O 6 de Outubro do CDS-PP: como e porquê?
O Congresso do CDS-PP deste fim-de-semana não foi bem preparado. Face à dimensão da débacle eleitoral, era necessário que o partido tivesse reflectido detidamente, ainda a distância do Congresso, sobre as causas do desastre, assentando nalgumas explicações sérias, não um arremedo de desculpas, nem uma cartucheira de acusações. O partido ganharia com isso, amadurecendo um diagnóstico colectivo, entrando no Congresso liberto desse luto e podendo concentrar-se sobretudo no futuro. Agora, não tem remédio, pois ninguém constrói o futuro sem esclarecer o passado.
Os Estatutos do CDS exigem que as assembleias distritais e os plenários concelhios reúnam nos 45 dias posteriores a cada acto eleitoral, aí se fazendo aqueles debate e avaliação. Tanto quanto sei, foram raríssimos os que o fizeram e, mesmo aí, em forma não preparada e acompanhada pela Direcção nacional. As altas expectativas do Congresso de Lamego (Março 2018) e os resultados obtidos em Outubro 2019 impunham esse esforço de explicação aberta e de prestação de contas. O facto de a Presidente do partido ter anunciado a sua saída, logo na noite eleitoral, não apagou esta necessidade. Pelo contrário, facilitou a tarefa: Assunção Cristas não estaria a defender-se do que quer que fosse, mas a ajudar, junto com a sua Direcção, à compreensão objectiva do que correu bem e do que correu mal. O partido precisava dessa franqueza e desse serviço de toda a Direcção.
Também é negativo que, três meses depois, Paulo Portas continue em silêncio. Presidente do partido desde 1998, com excepção do meu biénio 2005/07, teve papel decisivo na sua sucessão e pesa muito no quotidiano do partido, através dos próximos que continuam a dirigir o CDS. Além disso, alguns dos problemas do partido, cujo preço foi pago agora, vêm de antes de Assunção Cristas. E Paulo Portas, ele próprio, abriu a campanha eleitoral de Outubro de forma negativa para o CDS: apareceu de surpresa em Aveiro, no segundo dia de campanha, montado num título que não existia – mandatário distrital de Aveiro –, ao lado de João Almeida, sem informar a líder Assunção Cristas (em campanha por Bragança) [**], criando uma perturbação nos militantes e na imprensa de que o CDS não precisava de todo. Esse aparecimento não aumentou a cotação do CDS, já muito abalada; ajudou a enfraquecê-la. Era útil que Paulo Portas tivesse já encontrado tempo para dar a sua visão da quebra do CDS de 18 para 5 deputados.
Não digo isto por precisar da opinião de Assunção Cristas, de Paulo Portas ou doutros dirigentes. Mas o CDS precisa. Precisa sobretudo quanto à explicação da Direcção: como um Conselho de Administração que, após um fracasso comercial, reúne com os accionistas para partilhar o que correu mal. Pode sair, mas deve explicar: as bases devem conhecer o que os dirigentes fizeram e relatam, avaliaram e concluem.
Aqui, dou a minha opinião sobre o que aconteceu, percorrendo rapidamente certos pontos, de que alguns poderiam ser melhor tratados separadamente e aprofundados.
1. Um povo sem representação
A derrota eleitoral não é má porque uns deputados perderam o lugar e outros não o ganharam. A derrota é má porque, elegendo menos, o quadrante político do CDS pesa menos e o povo CDS ficou sem representação suficiente para afirmar e defender as suas ideias. Este é que é o revés.
O CDS viu os seus valores, princípios, propostas perderem músculo e os adversários ganharem ainda mais força. Pior, nos próximos quatro anos, veremos a agenda da esquerda avançar em diversos domínios, sem podermos contrariá-la com a força desejável. Por isso, prestar contas é tão importante. Fomos mal servidos, queremos ser melhor servidos.
Na última legislatura, a maioria de esquerda com geringonça já tinha sido má pela sua agenda política, caindo no radicalismo nalguns domínios. Agora, será pior. Há uma maioria de esquerda reforçada: os partidos à direita do PS perderam para a esquerda 21 deputados (20% dos 107 que tinham); e a esquerda avançou mais 170 no arco do Parlamento, consolidando o seu domínio absoluto. Atingiu-se a maior maioria de esquerda de sempre desde 1975, superando até a de 2005. Nunca houve nada assim. Os erros de estratégia e de rumo resultaram nisto.
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São inapropriadas as comparações com o chamado “partido do táxi” (só quatro a cinco deputados do CDS) de 1987 e 1991. Nessas eleições legislativas, os 4,4% que o CDS obteve deveram-se unicamente ao rolo compressor do cavaquismo e ao voto útil no PSD para assegurar maioria absoluta a Cavaco. Mas, nesse mesmo período, o CDS teve votações nas autárquicas de 9,4% e 8,2%, apesar do cerco fortíssimo de que foi alvo por parte do PSD, e votações nas europeias de 15,4%, 14,2% e 12,5%. Quando Cavaco Silva se foi embora em 1995, o CDS subiu de imediato para 9,1%, dentro daquele espaço definido.
Agora, o quadro não tem comparação: os actuais 4,2% são acompanhados pelo pior resultado de sempre nas europeias (6,1%) e baixa cotação nas autárquicas (3,9%) – mesmo simulando a distribuição da votação nas coligações locais com o PSD e outros, a votação autárquica do CDS não iria além de 6% a 7%.
Ao mesmo tempo, a eleição de deputados pelos Chega e Iniciativa Liberal criou um contexto de cerco que nunca existiu: o PSD e estes novos partidos colocam o CDS sob três forças centrífugas – lembra o “triângulo das Bermudas”, aquela área nas Caraíbas onde os aviões desapareciam sem se saber onde, nem como, nem para onde.
2. Três riscos de falência no CDS
Este Congresso realiza-se na data em que passam 45 anos sobre o Congresso do Palácio de Cristal. Lembro-me bem desse dia, como de todo o ano de 1975, o período do PREC. Às vezes, o CDS pareceu estar à beira da falência. Mas, olhando para trás, foi mais fácil, embora duro – e foi também divertido. Tratava-se de enfrentar os nossos adversários, lá fora. Agora, importa vencer os nossos erros, cá dentro. Nem sempre é fácil.
Erros vários colocaram o CDS perante três falências: a falência financeira e patrimonial, a falência orgânica e institucional e a falência moral e identitária.
A primeira (financeira e patrimonial) é aquela de que se tem falado mais. É obviamente séria e muito exigente, agravada pelas notícias que saíram sobre alienação de terrenos no Porto, que estariam reservados para a sede do CDS, e que não estão esclarecidas. Como é que um partido como o CDS está sem sede condigna no Porto, há tantos anos? O que se passou? Seria péssimo que, a acrescer às dificuldades, se juntasse um pântano obscuro. Mas, sendo difícil, esta é, apesar de tudo, a falência cuja resposta é mais fácil.
