Abram alas prá Catarina e pró André, ou o Jerónimo é que é
1. Com a campanha eleitoral a terminar, podemos concluir por uma generosa amnistia que os partidos à direita do Partido Socialista dedicaram aos da esquerda profunda, parceiros na geringonça ou aspirantes a atrelar-se. Apesar do radicalismo ou extremismo de muitas das suas propostas e ideias – isto é, apesar do risco que representam para o país e a sociedade –, Bloco, PCP e PAN foram geralmente poupados no discurso de campanha, ao centro e à direita.
A campanha focou-se no PS, o que até certa medida se compreende: é ele o governo e é ele que se recandidata a governar. Mas o PS não governou sozinho, nem se candidata a governar sozinho, por muito que aspire à maioria absoluta. Várias vezes declarou que, fosse como fosse, apreciaria voltar a governar em diálogo cooperativo com Bloco, PCP e Verdes; e, recentemente, aditou o PAN ao bornal de viajante. Nessa medida, é um erro ignorar a gravidade, a ameaça ou apenas os disparates de muitas das propostas dos parceiros de governo do PS.
O erro é ainda maior se o silenciamento de denúncias e críticas à esquerda radical se deveu a um expediente para “não desviar atenções” do PS, dando folga aos parceiros esquerdistas. Esta escorregadia esperteza táctica é um erro estratégico severo: qualquer discurso avança, quando não é contraditado e fortemente contrariado. Os últimos quatro anos mostram o esquerdismo a avançar em várias áreas políticas e sociais, porque não foi combatido em muitas das suas agendas. De nada serve bramar contra “esquerdas unidas” ou “encostadas”, se, ao mesmo tempo, não se concentra análise, voz e energia a desmontar as propostas e combater as ideias.
O descasque do extremismo programático da esquerda radical foi feito apenas nos debates televisivos, mas, pobremente, sem qualquer continuidade na campanha. Talvez ainda sirva alertar. E deixar os socialistas com a pergunta, que devia ter sido feita com insistência, sobre se é com tais parceiros e políticas que quer governar.
2. O programa do Bloco de Esquerda é marcadamente ideológico: a ideologia estatista acima de tudo. Um dos sinais mais nítidos está num vasto plano de nacionalizações, adocicado com linguagem de estudada timidez: “Reverter as privatizações de empresas estratégicas para o país.” O PCP alinha também pela estatização da economia, preconizando “a reversão programada das privatizações e a sua integração no sector público, por nacionalização e/ou negociação adequada”. Acrescenta mesmo a este fervor estatista a recuperação de uma relíquia: “A consideração de um jornal diário de propriedade pública” – isso mesmo, de novo um jornal do Estado. E esta?
Pelo meio, o Bloco acrescenta uma preciosidade com ressonâncias históricas: “as medidas que adiante detalhamos criarão cerca de duzentos e cinquenta mil novos empregos qualificados”. 250.000! Não foi José Sócrates que, em 2005, encheu o país de outdoors a prometer criar 150.000 postos de trabalho? Lembram-se? E quem não se lembra do que nos aconteceu? Catarina Martins deve ter gostado e reforça a dose.
Outro sinal estatista é na política de saúde. “Fim da gestão privada dos hospitais públicos” é uma das várias frases do BE num programa dirigido a “alcançar um SNS universal, geral, gratuito, público e de qualidade”, com segregação e afastamento de tudo o que é sector privado ou sector social. O Bloco não tem espaço para reflectir que a exigência correcta de universalidade e qualidade na Saúde pode aconselhar ou impor modos vários de organização e de prestação, todos eles articulados sob a reitoria do interesse público e do serviço social. O PCP está na mesma onda: “O desenvolvimento do SNS como serviço público, universal, geral e gratuito, eficiente, eficaz e de qualidade, mantendo-se o Estado como prestador geral e universal de cuidados de saúde” e com “gestão pública de todas as unidades do SNS”.
Para a ideologia esquerdista, o doente não é o sujeito, o sujeito é o Estado. O critério não é a melhor resposta ao doente, o poder do Estado é que é o tópico. Onde eu leio “público” para servir, eles lêem “público” para mandar.
