Afinal, havia outra


Não, não é o êxito popular de Mónica Sintra. É o regresso ao caso de Sintra, sem Mónica, que tratei nesta série pela “democracia de qualidade” na edição de 23 de Fevereiro de 2018, no artigo “A última jornada”. Afinal, não fora a última. Afinal, havia outra.

Quis deixar passar as eleições para voltar às “cenas dos próximos capítulos” deste enredo lamentável. Uma história que revela uma das rampas que empurrou o CDS-PP tão para baixo: não é falência espiritual e identitária, nem falência financeira; trata-se de falência orgânica, falência institucional.

Recordo o essencial. Em 2013, PSD/CDS cometeram um erro catastrófico nas autárquicas, desprezando o candidato natural, Marco Almeida. Isso custou perder o município para os socialistas, deitando fora o esforçado ganho em 2001. Marco Almeida, como independente, quase ganhava e ficou a segunda força do concelho, enquanto PSD/CDS caíram para a sub-cave, com menos de um terço da votação de 2009. Um desastre!

Para as eleições de 2017, PSD e CDS quiseram reparar este erro, fazendo uma coligação que incluía o liderante Marco Almeida. Era a única estratégia que fazia sentido; e é neste contexto que fui convidado pela Presidente do CDS para cabeça-de-lista para a Assembleia Municipal, que já fora em 2001. Correntes locais do PSD e do CDS, porém, movimentaram-se contra esta coligação ampla, defendendo candidaturas separadas que só favoreciam o PS. Houve várias peripécias, que já relatei anteriormente.

Com a coragem vibrante do anonimato, o grupo contestatário no CDS organizou-se atrás do nome “DCS – Democratas Cristãos de Sintra”, fazendo comunicações frequentes, entre Julho e 30 de Setembro (véspera das eleições), nas redes sociais e em correio electrónico para os filiados do partido, criticando a coligação e o CDS e apoiando o PS e o seu candidato “democrata-cristão”. Este excesso de zelo da propaganda no dia de silêncio eleitoral é crime, tendo merecido reprovação pela Comissão Nacional de Eleições (que ordenou remessa ao Ministério Público) e um processo-crime na comarca de Sintra.

Os resultados foram bons para o CDS. Não deu para vencer, o que é quase impossível em eleições para segundo mandato do Presidente da Câmara. Mas foram superadas as trincheiras de 2013 e o CDS aumentou para 19 autarcas, incluindo cinco membros da Assembleia Municipal – números que nunca houvera e boa base para o futuro.

A seguir às eleições, houve movimentações para o poder interno. A distrital defendia que deviam esclarecer-se, primeiro, os factos ocorridos; mas o Secretário-Geral decidiu a eleição imediata, que os contestatários queriam. Foi eleita uma nova comissão concelhia, composta por 49 membros (!!!) – penso ser caso único em Portugal e talvez na Europa. Pouco antes, realizara-se um plenário concelhio, com posições divididas, onde vozes do grupo contestatário contestavam a filiação no CDS de uma vereadora e um Presidente de Junta de Freguesia que, candidatos independentes, optaram pelo CDS, logo a seguir a eleitos. Perguntavam: “Mas como é? Não são do partido e depois vêm para o partido? Vêm mais, é?” De facto, não vieram mais. A mentalidade de quintal não favorece o crescimento. Havia outros que estavam nessa linha, mas, com a mudança de orientação e do espírito local, mantiveram a distância e optaram pelo PSD. Compreende-se bem.

Se a Comissão Nacional de Eleições e o Ministério Público foram tramitando o delito que é da sua competência, os órgãos políticos e jurisdicionais do CDS não viram nada, em objectiva cumplicidade. A Comissão Política, a que pertenciam os dois líderes sintrenses que tinham lançado isto tudo, nunca quis ocupar-se do assunto – e tinha informação suficiente. A Comissão Executiva, também não. O Secretário-Geral, já disse, não quis retardar as eleições até ao esclarecimento dos factos e precipitou a consagração do grupo contestatário. E a Presidente do partido, que me convidara para executar a estratégia da direcção, renomeou para a sua Comissão Política um dos mandantes e actores da contestação, antes de encerrado o caso.

