Somos bonzinhos, mas burros e preguiçosos!


Prossigo a conversa com Luís Aguiar-Conraria, iniciada pela morte do estudante Luís Giovani em Bragança, que abalou tanta gente, sobretudo em Cabo Verde e Portugal. Concordando em quase tudo na apreciação do trágico caso face ao que sabíamos – o Conraria em 15 de Janeiro, eu em 17 de Janeiro – , recordo o ponto de divergência. Ele escreveu: “Incomodou-me ver alguns cartazes e faixas dizendo que Portugal é racista. Não tenho grandes dúvidas de que a acusação é correcta, note-se, mas é prematuro invocá-la neste caso.” Eu escreveria: “Incomodou-me ver alguns cartazes e faixas dizendo que Portugal é racista. Tenho a certeza de que a acusação não é correcta; e é prematuro invocá-la neste caso.”

Temos opiniões diferentes – às vezes muito. Mas sinto que busca, como eu, a verdade. Toca nos temas não para incendiar, mas para aprofundar ou defender o seu ponto de vista. Sendo professor universitário, não fala de cátedra: escreve, na comum vida civil, com a simplicidade de quem estuda e a humildade de quem sabe.

Indo ao racismo, começo por declarar, à cabeça, que sou um luso-tropicalista encartado. Acredito profundamente no “modo português de estar no mundo” e na benignidade comparada do nosso comportamento. Por isso, aproveito o título de Conraria, mudando os termos: em vez de “Somos burros e preguiçosos, mas bonzinhos!” como ele titulou, escolho “Somos bonzinhos, mas burros e preguiçosos!” Não é brincadeira para a conversa. É que o lusotropicalismo não é somente narrativa do que vemos, acreditamos e concluímos, mas, acima de tudo, um programa do que queremos, o programa: irmão do meu irmão negro, irmão do seu irmão branco.

Não me impressionam muito os argumentos que apontam violências do tempo colonial ou a tragédia da escravatura. Houve outras violências na nossa História e na de outros, violências nossas e violências contra nós. A História tem, em todo o lado, o seu rasto de sangue. E, quanto à escravatura, não foi inventada por nós. Era uso em África quando lá chegámos. (Era também praticada na Europa, desde a Antiguidade.) Os comerciantes, na esteira dos navegadores, ampliaram a geografia desse comércio ignóbil, manejando a escravatura na “primeira globalização”.

Nada desculpa a tremenda desgraça, nem atenua a brutalidade do tráfico desumano. Mas as culpas são repartidas: houve uma aliança comercial entre poderosos africanos (com alguns europeus), que capturavam outros africanos, e os traficantes europeus que os atravessavam sobretudo até às Américas. Os escravos e seu tráfico em África já vinham muito de trás, largos séculos antes dos portugueses e outros europeus. Esse tráfico fora sobretudo árabe. Na Europa houvera escravos brancos para senhores brancos, como em África escravos negros para senhores negros. Encontramos igual na Ásia e na América das civilizações pré-Colombo.

Tudo isso acabou no século XIX, incluindo em Portugal e seus domínios. Este é que é, para mim, historicamente, o facto extraordinário: a escravatura, que existiu em todo o mundo desde tempos imemoriais, nunca acabou, senão quando entrou em contacto com o Ocidente e o Ocidente com ela. Isso deveu-se ao choque inconciliável entre os factos atrozes da escravatura, a sua gritante desumanidade, e os valores morais do Ocidente. Estes venceram. O Ocidente não está livre de culpa, nem se pode apagar a verdade da História. Mas isto também faz parte da verdade factual da História: Acabou! Nunca mais! Não fomos só nós, portugueses, a fazê-lo. Fomos dos primeiros a sinalizar o abolicionismo, embora, depois, arrastássemos um pouco os pés. Mas, não sendo só nós a fazê-lo, também o fizemos.

Não dou, portanto, para o peditório dos que se entretêm a desenterrar o machado de guerra para resolver problemas resolvidos. Entretêm-se a incendiar ânimos, aplicando o modelo do marxismo cultural às relações inter-raciais. Não dou para o “mamadouismo-joacinismo”. Não aceito transformar Portugal num qualquer Alabama. Não pode entrar na nossa terra e sobretudo no nosso espírito a ideia de que somos colectivamente racistas, fomentando relações raciais de ódio e batalha. Este é um veneno que não podemos consentir, nem administrar.