3. Ponto muito saliente do programa bloquista é a voluptuosa orgia fiscal para que aponta. Em 2016, Mariana Mortágua pronunciou a célebre frase que arrancou fortes aplausos na reunião socialista a que se dirigia: “Temos de perder a vergonha e ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Esta linha teve logo tradução no OE 2017. Agora, concretiza-se num novo patamar, ainda mais alto, do “aqui-vai-disto” tributário: englobamento obrigatório de todos os rendimentos para efeitos de IRS; regresso do imposto de sucessões e doações; criação de um imposto sobre a fortuna, incidente sobre todo o património dos cidadãos; agravamento da derrama para as empresas de mais altos rendimentos; imposto sobre prestação de serviços digitais; imposto sobre consumo de bens e serviços de luxo (incluindo a utilização de campos de golfe); varredela geral dos benefícios fiscais com eliminação de muitos dos existentes.
O assalto tributário aos cidadãos torna uma brincadeira de aprendiz o caricaturado “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, cabendo lembrar dois pontos fundamentais: primeiro, Vítor Gaspar só o adoptou numa situação de emergência, em que Portugal tinha de cumprir o programa de resgate e havia que superar um revés no Tribunal Constitucional; segundo, esse “enorme aumento de impostos”, tão criticado, afinal, sete anos depois, ainda não foi revertido pelo governo socialista, mas a sua receita transferida para outros instrumentos fiscais. Agora, Catarina Martins propõe novo enorme aumento de impostos em cima do “enorme aumento”.
O PCP encaixa-se bem na orgia fiscal, em que mete também as suas colheradas: “englobamento obrigatório de todos os rendimentos para efeitos de IRS”; “tributação progressiva de todo o património”, imobiliário e mobiliário, para “corrigir” – diz – “uma grave lacuna do sistema fiscal português”; IRC progressivo; corte de benefícios fiscais; tributação de todas as transacções financeiras; e, cereja em cima do bolo, “aprofundar a progressividade” do IRS, com “criação de taxas de 65% e de 75%” para os mais elevados rendimentos. Não é engano, leu mesmo bem: as taxas de IRS podem chegar a 75%, três quartos do rendimento tributado!
4. No plano internacional, o Bloco de Esquerda propõe abrir conflitos diplomáticos de Portugal com os nossos dois vizinhos: com Espanha, pondo-nos a tomar partido na questão da Catalunha; com Marrocos, fazendo o mesmo com o Sahara Ocidental (aqui, com a companhia do PAN). A coroa de glória desta secção é, porém, a “saída de Portugal da NATO”, deixando o nosso país frágil e indefeso num mundo cada vez mais perigoso.
Lembram-se do filme “Adeus, Lenine”? É aquele filme em que uma velhota berlinense cai em coma durante a crise final do regime comunista da RDA (que apoiava) e volta a acordar no hospital, meses depois do derrube do muro. O filho, para não afligir a mãe, esconde-lhe a realidade e faz de conta que o muro ainda lá está, assim como o regime da foice e do martelo.
Esta questão da NATO é um dos momentos “Adeus, Lenine” do programa do PCP: não lhe chega que Portugal saia; exige “a dissolução da NATO”! (Ecoam, ouve-se claramente, os aplausos de Kruschev, Brejnev, Gromyko, Pogdorny, Tchernenko, Andropov e outros dirigentes daquele tempo do Kremlin em que a geopolítica e a política internacional do PCP pararam.)
Há um outro momento “Adeus, Lenine”, no programa eleitoral comunista: é a reforma agrária – “Uma política agrícola que (…) tenha por eixo central uma profunda alteração fundiária que concretize, nas actuais condições, uma reforma agrária nos campos do Sul, liquidando a propriedade de dimensão latifundiária”. Isto mesmo! Valha a verdade que o PCP pode alegar querer cumprir o artigo 94º (Eliminação dos latifúndios) da Constituição, cuja leitura recomendo a quem ainda desconheça o estado real do país e das suas leis.
Em matéria europeia, o PCP preconiza a linha “catrapum”, pretendendo “o desmantelamento da União Económica e Monetária e a necessária libertação do país da submissão ao Euro”, assim como a “revogação do Tratado Orçamental e da União Bancária, do Programa de Estabilidade, da «Governação Económica» e do «Semestre Europeu».” É para ir tudo a eito.
