Nem embuste, nem recado - apenas cidadania e democracia
Francisco Louçã escreveu, na semana passada, no EXPRESSO, uma crítica a António Costa e às propostas de reforma eleitoral que o PS renova para as próximas eleições. Não tenho procuração. Mas o texto de Louçã atinge também a compreensão do modelo eleitoral que, pela sociedade civil (SEDES e APDQ), temos defendido para Portugal: queremos eleger deputados, não só os partidos. O nosso projecto ponderou a proposta de lei do governo PS em 1998. Ambos dão expressão ao caminho aberto pelo artigo 149º da Constituição.
Francisco Louçã afasta-se da realidade do que são os sistemas mistos de representação proporcional personalizada. Sem quebra do respeito devido, segue ideias feitas (muito correntes, mas nada verdadeiras) e trata a expressão “círculos uninominais” como papão.
A reforma (PS ou nossa) não consiste em “implantar círculos uninominais”, mas em introduzir, em complemento, círculos uninominais (dentro dos plurinominais). Não há “desmantelamento do sistema eleitoral”, mas aperfeiçoamento. O sistema, previsto na Constituição, mantém-se proporcional e o Parlamento continua a ter composição conforme à proporção da votação nas listas plurinominais de partido. Os uninominais permitem escolher deputados que são eleitos dentro da quota proporcional do respectivo partido.
Com o sistema misto plurinominal/uninominal, este escrito de Louçã nunca aconteceria: “com os actuais 38% das sondagens, o PS obteria alguns 60% dos deputados”. E também não está certo isto: “com o sistema uninominal, só o PS e o PSD elegeriam deputados”. Errado! O PS obteria sensivelmente o mesmo número de deputados que teria hoje, porventura um pouco menos, dada a maior dimensão dos círculos regionais. O que aconteceria é que, sendo o partido mais votado, mais de metade dos eleitos do PS seriam deputados escolhidos individualmente, porque vencedores em círculos uninominais. Todos os partidos teriam praticamente o número de deputados que têm actualmente – a diferença, neste ângulo, está em que os maiores teriam uma quota mais elevada de vencedores em círculos uninominais, enquanto os mais pequenos teriam os seus eleitos provenientes sobretudo das listas.
Não é verdade haver “provas notáveis sobre como esse tipo de sistema distorce os resultados, estimula a fragmentação partidária e promove a corrupção.” Pelo contrário. Este modelo existe na Alemanha, na Bolívia e na Nova Zelândia, onde a experiência não mostra nada disso. É uma caricatura tirada do vazio dizer que “há democratas portugueses que querem uma solução à Bolsonaro”. Não há rasto de um sistema misto ter produzido um Bolsonaro. Mas é bem sabido que, na Alemanha antes da Guerra, um sistema eleitoral como o nosso actual produziu um Adolfo – Adolfo Hitler, ele mesmo, e os seus nazis.
A fonte do erro de Francisco Louçã compreende-se ao citar casos concretos: EUA, França e Reino Unido. É um erro frequentíssimo, mas nem por isso menos errado. Esses países têm círculos uninominais, mas são exclusivos: não têm absolutamente nada a ver com os sistemas mistos. Não se pode argumentar com alhos, para falar de bugalhos. Temos de olhar para Alemanha, Bolívia ou Nova Zelândia.
Há mais peculiaridades a esclarecer: o círculo nacional, os mandatos supranumerários e sua compensação, a definição dos círculos, guardando a identidade e impedindo o gerrymandering. Uma coisa é certa: tudo é fácil, claro, cristalino. A petição, em S. Bento, é uma ilustração disso, com um projecto pronto-a-vestir, se quiséssemos começar já.
É pena que o BE não se tenha já mudado para o lado certo da reforma, da democracia e da cidadania. Ninguém perde. Todos ganham. Sobretudo os eleitores. Francisco Louçã não tem de temer que “as eleições passam a ser batota”. Não passam. Hoje é que parecem “batota” para muitos, cidadãos que têm de votar em quem não escolhem, eleitores que querem escolher e não podem. Fartos e cansados, afastam-se. Não votam. Compreende-se: a revisão constitucional foi já há 22 anos! Chega de esperar pela democracia de qualidade.
José Ribeiro e Castro
Advogado, antigo líder do CDS
EXPRESSO, 3.Agosto.2019
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