A segunda (orgânica e institucional) é a que tem liquidado o CDS-PP como corpo colectivo. Os exemplos infelizmente multiplicam-se e os militantes sabem-no. Os últimos casos mais sonantes foram as listas para deputados em 2015 e 2019 e a recente recusa de concretizar a refiliação do ex-líder Manuel Monteiro, em desrespeito frontal das normas estabelecidas. Desde concelhias aos órgãos nacionais e ao grupo parlamentar, foram destruídos os hábitos de funcionamento orgânico regular, de cumprimento dos estatutos e dos regulamentos, de debate apropriado e deliberação colegial. O regime em que o partido se habituou a rolar foi a “voz do chefe”. Abandonou-se a cultura da regularidade, substituindo-a pela manobra frequente. O muito apreciado chavão “somos institucionalistas” é a máscara veneziana que esconde a realidade. Isto matou, a pouco e pouco, o partido, muito estimado como cortejo ou claque. O corpo de um partido só existe, é sabido, se funcionar organicamente, de modo regular, como instituição. Não sendo assim, quando precisamos dele para reagir, para se mobilizar, não está lá, não existe.
A terceira (moral e identitária) é a que foi aumentando enorme perturbação no eleitorado. O que é o CDS-PP? Hoje, muito pouca gente sabe o que é. Se calhar, já ninguém sabe. Há muitas ideias sobre o que deve ser – cada um tem a sua –, mas sobre aquilo que é nenhuma certeza, nenhuma noção clara e segura. Isto é mortal para um partido. Um partido, como tenho dito muitas vezes, é uma ideia em movimento – se essa ideia-chave, essa ideia referencial não é clara e nítida, o partido vale pouco. Ou nada. Independentemente do mérito ou demérito das ideias que afirma. Quando falamos de matriz, muitas ideias ao mesmo tempo são nenhuma ideia. Três referências no mesmo plano não são uma referência, são uma interrogação, uma dúvida.
A imprensa fez gala desta versatilidade, comentando que, com Paulo Portas, o CDS já havia sido isto, ou aquilo, ou ainda aqueloutro. Mas o problema é mais profundo, consistindo no estribilho “conservadores, democrata-cristãos e liberais” ou outras formulações quejandas. Já escrevi muitas vezes sobre isto, procurando explicar o problema e a solução. Este estribilho é a fonte da confusão – e também da desconfiança que foi crescendo em muitos sectores.
3. A questão da identidade
O CDS-PP tem a definição democrata-cristã escrita claramente nos estatutos e no programa partidário. Não oferece dúvida a ninguém. Foram recentes direcções do partido a colocá-lo em dúvida e em crise. Quando há quem se queixe deste debate, é curioso notar que, as mais das vezes, são os mesmos que abriram o debate, ao quererem mudar o que está, o que é.
Sempre houve no CDS sensibilidades mais conservadoras ou mais liberais, mas todas se integravam pacificamente no comum referencial democrata-cristão aceite por todos. Foi o relacionamento com a UEDC que o consolidou. Um processo que se iniciou logo em 1974, num enquadramento natural de vários elementos (declaração de princípios, família política internacional, formação dos dirigentes, oportunidade, maré política) e foi o povo CDS que fez essa escolha.
O estribilho “conservadores, democrata-cristãos e liberais” aparece pela primeira vez nas direcções de Lucas Pires, na ideia de que faria crescer o partido: iria “somar” – sempre disse que iria subtrair. Essa primeira rodada de “conservadores, democrata-cristãos e liberais” conduziu a uma derrota eleitoral de Lucas Pires e, pouco depois, ao primeiro táxi da história do CDS. Não digo que conduziu directamente ao táxi – era, então, um estribilho muito suave. Mas, porque nos aproximou do modelo de partido do PSD (catch-all party ou “partido apanha-todos”), facilitou a migração massiva de voto útil do CDS para o PSD quando as circunstâncias o pressionaram.
Agora, foi pior: foi um dois factores que mais contribuiu para este terceiro táxi da história do CDS. Ultimamente, o estribilho tem sido muito agressivo, envolvendo inúmeras vezes a recusa da democracia-cristã como referencial comum e atacando-a como a “direita confessional”, um disparate afirmado por ignorância ou por má fé. Interessa menos discutir este ataque, mas todos aceitarão que coloca em crise fundamental a identidade do partido. Não são os que falam disto nos órgãos do partido que agitam os que estão fora. É ao contrário: é porque os que estão fora se agitam e falam disto que a inquietação e crítica ecoa para dentro dos órgãos do partido.
Esta crise moral afecta a capacidade de afirmação e de crescimento do partido e prejudica a geração das suas políticas: o referencial doutrinário guarda valores, princípios, teses, ideias fundamentais do partido e é a fonte de onde, pela observação, pelo estudo e pelo debate, brotam continuamente, com coerência, as medidas e as propostas com que o partido vai respondendo aos problemas políticos, económicos e sociais de cada tempo. Se o referencial não é claro, a fonte não existe.
Podemos procurar substituí-lo pelo talento de A ou B, mas isso dura pouco, além de que só resultaria no contexto de um catch-all party. Ora, à direita do PS, esse catch-all party é o PSD. Não há espaço para dois partidos deste mesmo modelo à direita dos socialistas. Essa foi também uma das razões circunstanciais por que o CDS se desenvolveu como um partido doutrinário, no caso, um partido democrata-cristão: não podia seguir um modelo igual. Foi só assim que teve sucesso. E deixou de o ter, sempre que quis mudar de modelo.
O CDS, travestido de catch-all party, torna-se muito vulnerável à absorção pelo PSD, que teve sucesso com este modelo. O CDS, ao querer ser e agir do mesmo modo, ao usar um estribilho de portas giratórias (ora uma coisa, ora outra ou mais outra ainda) e de guichets diversos, descuida a integração de pensamento e abandona parte do seu eleitorado – e, então, este naturalmente vai partindo. Há um valor que se quebra: a confiança – o valor principal da representação democrática.
4. A crise à direita
A quebra do CDS – e também do PSD, acima – culmina vinte anos de declínio à direita. As rotas eleitorais são sempre de sobe-e-desce, mas é curioso notar que, nos primeiros vinte anos, o sobe-e-desce da direita subiu mais do que desceu, enquanto, nos últimos, desceu mais do que subiu.