Já o BE anuncia uma linha mais à moda de um Brexit aos bochechos e por parcelas. Exige a “desvinculação do país do Tratado Orçamental”, engrossa a voz contra “um ultimato das instituições europeias” para apontar à “desvinculação da União Monetária” – leia-se, saída do euro – e proclama a “insubmissão à União Europeia dos tratados e das regras do euro”, seja lá isto o que for.
5. O programa do PAN, com 1196 propostas, é difícil de abarcar em toda a variedade. É um festival de burocracia: entre Estratégias, Observatórios, Planos, Programas, Redes, Centros, Sistemas, Inventários, Registos, Estudos, novas Secretarias de Estado e Direcções-Gerais, Provedores e Plataformas encontrei mais 190, aos mais diversos propósitos. A medalha de ouro atribuí-a aos (vá lá, retenham o fôlego) GLPSSAOSES: “Grupos Locais de Situação de Sem-Abrigo e Outras em Situação de Exclusão Social”. É também um festival de proibicionismo: tem 50-propostas-50 para “abolir”, “impedir”, “interditar”, “limitar”, “proibir”, “vedar” ou “não permitir” isto ou aquilo. É amigo de lobbies que serve diligentemente, como um de psicólogos: contei 30 propostas para favorecer psicólogos, incluindo contemplar “a dedução à colecta, em sede de IRS, na categoria de despesas de saúde, de gastos com Serviços de Psicologia a qualquer área de intervenção e não apenas na área da Psicologia Clínica” – isto é, descontar como saúde gastos que não são clínicos. É um bodo de benefícios e regalias, restando explicar como é que paga tanta coisa, sobretudo depois das marteladas que o PAN propõe dar na economia – pode recear-se que o PAN, ao soltar a ideologia para fustigar o “modelo económico extractivista-produtivista” e propor “a mudança de paradigma baseado no crescimento ilimitado”, esteja a pensar num futuro caracterizado pelo paradigma da recessão ilimitada.
O programa do PAN tem coisas de elevadíssima importância, como “incluir legendas em inglês nos ecopontos das zonas de maior afluência turística”, a par de outras talvez um nadinha intrusivas, como “promover campanhas de sensibilização sobre os impactos ambientais dos produtos de higiene íntima e os benefícios da utilização de copo menstrual” – aqui, não esclarecendo o PAN se, sim ou não, com legendas em inglês. O PAN não deixa, todavia, de nos informar que “estima-se que cada mulher utilize cerca de 15 mil produtos de higiene íntima descartáveis durante a sua vida”.
Tem manifestações de fúria veggie, ao “determinar como regra que todas as refeições nos eventos promovidos pela administração directa e indirecta do Estado são vegetarianas”, a par de ataques de dirigismo informativo, como na cominação de “incluir uma rubrica/peça jornalística diária de divulgação cultural em programas de grande audiência da televisão pública, como, por exemplo, o Telejornal”. E não esquece uma incursão ternurenta pelo programa Walt Disney para a reforma do sistema financeiro, anunciando “criar regulamentação própria com vista à instalação da Banca Ética e das Finanças Solidárias em Portugal”.
Entra a sobrepor a ideologia à decisão exclusivamente técnica e científica em matérias de saúde, seja na questão da “doação de sangue por parte da população LGBTI+”, seja na proibição de intervenções cirúrgicas “à nascença de bebés e crianças intersexo” (carregando nas tintas como “mutilações genitais”) – trata-se de matérias em debate, mas que devem ser decididas pela ciência médica, não por programas partidários. E lança uma girândola de ideologia de género: “alargar a autodeterminação no reconhecimento legal da identidade de género a jovens menores de idade”; “possibilidade da abolição da menção de género/sexo em documentos oficiais”, na linha do combate por “processos legislativos cada vez menos centrados no binarismo de género”; e insistência nas barrigas de aluguer, acrescentando o “alargamento do acesso a homens solteiros e casais de homens.” Já, porém, quanto às vacas, sempre na ordem do dia, a doutrina é diferente, velando pela estreita relação filial/maternal entre vitelo e vaca: “Regulamentar a separação dos vitelos das suas progenitoras, considerando que actualmente é possível a sua separação nas primeiras 24h de vida”.
