A última “judiaria” parlamentar do PS


A legislação democrática e a qualidade da democracia exigem processos correctos. O processo é fundamental. Porque mostra o fundamental. Porque protege o fundamental. O processo certo mostra as razões de cada um e permite formar opinião séria sobre quem tem razão. O processo é tão importante que, em rigor, a própria democracia é um processo. 

O leitor é capaz de ter ouvido algo da recente controvérsia que se armou pela tentativa de deputados do PS alterarem a Lei da Nacionalidade quanto à possibilidade de naturalização de descendentes dos judeus expulsos de Portugal, nos séculos XV e XVI. Em 2013, uma lei ocupou-se apenas desta questão. Foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República. Três vezes: unanimidade na aprovação na generalidade dos projectos de lei do PS e do CDS; unanimidade na votação na especialidade do articulado; e unanimidade na votação final global. A lei, publicada em 2013, entrou em vigor em 2015, em simultâneo com o regulamento, que viabilizou a sua aplicação. É importante ter isto presente para enquadrar como a controvérsia de agora se deveu à manipulação do processo legislativo. Se outra fosse a autonomia dos deputados, capazes de impedir os gestos de “consumadocracia” e de fazer prevalecer a deliberação colegial acima de ordens repentinas dos de cima, a deplorável confusão não teria acontecido. 

O facto de a lei alvejada ter sido aprovada por unanimidade e vigorar apenas há cinco anos não proíbe, é claro, a sua revisão. Mas deveria ter aparecido em processo leal, aberto, transparente. As pessoas teriam de saber, desde o princípio, dessa revisão, ser informadas de que o PS mudara de opinião e conhecer as razões fundamentadas desta mudança de opinião e daquela iniciativa de revisão. Seguir-se-ia o processo legislativo, com a decência política devida. Quanto a leis não aprovadas por unanimidade – quase todas – é assim que deve proceder-se: com decência e transparência. Mais ainda quando a lei é recente, foi unânime e resultou, entre outras, de uma proposta do próprio revisor proponente. Jamais em modo flibusteiro, que só faz mal à boa compreensão pública das leis, à qualidade da democracia e ao prestígio do Parlamento. 

O que é que se passou? 

No dia 25 de Outubro de 2019, o Bloco de Esquerda apresentou o Projecto de Lei n.º 3/XIV, para alteração da Lei da Nacionalidade em matérias da imigração. A seguir, em 22 de Novembro, o PAN apresentou o Projecto de Lei n.º 117/XIV, para alteração da mesma lei, focando-se agora na situação de nascidos em Portugal entre 1974 e 1981, cujos pais, aqui residentes, passaram a estrangeiros por uma lei muito infeliz de 1975, no quadro da descolonização. No mesmo dia, 22 de Novembro, o PCP fez entrar o Projecto de Lei n.º 118/XIV, sobre matéria semelhante à do Bloco. E, no dia 26 de Novembro, num quadro que deu muito que falar na altura, a deputada Joacine Katar Moreira, ainda no Livre, juntou o Projecto de Lei n.º 126/XIV, um pouco mais amplo, mas focado também sobretudo no regime dos imigrantes quanto à nacionalidade. Os deputados do PS, se estavam inquietos com a naturalização de descendentes dos judeus sefarditas, deviam ter apresentado um projecto a esse respeito. Nada fizeram. 

O debate na generalidade foi no plenário de 11 de Dezembro, a votação a 12. Foram aprovados por maioria os projectos do PAN e do PCP. O do Livre foi rejeitado. E o BE retirou o seu, fazendo aprovar um requerimento para nova baixa à Comissão. Em qualquer processo de boa ética política e regimental, ficaram balizadas por estes debates e votações as matérias deste processo legislativo sobre a Lei da Nacionalidade: umas, relativas ao regime dos imigrantes; outras, reparando a injustiça causada, fundamentalmente, a afrodescendentes nascidos em Portugal, filhos de pais residentes, repentinamente despojados da nacionalidade portuguesa em 1975. 