Valeria a pena estudar o fenómeno, nos protagonistas, nos temas, no discurso, nos processos: duas décadas a avançar sempre, outras duas a decair. A direita também esteve no poder nos últimos vinte anos e foi maioria; mas, à saída destes intervalos na governação PS, caiu sempre para baixo do que estava antes. Partindo de 34% em 1975, PSD ou PSD/CDS foram governo em cinco de nove eleições, com maioria em quatro, chegaram a somar 55% e nunca baixaram de 40%, terminando o ciclo com a derrota de 1995, nos 43,2%. A partir de 1999, foi ao contrário: PSD/CDS partiram de 40,7%, conseguiram subir a 50,4%, tiveram maioria e governaram duas vezes em sete eleições, mas, à saída destes períodos, caíram sempre para baixo dos 40%: 36% (2005), 38,5% (2015), 32% (2019) – agora, até para baixo das eleições constituintes de há 45 anos. Inimaginável!
O reflexo disto é aquilo de que não gostamos: vivemos em regime de maioria de esquerda. A maior de sempre é a que temos agora: suplanta, em número de deputados, a de 2005, o ano da maioria absoluta de José Sócrates. Comparando 2019 com 2011, o último ano em que os partidos tinham concorrido separados, o PSD perdeu muito: 39% do seu eleitorado, quase 2/5. Mas o CDS-PP foi muito pior: perdeu 177%, quase 2/3 do que era.
Em boa medida, esta acentuada quebra do CDS teria ocorrido, com toda a probabilidade, já há quatro anos, se não fossem as listas conjuntas da PàF. O CDS-PP atrasou muito a opção pelas listas conjuntas, ao longo de 2014, atraso que pode ter custado a indispensável maioria absoluta. Depois, qui-las e o PSD ainda aceitou, sendo anunciadas no fim de Abril 2015. Se as não houvesse, o CDS seria o maior perdedor, por efeito do voto útil e pelo preço da crise “irrevogável” de Julho 2013. Bastaria o PSD, mesmo sem ser acintoso, recordar, nos tempos de antena, trechos do discurso de Pedro Passos Coelho nessa noite de todos os perigos – “Não me demito. Não abandono o meu País.” O efeito seria devastador na votação do CDS: não teríamos certamente 18 deputados, embora a soma dos dois partidos pudesse ser a mesma ou próxima da obtida.
Por curiosidade, fiz, agora, uma simulação dos últimos resultados de Outubro 2019, como se PSD e CDS tivessem concorrido outra vez com listas conjuntas, aplicando a mesma repartição de lugares de 2015 – não haveria, aliás, razão, nem base para fazer de outra maneira. Essa PàF renovada em 2019 teria eleito mais 6 deputados: isto é, teria 90, em vez de 84, ganhando cinco deputados ao PS e um à CDU. Mas o grande beneficiado seria o CDS-PP, que teria conseguido 13 deputados, já que o PSD perderia dois nas listas conjuntas.
Esta é outra das consequências muito negativas dos erros estratégicos das direcções do CDS nestes últimos anos: a deterioração muito acentuada do peso relativo entre PSD e CDS. Aquando da primeira AD, em 1979/80, a relação de forças CDS/PSD era de dois para três: dois deputados CDS para cada três do PSD. Na PàF em 2015 (e na que simulei para 2019), essa relação era de um para três: um deputado CDS em cada três PSD. Para o futuro, enquanto a base for esta última de 2019, eventuais listas conjuntas para as legislativas teriam de ser feitas numa relação de um para sete: sete deputados do PSD para cada um do CDS.
5. O erro de abordagem dos resultados eleitorais de 2015
Há erros que vinham de trás, mas o mais determinante foi o erro de leitura dos resultados eleitorais de Outubro 2015. Como já escrevi várias vezes, a narrativa “Ganhámos!” não correspondia à realidade: PSD/CDS foram os mais votados, PSD tinha o maior grupo de deputados, mas não houve uma vitória no sentido de se dispor de uma maioria de governo. Como se sabia desde a AD histórica (1979/80), era indispensável a maioria absoluta. A Assembleia ficou nas mãos de uma maioria de esquerda e foi por isso que o PS, não tendo ganho, conseguiu governar com o apoio da geringonça. Esse discurso de vitória, repetido ao longo de quatro anos – e ainda hoje... – distraiu-nos da realidade, enganou boa parte da base de apoio e enfraqueceu o ânimo para o contra-ataque. A alguns, pareceu mau perder – e afastaram-se. E fez-nos negligenciar a prioridade imediata, que era ganhar as eleições autárquicas, assim invertendo o ciclo da legislatura. Quem ganha não precisa de mudar. Ora, nós não tínhamos vencido – e, para vencer verdadeiramente, tínhamos de mudar e fazer melhor.
Quem estivesse efectivamente indignado com a geringonça, as “esquerdas unidas”, as “esquerdas encostadas”, só podia ter uma prioridade: ganhar as eleições seguintes, as autárquicas; equilibrar o tabuleiro; provar que a relação de forças mudava. Foi o que chamei “estratégia do mapa cor-de-rosa”: identificar os concelhos que se procuraria retirar ao PS, apoiando candidaturas lideradas pelo PSD ou pelo CDS, conforme o melhor colocado. Alvejando 40 a 50, seria necessário que PSD/CDS recuperassem 25. Esse esforço não foi feito. Houve uma abordagem frouxa no contexto da geringonça e o CDS partiu à conquista da taça em Lisboa. O PS, que já tivera o seu melhor resultado de sempre em 2013 (150 municípios), conseguiu subir ainda mais em 2017 (161 municípios). Perdeu-se a última oportunidade antes do ano eleitoral de 2019 de provocar mossa no PS e abalar a geringonça. A esquerda fortaleceu-se e continuou em alta. A abordagem de 2019 tornou-se mais problemática.
A narrativa “Ganhámos!” – uma burla auto-induzida, como já lhe chamei – não ficou por aqui: foi acompanhada da tese “acabou o voto útil”, profusamente repetida em novo engano a militantes e eleitores. O voto útil nunca acaba, como se sabe; varia com as circunstâncias. O CDS e Assunção Cristas, por exemplo, beneficiaram dele nas autárquicas em Lisboa. O CDS acabaria por pagar também o preço desse outro engano em 2019. Curiosamente, pesada ironia, a campanha eleitoral acabou com este título: “Cristas, Portas e Magalhães em uníssono no apelo ao voto útil”.
6. O erro de leitura das autárquicas
Como se não tivesse bastado o erro de desvalorizar as autárquicas no ciclo político, seguiu-se o erro de leitura dos resultados das autárquicas. A alta direcção do CDS embandeirou em arco com os 21% de Lisboa e anteviu-se triunfante no país, sobre o PSD. Não sopesou as circunstâncias especialíssimas daquela eleição em Lisboa, não ponderou as três votações de 21%, 17% e 14% em Lisboa (Câmara, Assembleia e freguesias) – qualquer delas muito boa, diga-se – e não se deteve na votação autárquica do CDS a nível nacional: qualquer coisa entre 6% e 7%, repartindo os votos de várias coligações feitas.