É generoso para além da natureza, ao garantir, “a obrigatoriedade da existência de sombra e a protecção contra as intempéries nos pastos extensivos”, ou seja, pradarias com abrigos e coberturas, “para além – acrescenta o PAN - das demais condições que devem ser asseguradas aos animais”. O que serão? Instalações sanitárias? Balneários? É possível – trata-se de gado vegetariano, todos os privilégios são poucos.
O PAN (tal como o Bloco) prevê autorizar os médicos a matar doentes a pedido – a eutanásia -, sob o falso eufemismo de “morte assistida”, que é a prática comum e humana de chegar à morte com assistência médica e os cuidados de familiares e amigos. Ameaça a independência partidária do Procurador-Geral da República e do Presidente do Tribunal de Contas, mudando a fonte da sua indicação para a Assembleia da República. Abre um paraíso para os “hackers”, ao anunciar a criação de “um portal para consulta facilitada sobre os dados de cada cidadão que estão a ser recolhidos, por que entidade e qual a sua finalidade”. E previne-nos para a “conhecida Declaração de Cambridge de 2012”, em que “cientistas na área das neurociências declararam, pela primeira vez, que animais não-humanos (designadamente mamíferos, aves e polvos) possuem os substratos neurológicos, neuroanatómicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência em linha com a capacidade de exibir comportamentos intencionais, devendo, por isso, haver mais exigência no seu trato e mais respeito pela sua existência e natureza.” Esta constatação levará a importantes consequências: por um lado, podemos dizer adeus a pitéus como a salada de polvo, o arroz de polvo e o polvo à lagareiro, uma vez que o saboroso cefalópode está coberto pela esmerada atenção dos sábios de Cambridge; por outro, impõe uma série de medidas de educação alimentar dos animais selvagens carnívoros, a fim de passarem a herbívoros – que é como quem diz vegetarianos –, não só porque será melhor para a sua saúde e pegada ecológica, mas porque há que pôr fim à prática cruel de devorarem outros animais vivos sencientes. Estas medidas não constam deste programa do PAN para 2019; certamente estão guardadas para 2023.
6. Para não abrir alas ao extremismo e ao disparate, há que ler e dar a conhecer, rejeitar e repudiar. Quem cala, consente. E nós não podemos consentir.
Há mínimos de equilíbrio e de normalidade que temos de lutar para preservar e garantir. É também isto que está em causa no domingo.
A campanha focou-se no PS, o que até certa medida se compreende: é ele o governo e é ele que se recandidata a governar. Mas o PS não governou sozinho, nem se candidata a governar sozinho, por muito que aspire à maioria absoluta. Várias vezes declarou que, fosse como fosse, apreciaria voltar a governar em diálogo cooperativo com Bloco, PCP e Verdes; e, recentemente, aditou o PAN ao bornal de viajante. Nessa medida, é um erro ignorar a gravidade, a ameaça ou apenas os disparates de muitas das propostas dos parceiros de governo do PS.
O erro é ainda maior se o silenciamento de denúncias e críticas à esquerda radical se deveu a um expediente para “não desviar atenções” do PS, dando folga aos parceiros esquerdistas. Esta escorregadia esperteza táctica é um erro estratégico severo: qualquer discurso avança, quando não é contraditado e fortemente contrariado. Os últimos quatro anos mostram o esquerdismo a avançar em várias áreas políticas e sociais, porque não foi combatido em muitas das suas agendas. De nada serve bramar contra “esquerdas unidas” ou “encostadas”, se, ao mesmo tempo, não se concentra análise, voz e energia a desmontar as propostas e combater as ideias.
O descasque do extremismo programático da esquerda radical foi feito apenas nos debates televisivos, mas, pobremente, sem qualquer continuidade na campanha. Talvez ainda sirva alertar. E deixar os socialistas com a pergunta, que devia ter sido feita com insistência, sobre se é com tais parceiros e políticas que quer governar.
2. O programa do Bloco de Esquerda é marcadamente ideológico: a ideologia estatista acima de tudo. Um dos sinais mais nítidos está num vasto plano de nacionalizações, adocicado com linguagem de estudada timidez: “Reverter as privatizações de empresas estratégicas para o país.” O PCP alinha também pela estatização da economia, preconizando “a reversão programada das privatizações e a sua integração no sector público, por nacionalização e/ou negociação adequada”. Acrescenta mesmo a este fervor estatista a recuperação de uma relíquia: “A consideração de um jornal diário de propriedade pública” – isso mesmo, de novo um jornal do Estado. E esta?
