Os deputados dissidentes no actual sistema parlamentar


Nesta legislatura, já tinha havido o caso de Joacine Katar Moreira: o Livre ficou sem o único deputado que tinha para representar os seus eleitores. Agora, foi no PAN e logo com dois deputados: o deputado europeu e a deputada nacional por Setúbal. No primeiro caso, o PAN ficou como o Livre: sem o único deputado que o representava no Parlamento Europeu. No segundo, manteve o grupo parlamentar, mas desfalcado.

A opinião pública costuma brindar estes deputados com críticas ácidas, ora por ter cão, ora por não ter. Se o dissidente sai da Assembleia, logo se ouve: “Era um pau-mandado!” “Não tem personalidade.” Se o deputado decide ficar, a crítica é outra: “Só querem é tacho.” “Andam lá a comer à nossa custa.” “Não têm carácter.”

Cada caso tem particularidades e a sua história. Cabe sempre analisar o que se passou e ver se o partido tem, ou não, responsabilidades. Quase sempre é isso que sucede. Há, é claro, posturas oportunistas de dissidentes, de que o partido é vítima; mas estes casos de ruptura são normalmente tão difíceis e dolorosos para o dissidente que é frequente vermos que foi o partido que não soube medir devidamente o limite do seu poder. Foi esticando a corda... e ela partiu.

Outra questão relevante na avaliação ética do dissidente é a do seu peso específico. A opinião pública liga, hoje, pouco a isso: a impopularidade dos políticos é tão grande que ouvem sempre críticas fortes. Mas, tentando ser objectivo, um deputado relevante na acção do partido e que pesou no resultado eleitoral obtido, tem mais suporte para manter o mandato do que se assim não fosse. Joacine pesou na sua eleição, embora beneficiasse também do Livre. O mesmo se pode dizer do deputado europeu do PAN: era dirigente influente do partido e a sua eleição europeia alavancou o partido para um bom resultado nas legislativas. No outro caso, não tenho elementos para avaliar.

Mas o ângulo mais importante de análise destes casos é o do sistema eleitoral. Habitualmente, estes casos são usados para dizer que, com círculos uninominais (círculos eleitorais em que só é eleito um deputado por partido), estes exemplos repetir-se-iam constantemente. Haveria o “perigo” de ficarmos cheios de “limianos” (um nome inspirado num caso ocorrido em 2000, embora mal contado): deputados que actuam à revelia dos respectivos partidos.

Essa ideia é errada. Primeiro, não é isso que vemos até nos sistemas que só têm círculos uninominais, como no Reino Unido – também há aí dissidentes (facto que faz parte da incerteza da vida política), mas em menor grau e frequência. Segundo, acontece ainda menos em sistemas mistos, como na Alemanha ou Nova Zelândia, que é a reforma que defendemos. Terceiro, ao contrário do que afirmam os resistentes à reforma, os factos provam que o nosso sistema único de listas plurinominais não impede o problema – pelo contrário, já houve vários casos desde há décadas, sempre sem uninominais. Quarto, a evidência mostra que estes casos são mais frequentes num sistema partidário e parlamentar que, favorecendo o autoritarismo dos directórios e a falta de funcionamento orgânico e colegial, quer no partido, quer nos grupos parlamentares, fomenta os confrontos sem retorno e rupturas. Estes casos são, afinal, outro sinal da má qualidade da democracia e sua contaminação: mesmo partidos novos mostram os vícios dos antigos.

Um sistema eleitoral que responsabilize claramente os eleitos perante os eleitores protege o institucionalismo, a organicidade e a colegialidade, gerando deputados mais maduros, senhores da sua responsabilidade, e partidos com funcionamento mais democrático, em que cada um realmente participa, sempre e não só às vezes. O sistema interno de debate e deliberação seria mais saudável e, portanto, mais adulto, sólido e verdadeiro. Os rebeldes seriam mais raros, porque os mandatos seriam mais genuínos e tudo funcionaria melhor. Com deputados mais enraizados nos eleitores, a quem prestam contas, quer o individualismo de prima-donna, quer o quero-posso-e-mando dos chefões e chefinhos teriam menos espaço no sistema. A democracia poderia ter qualidade. Ficaríamos todos a ganhar.

José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade

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3.Julho.2020


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