a paz Frelimo/Renamo, as crianças portuguesas foram sensibilizadas, escola a escola, para oferecerem, cada uma, um quilo de arroz (a que se acrescentou, mais tarde, um livro) às crianças moçambicanas, minorando as carências. Foi uma movimentação extraordinária e com vasta logística, para recolher toneladas de ofertas, as contentorizar, transportar por comboio até Leixões e fretar dois navios que levaram a carga. Fui designado para acompanhar a entrega em Maputo e aí resolver as últimas dificuldades burocráticas. Anos mais tarde, pelo Parlamento Europeu, voltei mais duas vezes, num contexto de aprofundamento da democracia.
Torço por que Nyusi e Momade concluam em breve os instrumentos de estabelecimento definitivo da paz efectiva e duradoura em Moçambique. Comovo-me com o sofrimento causado pelos ciclones Idai e Kenneth e apoio todos os gestos de resposta solidária, ao lado e com os moçambicanos. Indigno-me contra os ataques mortíferos sobre povoações em Cabo Delgado, matando cruelmente tanta gente, e sou favorável, se Moçambique o quiser, a uma acção de cooperação militar portuguesa ou da GNR, capaz de conter e erradicar esta ameaça. Apoio o desenvolvimento da democracia a todos os níveis e sigo com atenção as eleições moçambicanas – de novo, dentro de meses. Desejo a consolidação das instituições democráticas e do modelo do Estado de direito. Quero a melhor cooperação económica e cultural entre os dois países, contribuindo para o progresso mais acelerado de Moçambique e o combate à pobreza. Quero relações abertas e fraternas, sem embaraços, nem “irritantes”, entre os dois povos e os dois países. Mas quero saber o que aconteceu a Américo Sebastião e que ele seja devolvido aos seus.
Recentemente, a propósito doutro caso muito chocante, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, fixou a boa doutrina internacional nesta matéria: os “desaparecimentos sem responsabilização” não podem ser tornados no “novo normal”. É esta a linha que importa seguir.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 3.Julho. 2019
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