Sefarditas: de Espanha, nem bom vento, nem bom argumento
Quando um governo detecta problemas na aplicação de uma lei, não salta a pés juntos sobre os cidadãos, nem sobre a própria lei. Avalia o problema, discute-o com os interessados, define medidas administrativas que assegurem a boa aplicação da lei, reconduzindo-a ao seu propósito. Não sendo isto suficiente, prepara e faz adoptar novas normas regulamentares, que, afinando o processo administrativo, assegurem a aplicação correcta da lei. Se o governo for democrático e aberto, prepara a revisão regulamentar em diálogo com os sectores relevantes, assim promovendo melhores normativos e protegendo o capital de confiança na lei e na Administração, que sempre importa. Só em último caso parte para rever a lei, se todas as etapas anteriores se revelaram impossíveis, inadequadas ou insuficientes. E, se for democrático, empreende a revisão da lei pelos processos constitucionalmente previstos, sem truques nem subterfúgios, e por métodos transparentes e democráticos.
Fomos, por isso, completamente surpreendidos por uma polémica azeda, provocada, repentinamente, em fim de Abril, pela deputada do PS Constança Urbano de Sousa, contra a lei de naturalização dos sefarditas adoptada em 2013, por unanimidade, pela Assembleia da República. Gerou dúvidas se isto seria uma iniciativa apenas da deputada, do grupo parlamentar ou do Partido Socialista. As audições que decorreram nas duas últimas semanas na 1.ª Comissão da Assembleia mostraram que corresponde ao impulso político do ministro dos Negócios Estrangeiros.
A lei de 2013 pretendeu apagar do nosso presente e futuro os últimos rastos do Édito de Expulsão de D. Manuel I, habilitando à naturalização, mediante certas condições e requisitos, os descendentes dos judeus expulsos. Foi aplicada com tranquilidade e bem, durante cinco anos. Nunca se ouviu uma queixa, um reparo, uma nota de qualquer nódoa. As únicas coisas que fomos sabendo pela comunicação social foram, ocasionalmente, histórias, algumas comoventes, de pessoas ou famílias judaicas que reencontravam, com Portugal e em Portugal, o fio da sua história pessoal e familiar. Ou seja, a lei acertara em cheio: 500 anos depois, as pessoas estavam a regressar pelos descendentes. A pouco e pouco, estavam a reconstruir-se comunidades judaicas, historicamente muito importantes na formação da Nação portuguesa, mas que desta foram violentamente afastadas por um erro trágico e grave injustiça nos finais do século XV. Uma boa lei, portanto. Uma lei que dá muito prestígio a Portugal, como o ministro Santos Silva reconheceu na comissão parlamentar.
Eis que, a partir de 28 de Abril, aquilo que, no conceito público, sempre estivera a correr bem, afinal era uma miséria. No discurso em cascata, em golfadas sucessivas, da deputada e na pontuação a preceito do ministro, estaremos perante uma fraude gigantesca para obter “passaportes de conveniência”, servida por advogados, esses malfeitores, e publicidade de escândalo. Os argumentos são impressivos: há um outdoor à saída do aeroporto de Telavive, mais um outdoor à saída do aeroporto de Telavive… ah! e ainda um outdoor à saída do aeroporto de Telavive. São referidas histórias avulsas, nunca documentadas, nem provadas, ficando sem se saber, se são lenda, mito, fantasia ou facto real em dimensão significativa.
Não questiono que esta lei, como todas as do género – ou a dos vistos gold, esses, sim, de conveniência (podendo resultar em “nacionalidade de conveniência”) –, pode prestar-se a abusos. Cabe à Administração estar vigilante para os detectar e impedir, em tempo oportuno.
O ministro, embora referisse sobretudo notícias em 2018 e 2019, chegou a indicar ter tido conhecimento dos primeiros problemas em 2016. É sabido que a intervenção das comunidades judaicas de Lisboa e Porto tem sido irrepreensível, cooperando com diligência e lealdade com os serviços competentes e o governo – o que o governo reconhece. Por isso, a responsabilidade do que esteja a acontecer é somente do governo e da passividade administrativa. Foi revelado – e é verdade – que as comunidades judaicas de Portugal actuaram junto de entidades em Israel para que pusessem termo a excessos de que tiveram conhecimento. Por parte das autoridades portuguesas, não se conhece que tenha sido feito o que quer que seja. Fizeram rigorosamente nada, para agora, de repente, arremeterem sobre a lei. Sabiam desde 2016 e nada disseram? Não fizeram nada neste tempo todo? Alguém acredita neste enredo?
