A eutanásia do sistema político


A primeira medida de fundo desta legislatura, no plano político e legislativo, foi a votação pela legalização da eutanásia, em 20 de Fevereiro. O assunto ainda não acabou. Depois da aprovação na generalidade, segue-se a especialidade, quer para aproximar os diferentes textos, quer conforme o calendário e as conveniências tácticas dos promotores. Haverá ainda a questão do referendo. E a intervenção final do Presidente da República, seja por si, seja suscitando a apreciação prévia pelo Tribunal Constitucional. Mas, através de cinco projectos de cinco partidos, com o apoio de seis partidos e meio, a Assembleia da República sinalizou, pelo voto “sim” de 128 deputados, que a prioridade e o mais importante para Portugal é a eutanásia.

Para agir assim, democraticamente, a Assembleia e os deputados estariam por certo mandatados para o tema e a urgência. Nada disso! Dos cinco autores, três (PS, PEV e IL) esconderam este propósito dos programas eleitorais. Não se ouviu um só candidato a suscitar o assunto na campanha ou pré-campanha. “Schiiiuuu!...”

O caso do PS é especialmente grave, como partido mais votado e de governo e por o seu projecto ter vindo a ser o que recebeu a maior votação parlamentar. Depois de a ideia ter sido derrotada em S. Bento em Maio de 2018, o PS tinha a obrigação e a responsabilidade democrática de destacar no programa que voltaria a propô-la. Ao escondê-la, deu ideia de que desistira. Agiu dominado pela ambição da maioria absoluta, evitando temas polémicos e divisivos – enganou deliberadamente o eleitorado. Se alguém, antes das eleições, perguntasse a um candidato PS pela eutanásia, há dúvidas de que a resposta seria esta? – “Não está no programa, pois não?”

A Assembleia da República não tem legitimidade democrática substancial para fazer o que fez, em matéria tão sensível e de tão vastas implicações. Se a 6 de Outubro a abstenção já subiu a 51,4%, os partidos autores desta manobra a trouxe-mouxe agiram para vir a subir ainda mais. Foi dito aos eleitores que as decisões saem da cartola, não do voto informado. 

Logo surgiram comentadores a ecoar a “elevação do debate parlamentar”, querendo dar o assunto por arrumado. São opiniões enviesadas, do lado de quem prevaleceu. A verdade é que, com cartas escondidas, o resultado da votação foi fixado a 6 de Outubro, não a 20 de Fevereiro. E 157 minutos não chegam debater uma matéria desta magnitude – só debates especiais (como tenho defendido), em dois ou três dias, como na 1.ª Legislatura de 1976, permitindo à sociedade interagir com o Parlamento e este respirar com aquela, seriam adequados a leis desta densidade. A sessão foi montada como pró-forma de uma degola dos inocentes: 55,7% de “sins” e 36,5% de “nãos”, com uma distribuição de tempos de 81% para os “sins” e 19% para os “nãos” (contando já a divisão no PSD). O PS não deu tempo aos seus “nãos”. O PSD deu muito mais tempo aos seus “sins” do que o respectivo apoio na bancada. O CDS teve oito minutos. Chega para quê? O PCP teve nove. Outros um minuto apenas. Para quê? Para debater a eutanásia? Não brinquem com os cidadãos, por favor. Não houve real debate: cada um deixou, com a solenidade que convinha, o respectivo monólogo. Declamação cerimoniosa num quadro manietado – “manietado” pelas eleições, é certo; mas de eleições que não foram fonte, antes segregadas, deixadas ao lado.

E como enquadrar a relevância das posições individuais no PSD e no PS? Onde é que os eleitores, no nosso sistema, podem abordar deputados e levar em conta posições individuais? Em rigor, já que PS e PSD nada diziam nos programas sobre o tema, todos os seus deputados votaram por posições individuais, fosse “sim” ou fosse “não”. Quem deu a quem este mandato? 

Era difícil fazer mais mal à credibilidade do nosso sistema político. Por isso, o referendo é a única saída democrática digna – os eleitores são os únicos titulares soberanos da sua consciência individual. Como disse um grande português, “Quem reconhece a soberania popular, tem de reconhecer o Referendo.” (Francisco SÁ CARNEIRO, 20.jun.1979)


José Ribeiro e Castro

Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade

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28 de Fevereiro de 2020

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