O que fizeram os deputados do PS? Em 28 de Abril, tiraram da cartola uma proposta de alteração para ampliar as alterações à Lei da Nacionalidade, para alvejar o regime de naturalização dos descendentes dos sefarditas. Isto é, pretendendo apanhar o comboio quatro meses depois de fixada a matéria na generalidade, com a fase da especialidade já a terminar, agindo a coberto dum grupo de trabalho (o penúltimo modo mais obscuro do trabalho parlamentar) e estando tudo a funcionar em modo Covid. O PS poderia, ao menos, no debate em plenário, ter anunciado que, na especialidade, iria suscitar essa outra questão, dando a cara e explicando o quê e porquê. Isto não eliminaria a irregularidade do procedimento, à luz da Constituição e do Regimento. Mas atenuaria a gravidade política do procedimento, tardio e pela calada. 

Na Assembleia, isto faz-se. É o método “já agora, alembrei-me”. Critiquei-o sempre. Sempre entendi que a especialidade não pode ir além do âmbito material definido pelas votações na generalidade. Fazer de outro modo é consentir que propostas legislativas importantes se furtem à generalidade, lesando severamente a democracia e a transparência. É admitir que alterações relevantes sejam escondidas até à última hora, voando em jacto particular para aterrarem só na recta final, sem passar a fronteira da primeira votação na generalidade. O truque, infelizmente frequente, é um desvio da prática parlamentar. É o expediente “penetra”. Não pode ser. 

Sabemos o que acontece, quando, atrasados, desatamos a correr para apanhar o comboio que já arrancou da estação. Frequentemente tropeçamos, caímos. A coisa corre-nos mal. E podemos até magoar-nos. Que o autor se magoe até pode ser justo. Mau é para a lei, para a cidadania, para os alvos mais específicos da medida legislativa, para a democracia. 

Normalmente, só recorre a processos errados quem tem razões erradas. A controvérsia mostrou, na verdade, a tentativa insistente de difamação leviana de processos administrativos de naturalização, sem razão consistente, muito menos provada. Trata-se de processos em que a decisão é discricionária. Trata-se de um regime que é uma mera concretização especial do regime geral vigente há décadas para “descendentes de portugueses” e “membros de comunidades de ascendência portuguesa”. Quererá esta parte do PS excluir a ascendência portuguesa, tratando-se de judeus? E leia-se esta afirmação: a lei de 2013, “(…) de uma assentada, criou dezenas de milhões de novos candidatos potenciais à nacionalidade portuguesa.” Dezenas de milhões!? Mesmo que fossem todos, as fontes internacionais dizem que não há mais de 14 milhões de judeus no mundo. Pode levar-se a sério os proponentes? Pelo que sei, o número de candidatos no regime dos judeus sefarditas é menos de 10% dos candidatos à naturalização; e, dos pedidos satisfeitos, menos de 5% do total. 

A controvérsia mostrou que foi tudo embrulhado em desconhecimento ou desinformação. Provou que, não sendo por anti-semitismo ou fobia aos judeus, não há razão para alterar a lei, cuja aplicação corre bem de um modo geral, dentro do escopo pretendido: tratar como parte da comunidade nacional as comunidades sefarditas de ascendência portuguesa. Permitiu realçar que, diversamente do que andou a propalar-se, a lei de 2013, em vigor, já exige a estes candidatos à naturalização, “demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa” e “requisitos objectivos comprovados de ligação a Portugal”. E tornou claro que qualquer inquietação séria que possa existir quanto a eventuais abusos pode ser respondida por afinação regulamentar, a cargo do Governo, dentro da moldura legal actual. 

Na verdade, não é defensável querer alterar leis por processos ínvios e com fundamentos inconsistentes e não provados. Numa democracia de qualidade, isso não passa.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade

JORNAL "I", 5.Junho. 2020

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