Pelo meio, o Bloco acrescenta uma preciosidade com ressonâncias históricas: “as medidas que adiante detalhamos criarão cerca de duzentos e cinquenta mil novos empregos qualificados”. 250.000! Não foi José Sócrates que, em 2005, encheu o país de outdoors a prometer criar 150.000 postos de trabalho? Lembram-se? E quem não se lembra do que nos aconteceu? Catarina Martins deve ter gostado e reforça a dose.
Outro sinal estatista é na política de saúde. “Fim da gestão privada dos hospitais públicos” é uma das várias frases do BE num programa dirigido a “alcançar um SNS universal, geral, gratuito, público e de qualidade”, com segregação e afastamento de tudo o que é sector privado ou sector social. O Bloco não tem espaço para reflectir que a exigência correcta de universalidade e qualidade na Saúde pode aconselhar ou impor modos vários de organização e de prestação, todos eles articulados sob a reitoria do interesse público e do serviço social. O PCP está na mesma onda: “O desenvolvimento do SNS como serviço público, universal, geral e gratuito, eficiente, eficaz e de qualidade, mantendo-se o Estado como prestador geral e universal de cuidados de saúde” e com “gestão pública de todas as unidades do SNS”.
Para a ideologia esquerdista, o doente não é o sujeito, o sujeito é o Estado. O critério não é a melhor resposta ao doente, o poder do Estado é que é o tópico. Onde eu leio “público” para servir, eles lêem “público” para mandar.
3. Ponto muito saliente do programa bloquista é a voluptuosa orgia fiscal para que aponta. Em 2016, Mariana Mortágua pronunciou a célebre frase que arrancou fortes aplausos na reunião socialista a que se dirigia: “Temos de perder a vergonha e ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Esta linha teve logo tradução no OE 2017. Agora, concretiza-se num novo patamar, ainda mais alto, do “aqui-vai-disto” tributário: englobamento obrigatório de todos os rendimentos para efeitos de IRS; regresso do imposto de sucessões e doações; criação de um imposto sobre a fortuna, incidente sobre todo o património dos cidadãos; agravamento da derrama para as empresas de mais altos rendimentos; imposto sobre prestação de serviços digitais; imposto sobre consumo de bens e serviços de luxo (incluindo a utilização de campos de golfe); varredela geral dos benefícios fiscais com eliminação de muitos dos existentes.
O assalto tributário aos cidadãos torna uma brincadeira de aprendiz o caricaturado “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, cabendo lembrar dois pontos fundamentais: primeiro, Vítor Gaspar só o adoptou numa situação de emergência, em que Portugal tinha de cumprir o programa de resgate e havia que superar um revés no Tribunal Constitucional; segundo, esse “enorme aumento de impostos”, tão criticado, afinal, sete anos depois, ainda não foi revertido pelo governo socialista, mas a sua receita transferida para outros instrumentos fiscais. Agora, Catarina Martins propõe novo enorme aumento de impostos em cima do “enorme aumento”.
O PCP encaixa-se bem na orgia fiscal, em que mete também as suas colheradas: “englobamento obrigatório de todos os rendimentos para efeitos de IRS”; “tributação progressiva de todo o património”, imobiliário e mobiliário, para “corrigir” – diz – “uma grave lacuna do sistema fiscal português”; IRC progressivo; corte de benefícios fiscais; tributação de todas as transacções financeiras; e, cereja em cima do bolo, “aprofundar a progressividade” do IRS, com “criação de taxas de 65% e de 75%” para os mais elevados rendimentos. Não é engano, leu mesmo bem: as taxas de IRS podem chegar a 75%, três quartos do rendimento tributado!
4. No plano internacional, o Bloco de Esquerda propõe abrir conflitos diplomáticos de Portugal com os nossos dois vizinhos: com Espanha, pondo-nos a tomar partido na questão da Catalunha; com Marrocos, fazendo o mesmo com o Sahara Ocidental (aqui, com a companhia do PAN). A coroa de glória desta secção é, porém, a “saída de Portugal da NATO”, deixando o nosso país frágil e indefeso num mundo cada vez mais perigoso.