A euforia de descolagem do PSD e da corrida para o suplantar abalou a parceria estratégica que importava manter e fortalecer face à maioria de esquerda (poderia ter tido consequências fatais) e culminou o Congresso de Lamego, em Março 2018. Este momento exuberante, em modo “Foi gira a festa, pá!”, é importante e decisivo, pois aí podemos ver e recordar como o erro não foi só de Assunção Cristas, a líder do partido, a prometida primeira-ministra, protagonista da estratégia. O erro foi de toda a Direcção e de muitos que a seguiram, precederam e acompanharam, na explosão festiva daquele Congresso e meses seguintes.
7. A competição com o PSD como prioridade
No que compreendi, o objectivo real da direcção do CDS não era o de derrotar a geringonça, mas o de suplantar o PSD. Já parecia assim anteriormente, mas, a partir de Lamego, foi claro. Não era muito afirmado, mas contava-se também com a crise do PSD, desde já o tempo da liderança anterior. Foi feito muito pouco esforço para vencer a maioria de esquerda e o grosso da acção política foi concentrado em competir com o PSD. Inclusive, o CDS, quebrando o protocolo habitual, acolheu com palavras simpáticas a formação do Aliança, embrulhando tudo no discurso dos “todos contam para os 116 deputados”. Como sabemos, acabámos com 86, contando já com Chega e Iniciativa Liberal…
A demarcação sibilina do PSD já vinha da direcção de Paulo Portas, nos tempos exigentes da coligação de governo. Foram vários os sinais dados ao longo do governo PSD/CDS, por indirectas e notícias e comentários em off de fontes do CDS altamente colocadas. Isto prejudicou – creio – a compreensão pública das medidas adoptadas, apesar do sucesso geral que tiveram, em execução do programa de reajustamento 2011/14. Na mesma medida, contribuiu para que a coligação não vencesse em 2015 com a indispensável maioria absoluta. Como é que se consegue explicar às pessoas que medidas duras eram efectivamente imprescindíveis para salvar o país da bancarrota, quando, de dentro do governo, fontes ecoam repetidamente que queriam outras medidas mais suaves?
O momento mais alto desta falta de sintonia foi a crise de Julho 2013, quando Paulo Portas surpreendeu com a sua demissão irrevogável, apontando directamente aos ministros das Finanças: ao que saíra e à que entrava. Esta crise teria efeitos catastróficos para o país – o CDS era um pormenor – se não fosse o sangue-frio de Pedro Passos Coelho.
Pouco antes, houvera outro sinal desta estratégia relacional, um exemplo entre dezenas que foram acontecendo: um conjunto de deputados do CDS, certamente articulados com o Presidente do partido, entraram a desafiar publicamente o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, com a pergunta: por que nunca acerta nas previsões? Curiosamente, isto foi feito na altura em que, por fim, a crise se inverte e os indicadores começam a ser favoráveis, confirmando a saída de Portugal da tremenda crise em que caíra, tudo sem “segundo resgate”, nem “espiral recessiva”, que eram o “diabo” então agitado pelo PS e outros críticos.
Agora, o quadro não tem comparação: os actuais 4,2% são acompanhados pelo pior resultado de sempre nas europeias (6,1%) e baixa cotação nas autárquicas (3,9%) – mesmo simulando a distribuição da votação nas coligações locais com o PSD e outros, a votação autárquica do CDS não iria além de 6% a 7%.
Ao mesmo tempo, a eleição de deputados pelos Chega e Iniciativa Liberal criou um contexto de cerco que nunca existiu: o PSD e estes novos partidos colocam o CDS sob três forças centrífugas – lembra o “triângulo das Bermudas”, aquela área nas Caraíbas onde os aviões desapareciam sem se saber onde, nem como, nem para onde.
2. Três riscos de falência no CDS
Este Congresso realiza-se na data em que passam 45 anos sobre o Congresso do Palácio de Cristal. Lembro-me bem desse dia, como de todo o ano de 1975, o período do PREC. Às vezes, o CDS pareceu estar à beira da falência. Mas, olhando para trás, foi mais fácil, embora duro – e foi também divertido. Tratava-se de enfrentar os nossos adversários, lá fora. Agora, importa vencer os nossos erros, cá dentro. Nem sempre é fácil.
Erros vários colocaram o CDS perante três falências: a falência financeira e patrimonial, a falência orgânica e institucional e a falência moral e identitária.
A primeira (financeira e patrimonial) é aquela de que se tem falado mais. É obviamente séria e muito exigente, agravada pelas notícias que saíram sobre alienação de terrenos no Porto, que estariam reservados para a sede do CDS, e que não estão esclarecidas. Como é que um partido como o CDS está sem sede condigna no Porto, há tantos anos? O que se passou? Seria péssimo que, a acrescer às dificuldades, se juntasse um pântano obscuro. Mas, sendo difícil, esta é, apesar de tudo, a falência cuja resposta é mais fácil.
A segunda (orgânica e institucional) é a que tem liquidado o CDS-PP como corpo colectivo. Os exemplos infelizmente multiplicam-se e os militantes sabem-no. Os últimos casos mais sonantes foram as listas para deputados em 2015 e 2019 e a recente recusa de concretizar a refiliação do ex-líder Manuel Monteiro, em desrespeito frontal das normas estabelecidas. Desde concelhias aos órgãos nacionais e ao grupo parlamentar, foram destruídos os hábitos de funcionamento orgânico regular, de cumprimento dos estatutos e dos regulamentos, de debate apropriado e deliberação colegial. O regime em que o partido se habituou a rolar foi a “voz do chefe”. Abandonou-se a cultura da regularidade, substituindo-a pela manobra frequente. O muito apreciado chavão “somos institucionalistas” é a máscara veneziana que esconde a realidade. Isto matou, a pouco e pouco, o partido, muito estimado como cortejo ou claque. O corpo de um partido só existe, é sabido, se funcionar organicamente, de modo regular, como instituição. Não sendo assim, quando precisamos dele para reagir, para se mobilizar, não está lá, não existe.
A terceira (moral e identitária) é a que foi aumentando enorme perturbação no eleitorado. O que é o CDS-PP? Hoje, muito pouca gente sabe o que é. Se calhar, já ninguém sabe. Há muitas ideias sobre o que deve ser – cada um tem a sua –, mas sobre aquilo que é nenhuma certeza, nenhuma noção clara e segura. Isto é mortal para um partido. Um partido, como tenho dito muitas vezes, é uma ideia em movimento – se essa ideia-chave, essa ideia referencial não é clara e nítida, o partido vale pouco. Ou nada. Independentemente do mérito ou demérito das ideias que afirma. Quando falamos de matriz, muitas ideias ao mesmo tempo são nenhuma ideia. Três referências no mesmo plano não são uma referência, são uma interrogação, uma dúvida.