O nervosismo teatral é tardio, pouco fundamentado e mal dirigido. Não é a lei que precisa de ser melhorada, pois tem tudo o que é necessário. A norma legal aplicável aos sefarditas, diversamente do que se dá a entender ao público desinformado, já contém três requisitos quanto à efectividade da ligação a Portugal: 1.º - “descendentes de judeus sefarditas portugueses”; 2.º - “demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa”; 3.º - “requisitos objectivos comprovados de ligação a Portugal”. Não é preciso para nada acrescentar a expressão “ligação efectiva à comunidade nacional”, último cavalo de batalha da deputada do PS. Essa expressão, além de ser redundante no texto, só viria introduzir confusão e perturbações no entendimento da lei e do regulamento, sobretudo depois das trapalhadas e erros técnicos na recente legislação e regulamentação aplicável aos netos de portugueses.
O que faz falta é mais diligência do governo, assim como deputados mais atentos aos valores da cidadania e à vigilância contra a mercantilização de títulos do país. É intolerável a permissividade administrativa e regulamentar nos casos que estão a ser lançados para o ar. Onde está a actuação de verificação e esclarecimento pelos serviços? Onde está a afinação necessária do regime regulamentar? Onde está a melhoria da cooperação entre a conservatória e as comunidades? Onde está a acção vigorosa e incisiva da diplomacia e dos serviços consulares? Onde está a promoção judiciária contra quem ofenda as nossas leis? Quando virá a proibição categórica da publicidade comercial, obviamente ilícita, que mercantiliza bens de cidadania e títulos imateriais do país? O governo vê venderem o acesso a passaportes e deixa?
Se um bandido, dois, três, quatro… dez passarem as nossas fronteiras abertas, o governo e a deputada Constança Urbano de Sousa não gritarão certamente que é preciso sair do Espaço Schengen e trancar outra vez as fronteiras. Não se entende que enveredem pelo mais rasteiro discurso populista, enviesado e demagogo a propósito da lei de naturalização dos sefarditas. É preciso competência, não é precisa estridência.
Esta ofensiva contra a lei cita cada vez mais o regime de Espanha como um “exemplo”. O ministro lamentou que a nossa lei não tenha um prazo para os sefarditas, ao contrário de Espanha; que a nossa lei exija muito menos que Espanha; e que, pela lei, o Estado delegue nas “comunidades religiosas” (sic), diversamente de Espanha. Esta nota das “comunidades religiosas” (sic), introduzida na audição parlamentar com acinte, merece três observações: primeiro, as comunidades não são religiosas, embora tenham. também essa componente; segundo, não havendo registo civil, senão a partir do século XIX, só as comunidades judaicas podem certificar o que a lei exige; terceiro, a participação destas comunidades não é fixada pela lei, mas pelo regulamento, que é da competência do governo.
Esta atração por Espanha é fatal. O governo e o PS não podem querer guardar o prestígio da lei portuguesa e a boa reputação para Portugal e, ao mesmo tempo, mudá-la para o exemplo de Espanha. A lei espanhola foi um fiasco. E também permitiu fraudes.
Vale a pena ler, no original em inglês ou na sua tradução em português, a avaliação feita em 2019 por Soeren Kern, consultor do “Gatestone Institute – International Policy Council”, sobre o fracasso da lei espanhola para a cidadania dos judeus sefarditas. A lei abriu janelas por quatro anos, mas trancou a porta, ficando muito aquém do que se tinha proposto. Diz o relatório: “A Espanha conta hoje com uma das menores comunidades judaicas da União Europeia. Menos de 50 mil judeus residem atualmente na Espanha. É uma minúscula fração do número de judeus que residiam no país antes de 1492.” E, citando o El País: “Não mais de 5.000 judeus sefarditas teriam obtido a cidadania conforme a lei de 2015.”
O relatório faz uma avaliação fundamentada, com descrição de vários factos e suas explicações. Citemos dois deputados espanhóis, num debate parlamentar.
Jon Iñarritu García, deputado da esquerda basca, lamentou: “Queremos manifestar nossa insatisfação em relação a essa lei, que tinha como objectivo restaurar a justiça e que ficou cada vez mais complicada. Só nos resta, perplexos, perguntarmos a nós mesmos quais seriam as razões para todos esses obstáculos.” E acrescentou: “Um membro da comunidade judaica sefardita no norte do País Basco disse-me, a respeito da nova lei, que é mais fácil ganhar o Prémio Nobel do que obter a nacionalidade espanhola.”