Lembram-se do filme “Adeus, Lenine”? É aquele filme em que uma velhota berlinense cai em coma durante a crise final do regime comunista da RDA (que apoiava) e volta a acordar no hospital, meses depois do derrube do muro. O filho, para não afligir a mãe, esconde-lhe a realidade e faz de conta que o muro ainda lá está, assim como o regime da foice e do martelo.
Esta questão da NATO é um dos momentos “Adeus, Lenine” do programa do PCP: não lhe chega que Portugal saia; exige “a dissolução da NATO”! (Ecoam, ouve-se claramente, os aplausos de Kruschev, Brejnev, Gromyko, Pogdorny, Tchernenko, Andropov e outros dirigentes daquele tempo do Kremlin em que a geopolítica e a política internacional do PCP pararam.)
Há um outro momento “Adeus, Lenine”, no programa eleitoral comunista: é a reforma agrária – “Uma política agrícola que (…) tenha por eixo central uma profunda alteração fundiária que concretize, nas actuais condições, uma reforma agrária nos campos do Sul, liquidando a propriedade de dimensão latifundiária”. Isto mesmo! Valha a verdade que o PCP pode alegar querer cumprir o artigo 94º (Eliminação dos latifúndios) da Constituição, cuja leitura recomendo a quem ainda desconheça o estado real do país e das suas leis.
Em matéria europeia, o PCP preconiza a linha “catrapum”, pretendendo “o desmantelamento da União Económica e Monetária e a necessária libertação do país da submissão ao Euro”, assim como a “revogação do Tratado Orçamental e da União Bancária, do Programa de Estabilidade, da «Governação Económica» e do «Semestre Europeu».” É para ir tudo a eito.
Já o BE anuncia uma linha mais à moda de um Brexit aos bochechos e por parcelas. Exige a “desvinculação do país do Tratado Orçamental”, engrossa a voz contra “um ultimato das instituições europeias” para apontar à “desvinculação da União Monetária” – leia-se, saída do euro – e proclama a “insubmissão à União Europeia dos tratados e das regras do euro”, seja lá isto o que for.
5. O programa do PAN, com 1196 propostas, é difícil de abarcar em toda a variedade. É um festival de burocracia: entre Estratégias, Observatórios, Planos, Programas, Redes, Centros, Sistemas, Inventários, Registos, Estudos, novas Secretarias de Estado e Direcções-Gerais, Provedores e Plataformas encontrei mais 190, aos mais diversos propósitos. A medalha de ouro atribuí-a aos (vá lá, retenham o fôlego) GLPSSAOSES: “Grupos Locais de Situação de Sem-Abrigo e Outras em Situação de Exclusão Social”. É também um festival de proibicionismo: tem 50-propostas-50 para “abolir”, “impedir”, “interditar”, “limitar”, “proibir”, “vedar” ou “não permitir” isto ou aquilo. É amigo de lobbies que serve diligentemente, como um de psicólogos: contei 30 propostas para favorecer psicólogos, incluindo contemplar “a dedução à colecta, em sede de IRS, na categoria de despesas de saúde, de gastos com Serviços de Psicologia a qualquer área de intervenção e não apenas na área da Psicologia Clínica” – isto é, descontar como saúde gastos que não são clínicos. É um bodo de benefícios e regalias, restando explicar como é que paga tanta coisa, sobretudo depois das marteladas que o PAN propõe dar na economia – pode recear-se que o PAN, ao soltar a ideologia para fustigar o “modelo económico extractivista-produtivista” e propor “a mudança de paradigma baseado no crescimento ilimitado”, esteja a pensar num futuro caracterizado pelo paradigma da recessão ilimitada.
O programa do PAN tem coisas de elevadíssima importância, como “incluir legendas em inglês nos ecopontos das zonas de maior afluência turística”, a par de outras talvez um nadinha intrusivas, como “promover campanhas de sensibilização sobre os impactos ambientais dos produtos de higiene íntima e os benefícios da utilização de copo menstrual” – aqui, não esclarecendo o PAN se, sim ou não, com legendas em inglês. O PAN não deixa, todavia, de nos informar que “estima-se que cada mulher utilize cerca de 15 mil produtos de higiene íntima descartáveis durante a sua vida”.