A imprensa fez gala desta versatilidade, comentando que, com Paulo Portas, o CDS já havia sido isto, ou aquilo, ou ainda aqueloutro. Mas o problema é mais profundo, consistindo no estribilho “conservadores, democrata-cristãos e liberais” ou outras formulações quejandas. Já escrevi muitas vezes sobre isto, procurando explicar o problema e a solução. Este estribilho é a fonte da confusão – e também da desconfiança que foi crescendo em muitos sectores.
3. A questão da identidade
O CDS-PP tem a definição democrata-cristã escrita claramente nos estatutos e no programa partidário. Não oferece dúvida a ninguém. Foram recentes direcções do partido a colocá-lo em dúvida e em crise. Quando há quem se queixe deste debate, é curioso notar que, as mais das vezes, são os mesmos que abriram o debate, ao quererem mudar o que está, o que é.
Sempre houve no CDS sensibilidades mais conservadoras ou mais liberais, mas todas se integravam pacificamente no comum referencial democrata-cristão aceite por todos. Foi o relacionamento com a UEDC que o consolidou. Um processo que se iniciou logo em 1974, num enquadramento natural de vários elementos (declaração de princípios, família política internacional, formação dos dirigentes, oportunidade, maré política) e foi o povo CDS que fez essa escolha.
O estribilho “conservadores, democrata-cristãos e liberais” aparece pela primeira vez nas direcções de Lucas Pires, na ideia de que faria crescer o partido: iria “somar” – sempre disse que iria subtrair. Essa primeira rodada de “conservadores, democrata-cristãos e liberais” conduziu a uma derrota eleitoral de Lucas Pires e, pouco depois, ao primeiro táxi da história do CDS. Não digo que conduziu directamente ao táxi – era, então, um estribilho muito suave. Mas, porque nos aproximou do modelo de partido do PSD (catch-all party ou “partido apanha-todos”), facilitou a migração massiva de voto útil do CDS para o PSD quando as circunstâncias o pressionaram.
Agora, foi pior: foi um dois factores que mais contribuiu para este terceiro táxi da história do CDS. Ultimamente, o estribilho tem sido muito agressivo, envolvendo inúmeras vezes a recusa da democracia-cristã como referencial comum e atacando-a como a “direita confessional”, um disparate afirmado por ignorância ou por má fé. Interessa menos discutir este ataque, mas todos aceitarão que coloca em crise fundamental a identidade do partido. Não são os que falam disto nos órgãos do partido que agitam os que estão fora. É ao contrário: é porque os que estão fora se agitam e falam disto que a inquietação e crítica ecoa para dentro dos órgãos do partido.
Esta crise moral afecta a capacidade de afirmação e de crescimento do partido e prejudica a geração das suas políticas: o referencial doutrinário guarda valores, princípios, teses, ideias fundamentais do partido e é a fonte de onde, pela observação, pelo estudo e pelo debate, brotam continuamente, com coerência, as medidas e as propostas com que o partido vai respondendo aos problemas políticos, económicos e sociais de cada tempo. Se o referencial não é claro, a fonte não existe.
Podemos procurar substituí-lo pelo talento de A ou B, mas isso dura pouco, além de que só resultaria no contexto de um catch-all party. Ora, à direita do PS, esse catch-all party é o PSD. Não há espaço para dois partidos deste mesmo modelo à direita dos socialistas. Essa foi também uma das razões circunstanciais por que o CDS se desenvolveu como um partido doutrinário, no caso, um partido democrata-cristão: não podia seguir um modelo igual. Foi só assim que teve sucesso. E deixou de o ter, sempre que quis mudar de modelo.
O CDS, travestido de catch-all party, torna-se muito vulnerável à absorção pelo PSD, que teve sucesso com este modelo. O CDS, ao querer ser e agir do mesmo modo, ao usar um estribilho de portas giratórias (ora uma coisa, ora outra ou mais outra ainda) e de guichets diversos, descuida a integração de pensamento e abandona parte do seu eleitorado – e, então, este naturalmente vai partindo. Há um valor que se quebra: a confiança – o valor principal da representação democrática.
4. A crise à direita
A quebra do CDS – e também do PSD, acima – culmina vinte anos de declínio à direita. As rotas eleitorais são sempre de sobe-e-desce, mas é curioso notar que, nos primeiros vinte anos, o sobe-e-desce da direita subiu mais do que desceu, enquanto, nos últimos, desceu mais do que subiu.
Valeria a pena estudar o fenómeno, nos protagonistas, nos temas, no discurso, nos processos: duas décadas a avançar sempre, outras duas a decair. A direita também esteve no poder nos últimos vinte anos e foi maioria; mas, à saída destes intervalos na governação PS, caiu sempre para baixo do que estava antes. Partindo de 34% em 1975, PSD ou PSD/CDS foram governo em cinco de nove eleições, com maioria em quatro, chegaram a somar 55% e nunca baixaram de 40%, terminando o ciclo com a derrota de 1995, nos 43,2%. A partir de 1999, foi ao contrário: PSD/CDS partiram de 40,7%, conseguiram subir a 50,4%, tiveram maioria e governaram duas vezes em sete eleições, mas, à saída destes períodos, caíram sempre para baixo dos 40%: 36% (2005), 38,5% (2015), 32% (2019) – agora, até para baixo das eleições constituintes de há 45 anos. Inimaginável!
O reflexo disto é aquilo de que não gostamos: vivemos em regime de maioria de esquerda. A maior de sempre é a que temos agora: suplanta, em número de deputados, a de 2005, o ano da maioria absoluta de José Sócrates. Comparando 2019 com 2011, o último ano em que os partidos tinham concorrido separados, o PSD perdeu muito: 39% do seu eleitorado, quase 2/5. Mas o CDS-PP foi muito pior: perdeu 177%, quase 2/3 do que era.
Em boa medida, esta acentuada quebra do CDS teria ocorrido, com toda a probabilidade, já há quatro anos, se não fossem as listas conjuntas da PàF. O CDS-PP atrasou muito a opção pelas listas conjuntas, ao longo de 2014, atraso que pode ter custado a indispensável maioria absoluta. Depois, qui-las e o PSD ainda aceitou, sendo anunciadas no fim de Abril 2015. Se as não houvesse, o CDS seria o maior perdedor, por efeito do voto útil e pelo preço da crise “irrevogável” de Julho 2013. Bastaria o PSD, mesmo sem ser acintoso, recordar, nos tempos de antena, trechos do discurso de Pedro Passos Coelho nessa noite de todos os perigos – “Não me demito. Não abandono o meu País.” O efeito seria devastador na votação do CDS: não teríamos certamente 18 deputados, embora a soma dos dois partidos pudesse ser a mesma ou próxima da obtida.
