Derrapagem parlamentar
Esta crise sanitária da Covid-19 pode ter efeitos negativos nos hábitos e práticas parlamentares. É tudo para “simplificar”.
Um sinal preocupante recebemos, agora, do Parlamento madeirense. A imprensa fez-se eco da polémica entre os grupos do PSD e do CDS, os partidos que apoiam o Governo Regional, e os deputados da oposição na Assembleia Regional. O motivo é a deliberação tomada de um só deputado poder votar com todos os votos dos deputados da sua bancada que estejam ausentes. Uma espécie de voto por procuração implícita, ou melhor dito (pior feito), voto de representação em branco, pois o ausente não passa sequer procuração: votam por ele com a vontade da liderança.
Aplicando isto aos conceitos em que temos sido treinados nesta maré do Coranavírus, dá ideia de que quem assim decidiu se inspirou na doutrina epidemiológica da herd immunity, que tanta celeuma gerou quando Boris Johnson a invocou como orientação do governo britânico – depois, mudou radicalmente, como é sabido. Herd immunity quer dizer “imunidade de grupo” ou, literalmente, “imunidade de manada”: atingindo-se a imunidade ao vírus por parte de número significativo de membros do grupo, todo o grupo está imunizado. Ali, na Assembleia Regional da Madeira, pode dizer-se que se criou uma herd legitimacy, isto é, “legitimidade de grupo” ou, literalmente, “legitimidade de manada”: os presentes votam pelos ausentes do mesmo grupo, sendo mesmo possível, no limite, que um só vote por todos.
Li que logo se levantou a questão da inconstitucionalidade da deliberação. E, sem ter estudado o assunto, creio que viola a Constituição e seus princípios. O artigo 155.º, n.º 1 dispõe que “os Deputados exercem livremente o seu mandato”, o que é uma das traduções do princípio da exclusiva titularidade pessoal do mandato, princípio basilar de qualquer democracia. E o artigo 180.º, n.º 1 define que “os Deputados eleitos por cada partido ou coligação podem constituir-se em grupo parlamentar.” Quer isto dizer, como várias vezes chamo a atenção, que os grupos parlamentares não são obrigatórios, não se impõem aos eleitos. Não é verdade a ideia feita de que, como quase toda a gente pensa, os deputados eleitos por um partido têm de ir para o grupo parlamentar desse partido. Não é assim. No início de cada legislatura, os deputados preenchem e assinam uma declaração a constituir o grupo parlamentar do seu partido. Quem o não faça, não está sujeito a qualquer sanção, ainda que arque com as consequências políticas do seu gesto. Aquela norma constitucional e esta prática são mais do que um mero formalismo: significam que são os deputados que geram, ou não, o grupo e prevalecem sobre este, não é o grupo que subordina os deputados e lhes abocanha o mandato. Estou certo de na Madeira também ser assim.
Aliás, como há pouco aludi, um deputado não pode votar por procuração. Seria absurdo. E, se assim é, torna-se ridículo que possa votar… sem procuração.
Estas evoluções são contra o parlamentarismo e degradam muito a política e a democracia. Afinal, favorecem a ideia muito “popular” de reduzir drasticamente o número de deputados nos parlamentos. Na Assembleia Regional da Madeira, em que cinco partidos têm assento, bastaria, afinal de contas, haver cinco deputados: o líder ou deputado único de cada partido votaria com um cartão contendo tantos votos quantos os deputados virtuais eleitos pela sua cor política. Simples e barato. Seria o festim final do populismo. Uma poupança para o erário público, como muitos reclamam, cavalgando a demagogia.
Isto é democracia sem qualidade. Isto agrava o contínuo declínio da percepção pública daquilo que fazem, para que existem e para que servem os deputados.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade
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8 de Maio de 2020
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