Tem manifestações de fúria veggie, ao “determinar como regra que todas as refeições nos eventos promovidos pela administração directa e indirecta do Estado são vegetarianas”, a par de ataques de dirigismo informativo, como na cominação de “incluir uma rubrica/peça jornalística diária de divulgação cultural em programas de grande audiência da televisão pública, como, por exemplo, o Telejornal”. E não esquece uma incursão ternurenta pelo programa Walt Disney para a reforma do sistema financeiro, anunciando “criar regulamentação própria com vista à instalação da Banca Ética e das Finanças Solidárias em Portugal”.
Entra a sobrepor a ideologia à decisão exclusivamente técnica e científica em matérias de saúde, seja na questão da “doação de sangue por parte da população LGBTI+”, seja na proibição de intervenções cirúrgicas “à nascença de bebés e crianças intersexo” (carregando nas tintas como “mutilações genitais”) – trata-se de matérias em debate, mas que devem ser decididas pela ciência médica, não por programas partidários. E lança uma girândola de ideologia de género: “alargar a autodeterminação no reconhecimento legal da identidade de género a jovens menores de idade”; “possibilidade da abolição da menção de género/sexo em documentos oficiais”, na linha do combate por “processos legislativos cada vez menos centrados no binarismo de género”; e insistência nas barrigas de aluguer, acrescentando o “alargamento do acesso a homens solteiros e casais de homens.” Já, porém, quanto às vacas, sempre na ordem do dia, a doutrina é diferente, velando pela estreita relação filial/maternal entre vitelo e vaca: “Regulamentar a separação dos vitelos das suas progenitoras, considerando que actualmente é possível a sua separação nas primeiras 24h de vida”.
É generoso para além da natureza, ao garantir, “a obrigatoriedade da existência de sombra e a protecção contra as intempéries nos pastos extensivos”, ou seja, pradarias com abrigos e coberturas, “para além – acrescenta o PAN - das demais condições que devem ser asseguradas aos animais”. O que serão? Instalações sanitárias? Balneários? É possível – trata-se de gado vegetariano, todos os privilégios são poucos.
O PAN (tal como o Bloco) prevê autorizar os médicos a matar doentes a pedido – a eutanásia -, sob o falso eufemismo de “morte assistida”, que é a prática comum e humana de chegar à morte com assistência médica e os cuidados de familiares e amigos. Ameaça a independência partidária do Procurador-Geral da República e do Presidente do Tribunal de Contas, mudando a fonte da sua indicação para a Assembleia da República. Abre um paraíso para os “hackers”, ao anunciar a criação de “um portal para consulta facilitada sobre os dados de cada cidadão que estão a ser recolhidos, por que entidade e qual a sua finalidade”. E previne-nos para a “conhecida Declaração de Cambridge de 2012”, em que “cientistas na área das neurociências declararam, pela primeira vez, que animais não-humanos (designadamente mamíferos, aves e polvos) possuem os substratos neurológicos, neuroanatómicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência em linha com a capacidade de exibir comportamentos intencionais, devendo, por isso, haver mais exigência no seu trato e mais respeito pela sua existência e natureza.” Esta constatação levará a importantes consequências: por um lado, podemos dizer adeus a pitéus como a salada de polvo, o arroz de polvo e o polvo à lagareiro, uma vez que o saboroso cefalópode está coberto pela esmerada atenção dos sábios de Cambridge; por outro, impõe uma série de medidas de educação alimentar dos animais selvagens carnívoros, a fim de passarem a herbívoros – que é como quem diz vegetarianos –, não só porque será melhor para a sua saúde e pegada ecológica, mas porque há que pôr fim à prática cruel de devorarem outros animais vivos sencientes. Estas medidas não constam deste programa do PAN para 2019; certamente estão guardadas para 2023.
6. Para não abrir alas ao extremismo e ao disparate, há que ler e dar a conhecer, rejeitar e repudiar. Quem cala, consente. E nós não podemos consentir.
Há mínimos de equilíbrio e de normalidade que temos de lutar para preservar e garantir. É também isto que está em causa no domingo.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
OBSERVADOR, 4.Outubro. 2019
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