Por curiosidade, fiz, agora, uma simulação dos últimos resultados de Outubro 2019, como se PSD e CDS tivessem concorrido outra vez com listas conjuntas, aplicando a mesma repartição de lugares de 2015 – não haveria, aliás, razão, nem base para fazer de outra maneira. Essa PàF renovada em 2019 teria eleito mais 6 deputados: isto é, teria 90, em vez de 84, ganhando cinco deputados ao PS e um à CDU. Mas o grande beneficiado seria o CDS-PP, que teria conseguido 13 deputados, já que o PSD perderia dois nas listas conjuntas.
Esta é outra das consequências muito negativas dos erros estratégicos das direcções do CDS nestes últimos anos: a deterioração muito acentuada do peso relativo entre PSD e CDS. Aquando da primeira AD, em 1979/80, a relação de forças CDS/PSD era de dois para três: dois deputados CDS para cada três do PSD. Na PàF em 2015 (e na que simulei para 2019), essa relação era de um para três: um deputado CDS em cada três PSD. Para o futuro, enquanto a base for esta última de 2019, eventuais listas conjuntas para as legislativas teriam de ser feitas numa relação de um para sete: sete deputados do PSD para cada um do CDS.
5. O erro de abordagem dos resultados eleitorais de 2015
Há erros que vinham de trás, mas o mais determinante foi o erro de leitura dos resultados eleitorais de Outubro 2015. Como já escrevi várias vezes, a narrativa “Ganhámos!” não correspondia à realidade: PSD/CDS foram os mais votados, PSD tinha o maior grupo de deputados, mas não houve uma vitória no sentido de se dispor de uma maioria de governo. Como se sabia desde a AD histórica (1979/80), era indispensável a maioria absoluta. A Assembleia ficou nas mãos de uma maioria de esquerda e foi por isso que o PS, não tendo ganho, conseguiu governar com o apoio da geringonça. Esse discurso de vitória, repetido ao longo de quatro anos – e ainda hoje... – distraiu-nos da realidade, enganou boa parte da base de apoio e enfraqueceu o ânimo para o contra-ataque. A alguns, pareceu mau perder – e afastaram-se. E fez-nos negligenciar a prioridade imediata, que era ganhar as eleições autárquicas, assim invertendo o ciclo da legislatura. Quem ganha não precisa de mudar. Ora, nós não tínhamos vencido – e, para vencer verdadeiramente, tínhamos de mudar e fazer melhor.
Quem estivesse efectivamente indignado com a geringonça, as “esquerdas unidas”, as “esquerdas encostadas”, só podia ter uma prioridade: ganhar as eleições seguintes, as autárquicas; equilibrar o tabuleiro; provar que a relação de forças mudava. Foi o que chamei “estratégia do mapa cor-de-rosa”: identificar os concelhos que se procuraria retirar ao PS, apoiando candidaturas lideradas pelo PSD ou pelo CDS, conforme o melhor colocado. Alvejando 40 a 50, seria necessário que PSD/CDS recuperassem 25. Esse esforço não foi feito. Houve uma abordagem frouxa no contexto da geringonça e o CDS partiu à conquista da taça em Lisboa. O PS, que já tivera o seu melhor resultado de sempre em 2013 (150 municípios), conseguiu subir ainda mais em 2017 (161 municípios). Perdeu-se a última oportunidade antes do ano eleitoral de 2019 de provocar mossa no PS e abalar a geringonça. A esquerda fortaleceu-se e continuou em alta. A abordagem de 2019 tornou-se mais problemática.
A narrativa “Ganhámos!” – uma burla auto-induzida, como já lhe chamei – não ficou por aqui: foi acompanhada da tese “acabou o voto útil”, profusamente repetida em novo engano a militantes e eleitores. O voto útil nunca acaba, como se sabe; varia com as circunstâncias. O CDS e Assunção Cristas, por exemplo, beneficiaram dele nas autárquicas em Lisboa. O CDS acabaria por pagar também o preço desse outro engano em 2019. Curiosamente, pesada ironia, a campanha eleitoral acabou com este título: “Cristas, Portas e Magalhães em uníssono no apelo ao voto útil”.
6. O erro de leitura das autárquicas
Como se não tivesse bastado o erro de desvalorizar as autárquicas no ciclo político, seguiu-se o erro de leitura dos resultados das autárquicas. A alta direcção do CDS embandeirou em arco com os 21% de Lisboa e anteviu-se triunfante no país, sobre o PSD. Não sopesou as circunstâncias especialíssimas daquela eleição em Lisboa, não ponderou as três votações de 21%, 17% e 14% em Lisboa (Câmara, Assembleia e freguesias) – qualquer delas muito boa, diga-se – e não se deteve na votação autárquica do CDS a nível nacional: qualquer coisa entre 6% e 7%, repartindo os votos de várias coligações feitas.
A euforia de descolagem do PSD e da corrida para o suplantar abalou a parceria estratégica que importava manter e fortalecer face à maioria de esquerda (poderia ter tido consequências fatais) e culminou o Congresso de Lamego, em Março 2018. Este momento exuberante, em modo “Foi gira a festa, pá!”, é importante e decisivo, pois aí podemos ver e recordar como o erro não foi só de Assunção Cristas, a líder do partido, a prometida primeira-ministra, protagonista da estratégia. O erro foi de toda a Direcção e de muitos que a seguiram, precederam e acompanharam, na explosão festiva daquele Congresso e meses seguintes.
7. A competição com o PSD como prioridade
No que compreendi, o objectivo real da direcção do CDS não era o de derrotar a geringonça, mas o de suplantar o PSD. Já parecia assim anteriormente, mas, a partir de Lamego, foi claro. Não era muito afirmado, mas contava-se também com a crise do PSD, desde já o tempo da liderança anterior. Foi feito muito pouco esforço para vencer a maioria de esquerda e o grosso da acção política foi concentrado em competir com o PSD. Inclusive, o CDS, quebrando o protocolo habitual, acolheu com palavras simpáticas a formação do Aliança, embrulhando tudo no discurso dos “todos contam para os 116 deputados”. Como sabemos, acabámos com 86, contando já com Chega e Iniciativa Liberal…
A demarcação sibilina do PSD já vinha da direcção de Paulo Portas, nos tempos exigentes da coligação de governo. Foram vários os sinais dados ao longo do governo PSD/CDS, por indirectas e notícias e comentários em off de fontes do CDS altamente colocadas. Isto prejudicou – creio – a compreensão pública das medidas adoptadas, apesar do sucesso geral que tiveram, em execução do programa de reajustamento 2011/14. Na mesma medida, contribuiu para que a coligação não vencesse em 2015 com a indispensável maioria absoluta. Como é que se consegue explicar às pessoas que medidas duras eram efectivamente imprescindíveis para salvar o país da bancarrota, quando, de dentro do governo, fontes ecoam repetidamente que queriam outras medidas mais suaves?
