Que diria, que faria Salgueiro Maia?
Na controvérsia pela comemoração do 25 de Abril e do 1.º de Maio dentro do período do estado de emergência, são inaceitáveis afirmações como a da Secretária-geral da CGTP: «Estamos a assistir a uma estranha campanha de ajuste de contas com o 25 de Abril.» É a confirmação de não se entender nada de nada e pretender-se intoxicar o ambiente, para que outros não entendam. Quem fez o mal faz a caramunha.
O que se passou é que uma parte da esquerda não sente a gravidade do momento que vivemos em termos de saúde pública e não está à altura das exigências cívicas que um estado de emergência determina para todos os cidadãos, começando pelos mais responsáveis: todos os dirigentes, os deputados, os ministros, os decisores.
Desde logo, comecemos pela pergunta óbvia: faz algum sentido que quem não goste do 25 de Abril e do 1.º de Maio fosse cavalgar o Coronavírus para proibir a comemoração daquelas datas? Não faz. Seria absolutamente ridículo, coisa ainda mais mortal na política do que o apenas inaceitável.
Aquele discurso, ecoando a ladainha de boa parte da esquerda e da comentocracia alinhada, não tem ponta por onde se pegue. É uma frase feita, um estribilho sem sentido. A esquerda que assim fala deve assumir a sua responsabilidade e deixar de esconder-se atrás do 25 de Abril, como escudo. Deve assumir sozinha a responsabilidade pelo que provocaram na sociedade portuguesa. As críticas e os protestos são inteiramente dirigidos à esquerda que o fez, não ao 25 de Abril, que não tem culpa do que lhe fizeram.
Olhando com mais atenção, podemos ver que o que aconteceu tem mais a ver com a história do 25 de Abril do que poderíamos imaginar. Houve três 25 de Abril fundadores: o de 1974, o de 1975 e o de 1976. O primeiro foi a ruptura política, feita pelo levantamento militar do MFA. O segundo foi a eleição da Assembleia Constituinte, para definirmos o que queríamos ser. O terceiro foram as eleições legislativas, para iniciar o que decidimos ser: uma democracia livre, pluralista, constitucional.
Os dois últimos não teriam existido sem o primeiro. O primeiro não teria sobrevivido e triunfado sem o segundo e o terceiro. Houve que lutar entre nós para que as coisas ficassem assim. Pelo meio, entre o segundo e o terceiro 25 de Abril, houve o 25 de Novembro, para o segurar e assegurar. Foi o tempo em que o poder político-militar gritou à esquerda “Basta!” e, a uma parte da direita que queria ilegalizações, disse: “Não. Seguimos todos, precisamos de todos, em liberdade.” Por isso, o terceiro 25 de Abril pôde cumprir-se em linha com o espírito fundador.
O primeiro foi feito pelos Capitães para todos os portugueses. O segundo e o terceiro foram feitos por todos os portugueses. Mas há uma parte da esquerda que nunca quis que o 25 de Abril seja de todos. Faz-lhe muito mal. Quase o destruía antes do 25 de Novembro. Mais tarde, umas suas células foram ao extremo de o insultar como nome de organização terrorista: as FP-25A. Procuram, de modo recorrente, apossar-se da data, recusando-a aos outros. Procuram apossá-lo como donos, em antecâmara de o fazer arma de uns contra outros. Onde os três 25 de Abril históricos foram realmente para todos, primeiro, e por todos, depois, querem berrá-lo, manejá-lo como propriedade exclusiva. Se querem fazer mal ao 25 de Abril e ao espírito de liberdade e democracia que representa, terão sucesso, indo por aí. O sucesso sectário será o fracasso da data. O 25 de Abril estará tanto mais seguro quanto mais de todos for.
A primeira coisa que se verá na cerimónia festiva na Assembleia da República, segundo o modelo tradicional comprimido, são dois DD que não estavam no programa: discriminação e desigualdade. A decisão tomada não respeita o espírito do estado de emergência e desperdiça uma excelente oportunidade de dar o exemplo.
Não vale a pena, na linha da desconversa, tergiversar que o estranho seria fechar a Assembleia da República no dia 25 de Abril ou que nada fosse feito. Toda a gente sabe que houve propostas de celebrações alternativas, sóbrias, dignas e suficientemente respeitadoras da gravidade do momento que os portugueses atravessam. Mas, se a Assembleia tivesse decidido fechar no dia 25, porque assinalaria a data de outro modo, talvez ninguém protestasse. E certamente o exemplo de respeito cívico, de dignidade democrática, de serviço público e de grandeza nacional que a Assembleia da República daria com essa decisão colheria o respeito generalizado e elevaria ainda mais o 25 de Abril no conceito do povo português e na memória das pessoas.
