Humanidade na hora de morrer, humanidade até ao fim da vida
1. A ideia de que provocar a morte a pedido é uma coisa boa, é uma ideia má.
Se fosse uma coisa boa, estaria em todo o mundo. Quem não gosta de coisas boas? Quem não quer coisas boas? Todavia, em 193 Estados-membros das Nações Unidas, apenas uma meia dúzia de países tem a eutanásia e o suicídio assistido legalizados. Na Europa, são quatro: a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo e, com suicídio assistido, a Suíça. Dos dois primeiros, ouvimos e lemos, volta e meia, terríveis histórias de susto, na rampa deslizante por onde entraram no começo deste século. São números e casos de horror, a justificar há muito a atenção das instituições europeias, tão inquietas com a Polónia e a Hungria, mas fechando os olhos ao que se passa nas suas barbas. Não. A morte provocada é uma ideia má.
Se fosse uma coisa boa, todos os médicos a quereriam e receitariam. Quem mais do que os médicos quer o bem dos seus doentes? Todavia, o que conhecemos é a maioria esmagadora a repudiar a ideia. O mesmo pelos seus organismos de classe e deontológicos. Eles que sabem bem do que se trata rejeitam-no de forma esmagadora.
Se fosse uma coisa boa, o nosso impulso, se nos cruzamos com alguém que tenta suicidar-se, não seria travá-lo e tentar dissuadir, mas dar-lhe o último empurrãozinho. Não somos impelidos a apoiá-lo na travessia para a morte como no impulso de ajudar uma velhinha ou um cego a atravessar a rua. Sabemos, pelo instinto vindo do mais íntimo de nós, que a morte é coisa má e correr para ela também.
2. O debate sobre a eutanásia reabriu também trincheiras contra a liberdade religiosa. O facto de as confissões religiosas se manifestarem contra desatou a ventania. As redes sociais e alguns artigos encheram-se de desdém e hostilidade, em especial contra a Igreja Católica. Voltou essa sigla do ódio, a ICAR, uma espécie de estrela de David como estigma.
Não uso um único argumento religioso, porque encaro este debate como um debate civil sobre leis civis. Mas é normal – e sobretudo parte da liberdade de cada um – que quem queira fazê-lo no plano das suas convicções religiosas o faça sem receber achincalhamento, discriminação, segregação. Li outros que se apresentam como católicos a favor da eutanásia. Entre os carrascos da opinião, estes já não são ICAR, nunca terão de usar a estrela de David. Adquiriram a liberdade, diante dos censores, ao inscrever-se na ditadura do pensamento único.
É tolice dizer que a manutenção da lei actual seria “o triunfo dos católicos ultramontanos”. O Japão, por exemplo, é conhecido exemplo de ultramontanismo ICAR. A Mongólia, outro tanto. E o Vietname... ui! A Finlândia, ai Jesus! A Suécia, credo! A Jordânia. A Tunísia. O Reino Unido. Tudo terras obscurantistas por onde os católicos estendem um império ultramontano. Os promotores da eutanásia deviam envergonhar-se de usar argumentos que apenas bolçam ódios recalcados. Não resistem ao mais ligeiro teste de verdade.
3. “Ninguém é obrigado” – é a abordagem liberal da morte a pedido. É boa, por exemplo, para as companhias de seguros. É boa contra o envelhecimento da sociedade, na crise de baixa natalidade. É boa contra as alterações climáticas, na visão dos que gostam mais dos animais do que de pessoas, porque (o problema não é só das vacas) reduz mais depressa a população humana. É boa para reanimar o mercado de arrendamento. É boa para reduzir de custos com a segurança social. É boa para o mercado de capitais – os velhos gostam de aplicações fixas. É boa para a actividade económica dos herdeiros. Em suma, uma abordagem de direita, na concepção liberal. Não tem nada de esquerda, nem decorre das escolas de pensamento social ou solidarista.
É também uma abordagem enganosa. Poderia servir para o suicídio. Nunca para atribuir a outro o poder de matar.
Um dos efeitos mais poderosos e perversos das leis da eutanásia e do suicídio assistido é alterarem radicalmente o valor moral da vida e a compreensão social da morte. A rampa deslizante começa aí: o fim da proibição abre a porta da permissividade. Primeiro, só uma fresta; depois, escancarada. Muitos acabarão a sentir-se pressionados a esse fim, ou porque desistem interiormente, ou porque sentem que a sociedade os olha como fardo, incómodo, dispensável. Essa interrogação interior, que hoje é rara e fugaz, tornar-se-á generalizada e permanente. Haverá programas de opinião pública, nas manhãs da rádio ou nas tardes da televisão por cabo, a inquirir se as pessoas deverão “ainda viver” – ou melhor, “prolongar a vida” – nestas e naquelas condições.