Há bondade, humana e social, nas relações interétnicas, que devemos detectar, sublinhar, valorizar. Esse é o caminho, o discurso certo. Esse é o solo que queremos pisar. O luso-tropicalismo não é um negacionismo, nem conformismo; é uma promessa inscrita no melhor de cada um de nós. Além de me rever no olhar bondoso do luso-tropicalismo, considero-o uma ferramenta fundamental: um povo que tem de si mesmo a ideia de que não é racista vincula-se a não o ser, a reprimir tudo o que ofenda esse código ético e a levar sempre mais longe esse compromisso. É o que eu quero.

Claro que é muito importante considerar estudos e estatísticas como os que o Luís Aguiar-Conraria apresenta. Alguns são uma chapada. Venham eles! Sempre. Também estranho, como ele, a resistência a recolher informação étnica nas nossas estatísticas. Sem dados, como iremos conhecer a realidade da realidade?

A isso se refere o segundo termo da equação: somos burros e preguiçosos. Burros, se não entendermos o que esses quadros e números nos dizem na sua crueza. Preguiçosos, se nada fizermos para os interpretar e lhes responder e melhorar. Pela burrice e preguiça, até podemos deixar de ser bonzinhos, cavando o Alabama entre nós e matando o luso-tropicalismo.

Não sei se a minha ideia é de direita ou de esquerda. Deve ser de direita, porque a tenho desde que me lembro. E deve ser de esquerda, com Chico Buarque no “Fado Tropical”: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. É uma ideia portuguesa, ou melhor, da cultura lusófona. Temos de ser capazes de a honrar e cumprir.

Os sinais de racismo devem ser respondidos prontamente. Mas, se a nossa cultura for não-racista, se o nosso modelo for de integração humana, inclusão social e miscigenação cultural, se formos todos um pouco crioulos uns dos outros, se gostarmos da cachupa, da feijoada e do cozido, se lermos Lobo Antunes, Agualusa e Jorge Amado, se ondularmos com o cante, a morna e a kizomba, se trabalharmos juntos, se discutirmos todos, se rirmos e chorarmos as mesmas graças e as mesmas dores, seremos cada vez melhores. Luso-tropicais.

Quando Presidente do CDS, procurei que militantes de origens várias entrassem nas listas autárquicas. O tempo foi apertadíssimo, não tive muita sorte. Os resultados foram escassos. As candidaturas não são enfeites, têm de culminar trabalho de integração na acção política, muito anterior. Nas juventudes, também é fundamental e decisivo, quer cá, quer para a CPLP. Faz-se muito pouco. Uma lástima! Mas o CDS sempre teve deputados de outras origens étnicas, ao modo da direita, sem complexos, nem exibicionismo. Lembro Narana Coisoró e Helder Amaral – houve legislaturas em que eram caso único. Agora, há três deputadas eleitas à esquerda. É bom, mas ainda é pouco.

A deputada Joacine, sempre na ordem do dia, é muito bem-vinda como negra, como mulher e gaga. A maior coragem em S. Bento é por ser gaga, não por ser mulher, nem negra. E, quando não se gosta dela não é por nada disso, mas pelo extremismo e quando fomenta ódio e intolerância. Também pelo mau feitio e soberba que a queimaram. Se fosse homem, branco e não-gago seria igual – e não teria sido tão bem-vindo. Curiosamente, há dias, Joacine mostrou ser uma filha da colonização portuguesa e do luso-tropicalismo, ao gritar para o Parlamento: “Eu nasci para estar ali. Eu vou continuar ali.” Que uma mulher, nascida em Bissau, depois da independência, sinta que nasceu para estar na Assembleia da República, em Lisboa, e que este é o seu lugar, é porque foi profundamente tocada pela colonização portuguesa. O luso-tropicalismo toca-lhe não só o coração, mas a alma. Não o digo por troça e ironia. Mas porque é o que vejo e oiço.

Para não termos peneiras com o luso-tropicalismo, fui rever, um a um, os membros da Câmara dos Comuns, depois das eleições ganhas por Boris Johnson. Há 50 deputados não-brancos em Westminster: 17 de origem africana, três de origem afro-americana e 30 de origem asiática. São 16 Conservadores (em 365), 33 Trabalhistas (em 202) e um Liberal-Democrata (em 11). Esta é a distância a que estamos daquilo que devíamos. Este é o caminho que todos os partidos, da direita à esquerda, têm de fazer, para estarmos à altura da nossa narrativa e sobretudo da responsabilidade. Das eleições locais às nacionais, os partidos políticos – todos – são as assembleias onde se joga boa parte desta crucial escolha civilizacional e cultural: integração ou segregação, comunidade ou fractura.



José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

PÚBLICO, 15.Fevereiro. 2020

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