Toda a gente sabe que, logo a seguir a declarar-se o estado de emergência em 18 de Março, se foi pondo informalmente a questão da comemoração pública destas datas. A Associação 25 de Abril proporia, pouco depois, uma ideia que tem feito o seu caminho: não havendo comemorações na rua, os portugueses cantem o Grândola e o Hino Nacional à janela. E surgiram, aparentemente não contestadas, ideias sóbrias, mas dignas, de assinalar a data em S. Bento, fora da sessão plenária. Era melhor. Numa crise excepcional pedem-se gestos excepcionais, não o modelo habitual empobrecido. A grandeza está na simplicidade, não na pompa.
A decisão tomada foi uma decisão de desafio. Foi farronca deste género: “nem a Covid cala o 25 de Abril”; “não à Covid ao serviço da reacção”. Se o grito “a Covid não passará” fosse eficaz e funcionasse, seria grande ajuda ao SNS e socorro aos portugueses. Mas não é.
A decisão de desafio é a expressão de uma cultura de privilégio: “a lei não se nos aplica, porque somos nós que a fazemos”. E interpretamos. A cultura de privilégio, expressão de uso arrogante do poder, cai sempre mal. Foi isso que o país todo viu e sentiu. Viu bem e sentiu com razão.
As pessoas tiveram toda a razão em escandalizar-se quando, ao fim de semanas em regime de prisão domiciliária com saídas precárias (supermercado, farmácia e pouco mais), vêem os seus representantes e os líderes sindicais reclamarem para si um estatuto diferenciado e celebratório. Desrespeitou os cidadãos em regime de confinamento estrito. Desrespeitou os cidadãos que se inquietam com as quebras do confinamento. Desrespeitou os que, muitas vezes com risco, asseguram funções essenciais da vida social e o abastecimento público. Desrespeitou os mortos por esta praga, que vão morrendo, em Portugal, ao ritmo de 30 por dia. Desrespeitou as famílias destes e doutros que morrem neste tempo, que, nem com todos os requisitos de segurança, podem decidir da forma de velar e enterrar os seus entes queridos. Desrespeitou a ansiedade com que boa parte da sociedade vive estes dias e segue os acontecimentos. Desrespeitou os crentes que cumprem as pesadas restrições à liberdade de culto. Desrespeitou os doentes e a aflição dos familiares daqueles em cuidados intensivos. Desrespeitou a saúde pública como a primeiríssima questão da actualidade e o dever de prevenção. Quebrou solidariedade e respeito com médicas e médicos, enfermeiros e enfermeiras, profissionais de saúde, cuidadoras e cuidadores sociais, que têm sido e são os heróis destas semanas duras, inúmeros com carradas de horas de trabalho e turnos em sobrecarga. E, sendo um órgão de soberania de representação, rompeu com a cultura do exemplo que tem de dar.
O estado de emergência é um dos regimes mais graves em que a vida pública pode ser declarada. Tem um conteúdo restritivo poderosíssimo. Não é o estado de alerta, nem de contingência, nem de calamidade. Entra por dentro da própria dimensão constitucional. Acima dele, apenas o estado de sítio. Posso estar enganado, mas não conheço um só caso em que, na vigência de um estado de emergência, um país tivesse decidido organizar celebrações deste tipo numa data relevante.
Os decisores teriam feito bem em inspirar-se na figura e no exemplo de Salgueiro Maia. Pensando nele e no seu paradigma de simplicidade, sobriedade e fidelidade, que decisão seria de tomar? Creio, obviamente sem o saber, que, face ao decidido, ele poderia comentar (ou pensar) que foi um sinal do estado a que isto chegou.
Temos uma situação deplorável num facto que nos embaraça e envergonha: de três antigos Presidentes da República, dois não vão às cerimónias e um vai, mas declarando não estar de acordo com o modelo. Atravessam-se, como é manifesto, questões de saúde, que é o eixo da actualidade.
Porque é que Ramalho Eanes vai, divergindo? Porque esse é o seu carácter e a sua formação de militar. A sua nobreza, o seu desprendimento consigo. Quantos riscos correu? Quantos riscos correu, divergindo? Quantos riscos correu, porque era preciso cumprir? Ramalho Eanes vai, porque, noutro estatuto e noutro papel, é a figura do 25 de Abril mais parecida com Salgueiro Maia, suas virtudes e qualidades.
A Assembleia da República não tinha o direito de colocar três ex-Presidentes nesta contingência. Aqueles que assim decidiram não tinham o direito de colocar o 25 de Abril no centro desta querela, nem de abalar o espírito colectivo quanto ao curso do estado de emergência.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
OBSERVADOR, 24.Abril.2020
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