Um pedaço da nossa história


A morte tira-nos às vezes as palavras, sobretudo quando nos bate próximo. A floresta de lugares-comuns em que nos desdobramos é isso mesmo: não é termos palavras, é não termos palavras – por isso as pedimos emprestadas para preencher declarações. Estava eu nisto, quando, em conversa com um amigo, companheiro dos primeiros anos do CDS, ele me desencrava: “Ó Zé, foi um pedaço da nossa história.” É isso mesmo. Diogo Freitas do Amaral é um pedaço da nossa história: da nossa história pessoal e da nossa História do país.

Não sei quanto flashes poderia recordar da cascata de momentos dos anos iniciais. A apresentação a Freitas do Amaral e Amaro da Costa da Juventude Centrista, acabada de fundar, em Agosto de 1974. A ressaca do primeiro assalto e destruição da sede nacional do CDS, após o comício histórico da JC, em 4 de Novembro. Houve que recomeçar. O boicote violento do 1º Congresso do CDS, em Janeiro de 1975, no Porto. Houve que retomar. A difícil reunião sobre a assinatura do Pacto MFA/partidos, sem o qual não iríamos a eleições. A ressaca do segundo assalto e destruição da sede, no 11 de Março. Houve que recomeçar outra vez. Uma voz permanente não-socialista e de oposição. A estreia parlamentar com a eleição de 16 constituintes, em 25 de Abril de 1975, com a tristeza de receber apenas 7,6%. A prisão do Rui Pena, sem culpa formada. A prisão de três jovens da JC, do Norte, sem culpa formada. A recepção aos “retornados”, no aeroporto e na sede nacional, a partir de Maio/Junho, com histórias dramáticas e necessidades para responder. A agitação pelo “Verão quente”, com previsões frequentes de golpe e contra-golpe. O cerco à Constituinte e o sequestro dos deputados. O 25 de Novembro, finalmente, e a acalmação a que deu lugar. O segundo Pacto MFA/partidos, antes de fechar o texto constitucional, tirando do primeiro Pacto os traços mais autoritários e dirigistas. O voto contra a Constituição em 2 de Abril de 1976, protegendo a alternativa. As massas populares em comícios do CDS, na primeira campanha para a Assembleia da República: Lisboa, Porto, Aveiro, Braga, Leiria, Elvas. A colheita de 16% nas eleições de 1976, elegendo 42 deputados. A alegria do sucesso político, com o lema “Alternativa 76”.

Por maior que fosse a dureza das provações por que o CDS passou na era da fundação, nunca por nunca a direcção perdeu a cabeça. Manteve sempre aquela fleuma alternativa que se tornou a imagem de marca. Esse traço de Freitas do Amaral muito ajudou a atravessarmos, sem quebra de rumo, os mares nunca dantes navegados por que todos tivemos de andar. Lembro um seu memorável “Responder ao País” na RTP, em pleno vulcão de 1975 – uma longa entrevista com três jornalistas –, e a declaração política com que acompanhou o voto do CDS contra a Constituição em 1976. Coragem, serenidade, clareza.

Lembro a Europa e a Defesa Nacional e a extraordinária campanha presidencial de 1985/86, que produziu o melhor Freitas que alguma vez conheci. Que coisa fantástica! E recordo – como não? – aquela tristeza magoada e dorida, solene e nobre, em que o estadista tem o encargo de, a 4 de Dezembro de 1980, anunciar ao país pela televisão a morte de dois amigos, também estadistas: Adelino Amaro da Costa e Francisco Sá Carneiro. Aí morreu a Aliança Democrática, como nunca imagináramos. Ficou a coligação, claro; mas não era a mesma coisa, nem teve vida longa.

Diogo Freitas do Amaral estava doente há algum tempo. Ultimamente piorara. As notícias oscilavam. Esta semana começou muito mal, notícias muito críticas. Depois, pareceu melhorar e, na quarta-feira, sentia-se melhor, conversava e perguntou notícias: quis saber como estavam as sondagens para as eleições de domingo. Infelizmente, já não irá votar. Já não poderá fazer aquilo por que tanto lutou para todos podermos fazer: escolher livremente pelo voto os que nos representam e governam, assim como as grandes orientações do país. É a pessoas como Diogo Freitas do Amaral que o devemos. Obrigado.




José Ribeiro e Castro
Advogado, antigo líder do CDS

EXPRESSO, 4.Outubro.2019


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