Resolver o problema das políticas do Mar
Sou cultor da ideia dos sistemas. Sei que, muitas vezes, os resultados se atingem, ou não se atingem, consoante os sistemas. Sei que os resultados se alcançam duma ou doutra maneira, consoante o sistema: nada é igual quando há ou não há sistema; e tudo é melhor ou pior consoante o sistema. Os sistemas não são passivos, são boa parte da acção. Empiricamente, todos o sabemos. Umas vezes, dizêmo-lo para transmitir segurança: “Esteja descansado, o sistema nunca falha.” Outras vezes, resignados, para lamentar o inelutável: “É o sistema…”
Vem isto a propósito da organização das políticas do mar ao nível superior do Estado. É um problema com que nos debatemos desde há anos sem encontrar a solução. Mas eis que há solução. Já aqui escrevi, há uns anos, sobre esta solução: “O mar e o Parlamento – Colombo e o seu ovo”. Na verdade, e se a chave do problema não estivesse no Governo, mas na Assembleia da República?
Nas últimas décadas do século passado, pareceu que Portugal se esquecera do mar. A ideia que de repente podia fazer-se era esta: foi-se o Ultramar e o mar também. Fazia algum sentido, porque a nossa relação com o mar tivera a ver com os Descobrimentos e, depois, as possessões ultramarinas. Podia, por isso, compreender-se que, após a descolonização, surgisse forte perturbação dessa relação: o mar era o caminho para as Américas, para África, para o Oriente; e este caminho perdera importância.
Contudo, o mar português não era só isso. E, embora fosse e continue a ser aquela viagem universal, era muito mais do que isso: é mais de metade do nosso tamanho e projecta-se praticamente em todas as áreas da vida colectiva. Pouco a pouco, voltámos ao mar. Mas não sabemos onde o arrumar, para ponderar e decidir. Continuamos a desperdiçar visão conjunta e a perder oportunidades. Houve tempos em que tivemos Ministério do Mar e outros em que não. Mas, ainda quando o tivemos, há várias áreas, ângulos, domínios que escapam à sua tutela única. Além disso, num modelo ou noutro, a coordenação interministerial manteve-se sempre frágil. Como fazer um ministro “obedecer” a orientações de outro? E como conseguir que um ministro do Mar, apenas com a tutela orgânica de algumas áreas, não seja soterrado pela burocracia destas áreas apenas e perca a essencial visão total do Infante, que olha todo o oceano sem barreiras, nem limites.
Este é o problema da governação (a governance) do mar: as políticas do mar são essencialmente transversais e não podem ser arrumadas num só departamento ministerial. Procurar fazê-lo é perder tempo e falhar. E, a nível do Governo, a chave está em encontrar um mecanismo prático, bem oleado, de coordenação interministerial. Dizendo de outro modo: pode haver, ou não, ministro do Mar, mas a sua competência e capacidade abrangente assentará não tanto nos departamentos que estejam directamente a cargo do seu Ministério, mas na abertura que conseguir de quase todos os colegas de Governo para poder dar impulsos aos segmentos que têm a ver com o mar nos vários ministérios e assegurar a boa articulação política entre todos.
Esta ideia não é nova: seja a propósito do mar, seja de outros referentes transversais que se espalham por diversos ministérios (a família, a juventude, etc.), tornou-se frequente recorrer às comissões interministeriais. O problema, porém, é que estas comissões acabam por ser frágeis e, exceptuada a troca regular de informações, tendem a produzir escassos resultados. Normalmente, assumem algum gás no momento festivo em que são criadas; mas cedo o vão perdendo e chegam ao final do mandato exaustas e improdutivas.
Este quadro não serve para um domínio tão importante como as políticas do mar, um domínio estratégico para Portugal, tanto internamente, como no relacionamento externo. Temos de ser mais ambiciosos. A comissão interministerial ajuda, mas não chega. Falta-lhe poder político e suficiente capacidade de coordenação da acção. Quando se trata de, na economia, na política externa, na ciência, no desporto, na educação, nas infraestruturas, na cultura, na defesa nacional, na política europeia, desenvolver acções específicas ou afectar recursos humanos ou orçamentais próprios para servir linhas que integram as políticas do mar, tudo depende, em última análise, da vontade e da abertura de cada respectivo ministro titular.
É aqui que uma Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar fará toda a diferença. A Assembleia da República pode reunir, numa mesma comissão especializada, o tratamento integrado de todas as matérias e questões que têm a ver com as políticas do mar. Não quer dizer que retire competências a outras comissões que se ocupam de específicos sectores do mar: a Marinha na Defesa Nacional ou as Pescas junto com a Agricultura. Mas a comissão para as Políticas do Mar poderá abordar também a Marinha ou as Pescas quando não estiver em causa a política de Defesa Nacional ou a de Agricultura e Pescas, mas o ângulo do interesse comum às Políticas do Mar. A comissão do Mar também tratará da sensibilização às questões do mar no sistema de ensino e não se substitui à comissão de Educação; dos desportos náuticos, da investigação e das ciências do mar ou dos museus ligados ao mundo náutico sem usurpar as competências de outras no Desporto, na Ciência e na Cultura; do progresso nas infraestruturas navais, da relevância ambiental dos oceanos ou da entrada de estrangeiros nos portos sem diminuir quaisquer outras. Porque o mar é matéria transversal, esta comissão tratará transversalmente de tudo o que tem a ver com o mar, em abordagem integrada, harmónica e coerente. Por isso, pode ser a arena privilegiada de debate, de definição e de afinação das políticas para o mar. E, por isso também, é, institucionalmente, o melhor aliado do Governo e, graças à sua pressão exigente, o melhor suporte político da comissão interministerial e o melhor aliado do ministro do Mar, se o houver. A comissão parlamentar acrescenta à comissão interministerial a visibilidade substancial e o peso político que esta não tem – e o diálogo parlamentar que mantém com os vários ministros sectoriais sobre segmentos do mar dentro dos seus ministérios fortalece a capacidade de acção e a força coordenadora do ministro que tenha a seu cargo as políticas do mar.
Por último, a comissão parlamentar permanente disparará um enorme salto qualitativo das Políticas do Mar em Portugal. Todos os partidos terão de designar membros para essa comissão e, dada a matéria que é, é altamente provável que os escolham entre deputados qualificados, com peso e influência dirigentes. O resultado será o de que todos os partidos qualificarão de imediato a sua atenção política e intervenção a respeito das políticas do Mar – como é preciso. Ao mesmo tempo, a nova comissão não será efémera, mas continuará de legislatura em legislatura, dotando a definição pluripartidária das políticas do Mar de consistência, estabilidade e continuidade – como é indispensável numa área estratégica e nacional. Finalmente.
Abrangência material, qualificação institucional, vigor político, continuidade, eis alguns efeitos que resultarão para as políticas do Mar da criação desta comissão parlamentar. Hoje, quando, com a eleição dos últimos deputados, fica completa a Assembleia da República, encerra também a recolha de assinaturas de uma petição que, com o apoio da Revista de Marinha e da Confraria Marítima de Portugal/Liga Naval Portuguesa, vai ser já apresentada ao Presidente da Assembleia da República e aos grupos parlamentares, renovando esta proposta. Oxalá a Assembleia da República já tenha amadurecido a boa ideia e dê o importante passo que é necessário. Seria um começo histórico da XIV Legislatura.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
PÚBLICO, 16.Outubro.2019
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