No plano disciplinar, o deboche é total. A distrital apresentou participações logo em Outubro de 2017. Como dois dos participados eram da Comissão Política, a sua responsabilidade cabe ao órgão nacional. Até hoje, que me tenha sido transmitido, o órgão distrital não apreciou, nem decidiu nada. A jurisdição nacional deliberou sobre a primeira participação entrada, mas não recebeu outras duas que continham matéria de prova importante e a jurisdição distrital reteve. Creio que os dois presidentes jurisdicionais combinaram entre si a forma de não haver matéria de prova suficiente para o órgão nacional: o presidente da jurisdição distrital reteve duas participações; e o nacional, em Julho de 2018, despachou impedir a nomeação de testemunhas por parte da comissão distrital do CDS, a participante. Logo a seguir, fui convocado para depor como declarante, não como testemunha que tinha sido recusado. O relator fez correcto entendimento dos seus poderes na instrução do processo – só é pena que o não fizesse quanto a todas as outras testemunhas, nem recuperasse a prova que ficara retida na jurisdição distrital ou ordenasse todas as diligências necessárias. Quando fui depor, fui surpreendido por ter público, o que não me fora notificado: estava a assistir um dos participados e outra pessoa, que presumo o advogado. O relator esclareceu-me, depois, que a falta fora “por esquecimento”. Azares, na verdade. Além das cinco perguntas a que se pretendia confinar-me, aproveitei para narrar o mais relevante e juntar ao processo uma prova insofismável. Pouco depois, recebi a gravação do depoimento, que interessa para confirmar a transcrição processual. Esse envio, a 20 de Julho de 2018, assegura que “assim que o mesmo for passado a escrito será enviado para ser assinado”. A 4 de Outubro, estranhando nada receber, perguntei pela transcrição. O relator justificou o atraso e logo indicou que a receberia em breve. Até hoje. Nada recebi e nada assinei. A 27 de Outubro de 2018, porém, o Conselho Nacional de Jurisdição decidiu que “não tendo sido provado nenhum dos factos”, iam os participados absolvidos e o processo arquivado. Não viram sequer nada do que a CNE e o Ministério Público não tiveram dificuldade em apreender.

É bem sabido que nunca se consegue dar por provado o que não se quer deixar provar. Boa parte da prova continua retida na jurisdição distrital, que nada aprecia, nem decide. O meu depoimento nunca foi verificado por mim, nem assinado, ignorando o que fosse apresentado. As testemunhas do participante foram proibidas e nunca puderam ser ouvidas. E a prova material que apresentei é descartada na decisão de forma caricata, mostrando total incapacidade para apreender o significado dos factos registados informaticamente. A somar a tudo isto, o novo líder concelhio, iniciou uma agressão física a outro militante sintrense, no último Congresso (Março 2018); o agredido travou-a e participou disciplinarmente; tanto quanto se sabe, a jurisdição distrital nada apreciou, nem decidiu.

Os órgãos do partido, políticos e jurisdicionais, acham bem que um grupo de filiados e dirigentes se organizem para combater ao longo da campanha eleitoral as candidaturas próprias, apoiando os adversários, desde que os que agem na sombra sejam amigos de quem manda na secretaria.

Em resumo: além dos que elegeu, o CDS estava a atrair autarcas independentes em Sintra, mas esse processo foi cortado pela mudança de orientação; o CDS que recuperara condições para alargar a sua influência em Sintra, perdeu-as de novo; os dois líderes locais que desencadearam a contestação ganharam, tendo sido renomeados, pelo PS, em 2018, para os lugares de administração no sector público para que haviam sido nomeados pelo governo PSD/CDS (creio serem, no país inteiro, os únicos renomeados pela geringonça); graças ao trabalho do poderoso exército da comissão concelhia sintrense com 49 membros, o CDS obteve nas eleições de 2019 os seguintes resultados: nas europeias 5,2% (contra 8,6% em 2009); nas legislativas 4,4% (contra 14,1% em 2011).

Democracia de qualidade passa por bons valores e pelo respeito das regras. Passa pelo funcionamento idóneo e capaz dos órgãos. E começa certamente na base dos partidos. Mas, na base de tudo, tem de haver sempre rectidão e decência.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 8.Novembro. 2019



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