Um dos problemas cruéis da pastilha para o suicídio a partir dos 70 anos, que agora se discute na Holanda – que está a tornar-se na cloaca moral da Europa –, é a de fixar socialmente, no plano mental, um prazo de validade a cada cidadão: a partir dos 70 anos, passou o prazo e pode ir embora. Enquanto estiver bom de saúde, com mobilidade e sem achaques, pode manter-se. Mas, mal a saúde começar a fraquejar, passa à condição de passivo social. “Faz favor de ir embora: tome a pastilha!”
O falso conceito de “morte digna” tem por correspondente o de vida indigna. As pessoas sentir-se-ão obrigadas a buscar a morte, porque a sua vida passou a indigna. Isto gera medo. Há muita gente que já sente esse medo. E há razão para ter medo.
4. Já ouvi falsos argumentos de ordem processual. O deputado José Manuel Pureza, do BE, disse: “O que querem é atrasar o processo legislativo.” Não é a visão correcta. O que anima a maioria dos militantes pelo referendo, como é o meu caso, não é atrasar o processo legislativo: é mesmo a esperança – confesso – de a voz do povo português poder parar de vez uma lei injusta e perigosa. A minha convicção pode perder, é verdade. Mas aí, paciência. Essa decisão será sempre, para mim, moralmente errada e ilegítima. Porém, no plano das leis, que posso eu fazer se o meu povo não pensar como eu penso que ele pensa?
Outro comentário escutámo-lo ao líder do PSD, Rui Rio: “Os defensores do referendo o que querem é o Não”. Por acaso, está ligeiramente errado e desatento: na iniciativa popular de referendo que corre, a resposta à pergunta seria “Sim”, para os que quiserem impedir a legalização da eutanásia. Por isso, a iniciativa segue o hashtag #simàvida, em vez de um “Não”.
Mas, afastando este pormenor, Rui Rio tem razão: os militantes do referendo têm esperança num resultado conforme à protecção da vida. Isso seria, creio eu, um motivo para Rui Rio se juntar à caravana. Sobretudo quando ele próprio declara frequentemente as suas interrogações pessoais. Há outro instrumento democrático em que, libertos de partido, os cidadãos possam votar segundo a sua consciência individual? Não há. Venha, pois, o referendo. A política que o impede é política que não presta.
5. Sejam quais forem as experiências pessoais de cada um, o melhor é decidirmos com o pensamento na sociedade em geral e nos valores que a seguram, alimentam e sustentam. Isto é o único plano que é claro, certa e permanente. Além de que aquilo que nos é pedido é opinião sobre a lei, que é geral e abstracta, e não o olhar casuísta do juiz.
Estes debates acontecem na sociedade, desde sempre, naquelas alturas em que a morte nos ronda ou bate à porta em pessoas perto de nós. São os momentos em que nos questionamos: o que faríamos? Aqui, é frequente, no contacto com a experiência do sofrimento e do fim, ouvirmos opiniões quer dos que asseguram que prefeririam a eutanásia, quer dos que juram “eu, nunca!”
A minha experiência tem-me mostrado que os que juravam preferir a eutanásia e declamavam teorias sobre a matéria nunca disso se lembraram, quando a sua hora realmente chegou. Seguiram todos os cuidados médicos, com o apoio da família – verdadeiramente, a morte assistida – até ao último suspiro. Lembro-me de lhes ouvir expressões de dor e, por vezes de tristeza – quem não? Mas nenhum, querendo desistir. Em contrapartida, não me surpreenderia que alguns dos outros que sacodem o problema, dizendo “eu nunca!”, também mudassem de campo e se agachassem de medo diante da própria morte, pedindo para a abreviar. Não conheço casos destes, mas não me surpreenderia que haja. A verdade é que não sabemos como é, senão quando a nossa morte chega.
É o último acto da vida. Deixemo-lo acontecer. Acontecer em morte assistida, isto é, aliviando medicamente o sofrimento e amparando, em família ou como amigos, a partida. Isto é que é humanidade.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
OBSERVADOR, 19.Fevereiro.2020
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