O momento mais alto desta falta de sintonia foi a crise de Julho 2013, quando Paulo Portas surpreendeu com a sua demissão irrevogável, apontando directamente aos ministros das Finanças: ao que saíra e à que entrava. Esta crise teria efeitos catastróficos para o país – o CDS era um pormenor – se não fosse o sangue-frio de Pedro Passos Coelho.
Pouco antes, houvera outro sinal desta estratégia relacional, um exemplo entre dezenas que foram acontecendo: um conjunto de deputados do CDS, certamente articulados com o Presidente do partido, entraram a desafiar publicamente o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, com a pergunta: por que nunca acerta nas previsões? Curiosamente, isto foi feito na altura em que, por fim, a crise se inverte e os indicadores começam a ser favoráveis, confirmando a saída de Portugal da tremenda crise em que caíra, tudo sem “segundo resgate”, nem “espiral recessiva”, que eram o “diabo” então agitado pelo PS e outros críticos.
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8. O paradoxo do discurso simpático
Este tipo de actuações dúplices, procurando aparecer sempre do lado simpático, explica o paradoxo absurdo dessa legislatura 2011/15: dois partidos fazem um trabalho extraordinário de aplicação de um programa de reajustamento num quadro muito duro e perigoso, conseguindo repor Portugal no caminho do crescimento, mas quase ninguém dá crédito a esses dois partidos pelo êxito da recuperação, nem cobra ao causador da desgraça o preço político pelo desastre em que nos lançou.
Ao longo da legislatura da geringonça este paradoxo continuou e agravou-se, graças a um discurso de passo trocado, difícil de compreender e impossível de explicar. CDS e PSD, agora na oposição, apareceram muitas vezes a criticar cativações e outros instrumentos orçamentais de redução ou contenção da despesa pública, desvalorizando o objectivo de eliminação do défice. Esta linha tem sido errada. PSD e CDS deveriam ter mantido a liderança no discurso das contas certas, em vez de a entregar ao PS e até já ao BE – como estamos mudados… PSD e CDS deveriam apoiar o défice zero e os primeiros superavits, saudando enfaticamente a continuação do trabalho que iniciaram, embora criticando métodos, estratégias e medidas sectoriais de que discordassem. Assim, além de poder apagar-se de vez na opinião pública o crédito e o mérito da parte mais difícil deste percurso, após o resgate de 2011, qualquer dia ainda se fica com a fama de sermos nós os despesistas.
Em parte, isto foi ainda um dos efeitos do mau perder do início da legislatura, reflexo da ideia “Ganhámos!”, e do tique superficial da oposição: somos da oposição, somos contra. Ecoou logo nos discursos do início da legislatura, antes ainda de se chegar ao governo António Costa. Paulo Portas, de novo vice-primeiro-ministro no governo breve de 2015, disse assim ao futuro primeiro-ministro: “Não seremos cúmplices. (…) Terá de resolver os seus problemas com a frente dos perdedores”. Curiosamente, foi este o discurso a ser repescado por dirigentes e deputados do CDS para dar cobertura e atenuar o impacto político interno no aperto desastrado da “crise dos professores”. O trecho do discurso agora invocado foi este: “Se mais à frente se vir aflito, se não conseguir gerir a pressão explosiva – e podem crer que será explosiva – da demagogia em competição do BE e do PCP por um lado, e do realismo de Bruxelas por outro, não venha depois pedir socorro”. A ideia subjacente a esta repescagem foi a de que estaria certo alinhar com BE e PCP para pôr o PS em dificuldades. Um disparate completo.
O PSD definira orientação similar em 2015. Ora, essa praga política de isolamento do PS, vista como tese estratégica, foi rapidamente posta à prova em dois dossiers muito complicados: o do BANIF e o da recapitalização da Caixa. No primeiro, o CDS seguiu a linha dura, mas o PSD viabilizou a decisão. Na Caixa, foi ao contrário: o PSD foi contra, mas o CDS viabilizou. Se ambos os partidos tivessem agido, concertadamente, nestas votações, como viriam a agir na “crise dos professores”, teriam sofrido consequências pesadíssimas e talvez irreversíveis: a crise descontrolada desses bancos afectaria duramente muito largos milhares de portugueses, o sistema financeiro e a economia. Seria uma catástrofe. Ainda bem que o discurso, aí, ficou sabiamente na gaveta.
9. Os ignorados sinais das sondagens
Vendo tudo em retrospectiva, impressiona como o quadro geral das sondagens que se foram publicando, ao longo da legislatura, não apoiava o desenvolvimento da estratégia de corrida isolada do CDS. E, todavia, a Direcção persistiu sempre nela e deu-lhe mais vento a seguir ao Congresso de Lamego. Basta dar uma olhada num gráfico, que pode construir-se directamente no site da Marktest, onde se agregam os indicadores de todas as sondagens nacionais publicadas desde há alguns anos. Este gráfico mostra as sondagens dos últimos quatro anos, isto é, após as eleições que deram a geringonça (4.out.2015).
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O que é que o quadro mostra? Mostra que os partidos da geringonça cedo consolidaram a sua vantagem e que o PS assumiu a liderança e foi-se destacando a partir de Março 2016. Mostra também que os partidos à direita entram em perda: o CDS estava em valores irrisórios quando Paulo Portas saiu e, a seguir, já com Assunção Cristas, oscila em valores na casa dos 5%-7%; e o PSD baixa da casa dos 30%, no início de 2017, e nunca mais voltou a subir.
Ou seja, as sondagens mostram claramente que os dois partidos tinham que concertar estratégias, afinar discursos e melhorar muito a acção política, se queriam verdadeiramente bater a geringonça e causar mossa ao PS. Não se passou nada disso. E, como referi, fomos perder as autárquicas.
A seguir às autárquicas, incluindo os cintilantes resultados de Lisboa, o CDS aparece nas sondagens nacionais com 6,0% e 6,1%... – quem ia, então, com as velas enfunadas era o PS, surgindo com 41% e 43,4%. Ou seja, o quadro geral de preocupação, se se queria vencer a geringonça, manteve-se inalterado e exigente.
Surge, depois, o Aliança, ao mesmo tempo que a luta interna no PSD prossegue muito dura até final de Janeiro 2019. Em nenhum momento, houve sinal de se querer enfrentar a geringonça e de construir uma nova maioria: o PSD tratava de si, porque havia disputa interna; e o CDS tratava também de si, porque aspirava a altos voos. A maioria de esquerda podia seguir descansada.