Por seu turno, Jordi Jané i Guasch, deputado do centro-direita catalão, rematou: “A lei apresenta sérios problemas por se tratar de uma corrida com obstáculos. Sejamos honestos... não fizemos as coisas direito... há testes demais, requisitos demais, exames demais.”
Se o ministro Augusto Santos Silva, a deputada do PS Constança Urbano de Sousa e a deputada Catarina Rocha Ferreira, do PSD (que também revelou atracção por exigências da lei espanhola), fizerem Portugal ir por aí, destruirão muita coisa pelo caminho. Destruirão, em primeiro lugar, a força e o encanto de uma lei aprovada por unanimidade. É muito importante, numa lei que não é só de reparação histórica, mas sobretudo de reconstrução das comunidades judaicas da Nação Portuguesa e de ampla reunião da comunidade nacional residente e na diáspora, que esse marco seja unânime, enterrando as sobras do anti-semitismo político. Se essa unanimidade for destruída por nova lei, tudo ficará muito mais frágil e voltarão as sobras. Destruirão, em segundo lugar, o prestígio dado a Portugal pela lei de 2013 e colarão ao país a imagem troca-tintas. Destruirão, em terceiro lugar, o caminho sólido, generoso, de construção comunitária, que tem vindo a ser percorrido; e, ao contrário do que parecem pensar, irão estimular os oportunistas, que sempre encontram atalhos.
Sempre que, no passado, seguimos Espanha nesta matéria, fizemos asneira, e asneira da grossa. A última vez foi onde tudo começou, quando D. Manuel, para casar com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, aceitou a condição de copiar, em 1496, o exemplo de Castela e Aragão: expulsar os judeus, como Espanha os expulsara em 1492.
É especialmente chocante o método que está a seguir-se. O PS não apresentou qualquer projecto de lei sobre o tema e quer produzir uma nova lei. Para isso, atrela-se a projectos do PAN e do PCP, aprovados na generalidade, sobre “alargamento do acesso à naturalização”, para, cavalgando-os, introduzir restrições, em vez de alargamento – um evidente abuso e fraude regimentais. Pior ainda quando se percebe que é do governo que tudo se empurra, fugindo à obrigação de apresentar uma proposta de lei, na devida forma – uma quebra clara dos deveres constitucionais.
A deputada Constança Urbano de Sousa, a certa altura, afirmou que a lei da nacionalidade tem de respeitar, pelo Direito Internacional Público, o “princípio da nacionalidade efectiva” e, segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia, os “princípios de não discriminação, da proporcionalidade, da lealdade comunitária e da nacionalidade efectiva”. Fiquei à espera que nos explicasse onde é que a lei não os cumpre, nomeadamente no caso dos sefarditas. Não o disse – na linha do discurso de insinuações, preferiu deixar a ideia no ar. Não seria capaz de o provar. No tocante ao “princípio da lealdade comunitária”, a dúvida que me ficou é se, pelos processos que usa, a deputada conhecerá o significado da palavra “lealdade”, quando aplicada ao Direito, ao método, ao processo e à relação com os cidadãos, mesmo quando são judeus.
Mais perguntas: onde está no programa eleitoral do PS, onde está no Programa do Governo, o discurso e a proposta de revisão da Lei Orgânica n.º 1/2013, de 29 de Julho? Como é que se podem levar a sério as denúncias não documentadas, os números incompletos e desenquadrados, a difamação sistemática do processo administrativo, a lama subitamente lançada sobre os requerentes, a suspeita insidiosa agitada outra vez contra os judeus, tudo em espasmos repentinos e vielas parlamentares impróprias?
Não, não é a história que nos contam. O que se passa é de tal ordem que tem de haver motivos mais profundos e mais fortes para esta ofensiva legislativa. De Espanha não é certamente e o seu vento não bate assim. Quais serão esses motivos? Virão donde? E porquê?
Se continuarem pelo caminho errado que o governo e a deputada pretendem, farão muito mal a Portugal. Farão o pior mal a Portugal, porque farão outra vez mal à ideia de Portugal. E deixarão à solta os mercadores de passaportes. É pena que nos empurrem de volta por aí.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 29.Junho.2020
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