As europeias, a seguir, mostraram que foram muito mal preparadas. E, contra as entradas de leão, confirmaram os indizíveis resultados de 2014 (27,7%, com listas conjuntas PSD/CDS): agora, 28,1% com listas separadas – PSD 21,9%; CDS-PP 6,2%. Uma vez mais, muito abaixo das eleições de 1975! Inimaginável.
Foi uma campanha sem discurso, sem projecto, sem candidatura, sem novidade, ao modo mais do mesmo. E, por isso, nas sondagens específicas para as europeias, como o quadro seguinte mostra, foi sempre a descer nas intenções de voto desde que começou a pré-campanha.
Nem pode dizer-se com segurança que o péssimo resultado eleitoral foi efeito da crise dos professores. Esta foi, na verdade, a todos os títulos deplorável e pesou em toda a imagem do CDS (assim como do PSD) até às legislativas de Outubro; mas, a avaliar pela sequência das sondagens para o voto nas europeias, a quebra no CDS era forte já antes da crise dos professores e os efeitos directos desta, se os houve logo, teriam demorado 15 dias a produzir-se. Houve outros factores que pesaram nessa evolução negativa.
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10. O desfalecimento na noite das europeias
Este resultado do CDS nas europeias foi fatal para o percurso seguinte até às legislativas. Depois de se ter desperdiçado as autárquicas, era indispensável ter um muito bom resultado nas europeias, que funcionasse como rampa de lançamento. Aconteceu o contrário quer ao CDS, quer ao PSD. A rampa, afinal, era a descer: apontava para baixo.
No caso do CDS, a questão era mais grave, pois o CDS tinha construído como principal discurso mobilizador, desde o Congresso de Lamego, o “foguetão Assunção Cristas”: a líder vai à frente, muito alto, e nós vamos atrás. O excelente resultado nas europeias – recuperar o segundo eurodeputado ou eleger mesmo o terceiro, como foi dito no arranque – era de importância capital para confirmar o “foguetão” e levar tudo, em alta velocidade e grande entusiasmo, até ao êxito final em Outubro.
Ora, em Maio, tudo enguiçou: “the spell broke” – quebrou-se o encanto. A partir daí, o CDS nunca mais foi o mesmo, nunca conseguiu renovar ou substituir o discurso do “foguetão” e fez em esforço o resto do caminho até Outubro. O CDS ficou derrotado na noite das europeias. Foi claramente visível e muito contrastante com o PSD.
A direita foi confrontada com a perspectiva de ver uma maioria de esquerda com maioria de 2/3 na Assembleia da República, o que ainda conseguiu impedir-se. O PSD mobilizou-se e, depois de ter quebrado nas sondagens para um pouco abaixo dos valores das europeias, recuperou e subiu até aos 27,8%. O ambiente dirigente no CDS nunca pareceu muito coeso e solidário – Assunção Cristas nunca dispôs dos seus pares de defesas vigorosas à altura de uma líder partidária, quando, por ser líder do partido, passou a ser alvejada directamente por causa da lei das rendas e dos eucaliptos.
Após o tombo das europeias, o CDS deu ideia de ter deixado Assunção Cristas sozinha. Pouco ou nada mobilizou e pareceu estar a cumprir calendário. O melhor da campanha foram os debates de Assunção Cristas – um deles muitíssimo bom. Mas o tom geral era mortiço e conformado, com aquele toque a despropósito de Paulo Portas, no segundo dia de campanha, que os experimentados intérpretes logo sussurraram significar uma demissão e a nomeação seguinte.
11. Próxima etapa
A primeira chamada sobre o CDS-PP é a de que aprenda com tudo o que aconteceu e não se deixe enfraquecer mais pela derrota. As derrotas são frequentemente mais mestras do que as vitórias. Ganhar é melhor, mas muitas vezes encadeia e deslumbra. Perder é pior, mas para quem é atento e gosta de ir à luta vem carregado de lições. Esta derrota foi muito grande. Oxalá venha cheia de lições e todos no CDS as saibam conhecer e apreender.
A outra chamada para o CDS é a de concorrer de forma determinante para a alternativa. Alternativa é uma palavra-matriz e um conceito-chave na formação do CDS, tão cardeais quanto o pensamento personalista e a identidade democrata-cristã.
Essa alternativa deve exprimir-se numa Nova Maioria em 2023 – ou, mais cedo ainda, se as circunstâncias precipitarem a oportunidade e a concreta chamada. O CDS não pode perder esse tempo.
O CDS-PP é apenas uma parte dessa Nova Maioria, mas deve procurar ser sinal e ponteiro da Alternativa. Creio que Portugal precisa disso. Precisaremos de trabalhar com todos que possam validamente contribuir para essa ambição, nomeadamente o nosso mais antigo parceiro, o PSD.
Para isso, temos de voltar ao terreno devidamente reconstruídos, com a identidade clara, por forma a merecer de novo a confiança dos que se afastaram e poder atrair outros que queiram juntar-se. Devemos ouvir todos, mas evitar seguir os conselhos dos que nunca votaram e nunca votarão CDS – esses têm uma opinião sobre nós e todo o direito de a terem; mas nunca serão do CDS. E temos também de reconstruir o partido como um corpo colectivo, como deve ser, em que os militantes e simpatizantes sintam que vale a pena participar, mobilizar e construir.
Esse esforço imediato terá a primeira prova determinante nas próximas eleições autárquicas, após as regionais dos Açores. Devemos ter sempre o pensamento na Nova Maioria, mas é nas autárquicas que devemos pôr o foco de imediato. Esta é a primeira portagem. Estas eleições é que nos dirão se estamos outra vez em campo, com que fôlego, com que base e com que energia.
Em todo o caminho, o CDS deve marcar sempre a sua intervenção sem fraqueza nos valores personalistas, antes com forte capacidade de afirmação sempre que desafiados. Nos debates de grandes escolhas fundamentais não chega votar, é preciso argumentar e vencer o argumento. É isso que o nosso eleitorado nos exige. É isso que nos distingue, no espaço do centro e da direita. Uma política sem ideias é política-espectáculo, que sempre nos enfraquece e esvazia. Uma política com ideias é a única política que vale a pena, a única política por que o CDS pode reerguer-se.
[**] O Dr. Paulo Portas, tendo lido este artigo, já publicado, transmitiu-me, em mensagem, que reviu com a Presidente do partido, Assunção Cristas, os vários convites de participação na campanha eleitoral que recebera e que o critério de Aveiro, onde fora candidato várias vezes, era o mais objectivo e foi o escolhido, do mesmo modo que se acertou, mais tarde, nova ida a Setúbal, no fecho da campanha. Esclareci que o texto traduziu o que muito se comentou na altura, conforme o que, então, se soube. É minha obrigação, porém, dar conta desta informação transmitida directamente pelo Dr. Paulo Portas.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
OBSERVADOR, 24.Janeiro.2020
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