O Dia em memória das vítimas do terrorismo


A média de vítimas mortais causadas pelo terrorismo nos últimos dez anos foi de 21.000 mortes/ano. Quantos temos consciência da descomunal dimensão deste flagelo? 

Deixei passar um mês e meio sobre 21 de Agosto, para escrever sem qualquer sombra de dúvida sobre o tema. Perguntará o leitor: Mas o que é que aconteceu em 21 de Agosto? A dúvida é muito pertinente – esse é que é o problema. A 21 de Agosto, comemorou-se o Dia Mundial em Memória das Vítimas do Terrorismo e quase ninguém sabe. Ninguém deu por isso. 

Sei-o, porque estive na origem desta história e tenho seguido o seu caminho. É um caso raro de sucesso formal, ainda que, depois, muito vagaroso no plano mundial; e, simultaneamente, de declínio material e substancial, por indolência dos responsáveis e vasta indiferença arrastada. 

A ideia arrancou em 11 de Março de 2004. Deputado ao Parlamento Europeu, fui relator para o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, ambiciosa inovação de Maastricht (1992), que alargou as competências europeias à Justiça e aos Assuntos Internos, matéria muito sensível. Havia que o avaliar todos os anos. Fui relator para o ano 2003, no final do quinquénio 1999/2004. À matriz de avaliações anteriores, aditei alguns ângulos. A abordagem nova por que mais me interessei foi a respeito da acção europeia quanto ao terrorismo. A proposta de Resolução que preparei incluiu-o em diversas recomendações. Porquê? 

O terrorismo é um flagelo internacional que aumentou continuamente de perigosidade. De fenómeno pontual em conflitos nacionais, ascendera ao novo patamar da globalização, como instrumento de conflitos globais: o aterrador ataque de 11 de Setembro de 2001 aos Estados Unidos, em Nova Iorque, Washington e Pensilvânia, atrocidade inimaginável, foi o marco dessa sinistra mudança. O terrorismo não largou a primeira dimensão (nacional), mas misturou-lhe a segunda (global). Se já era muito grave, tornou-se gravíssimo. É impiedoso. Ataca em qualquer lado, com armas de todo o tipo: a tiro, de arma branca ou à bomba, mas também com motorizadas, bicicletas, carros, camiões, até aviões comerciais feitos torpedos. 

Os inquéritos mostravam ser necessária mais forte e lúcida resposta europeia. O Eurobarómetro da Primavera de 2003 indicou os cidadãos europeus, perguntados sobre os seus medos, a porem o terrorismo à cabeça (80% com medo), à frente de hipóteses várias de guerra, riscos nucleares, crime organizado e conflitos étnicos; referiam o combate ao terrorismo internacional como segunda prioridade da UE (90% de menções de prioridade); e colocavam-no como a primeira matéria de decisão europeia (85%), não apenas nacional (13%). No Outono, o Eurobarómetro situava-o como terceira prioridade da UE (89% de menções), cotava-o a meio da tabela na avaliação da efectividade das políticas europeias (6º lugar em 15, com apenas 53% de avaliação de efectividade) e mantinha-o à frente nas questões de decisão comum europeia (84%). 

Na proposta de Resolução, apresentei uma ideia nova: “[O Parlamento Europeu] 4. Manifesta o seu apoio e a sua solidariedade para com as vítimas do terrorismo e respectivos familiares, bem como com as organizações e grupos que lhes prestam auxílio; por conseguinte, recomenda que a União Europeia tome a iniciativa, a nível mundial, de instituir um dia internacional das vítimas do terrorismo e, nesse sentido, solicita à Comissão Europeia que transmita ao Conselho JAI a proposta de fixação desde já de um dia europeu em memória das vítimas do terrorismo e propõe como data para a sua celebração o dia 11 de Setembro.” 

Por coincidência do destino, a votação desta Resolução estava marcada para 11 de Março. Enquanto entrávamos, manhã cedo, no plenário de Estrasburgo, chegavam, em directo, as terríveis notícias dos atentados de Atocha, em Madrid. Como relator e proponente, transmiti de imediato ao Presidente da comissão competente, um colega espanhol, Jorge Hernández Mollar, que deveríamos apresentar uma emenda oral no momento das votações (votação 8.5), mudando a proposta de 11 de Setembro para 11 de Março. Assim aconteceu e foi aprovado. Por fim, na Cimeira Extraordinária convocada para 25 de Março e dedicada ao terrorismo, o Conselho Europeu endossou e consagrou a recomendação do Parlamento Europeu, na Declaração sobre o Combate ao Terrorismo. É assim que, desde 2004, temos o 11 de Março estabelecido como Dia Europeu em Memória das Vítimas do Terrorismo. 

A definição do Dia Internacional, no quadro das Nações Unidas, levaria mais tempo. Até 2009, ainda em Bruxelas, pressionei regularmente para que avançasse. A seguir, fi-lo a partir da Assembleia da República. Em 2011, vindo da Comissão de Direitos Humanos em Genebra, esteve quase; mas paralisou e voltou para trás. Só em 2017 voltaria a subir à Assembleia Geral das Nações Unidas, que finalmente fixou 21 de Agosto como o Dia Internacional em Memória e Tributo às Vítimas do Terrorismo (a data está ligada ao atentado que matou Sérgio Vieira de Mello e dezenas de funcionários das Nações Unidas, em Bagdad, em 19 de Agosto de 2003). 

Por que fiz esta proposta? Por uma tese que fui desenvolvendo no Parlamento Europeu e tenho reforçado cada vez mais. 

O número de vítimas do terrorismo é medonho. Recordo: 21.000 mortes/ano, segundo Our World in Data. Na última década, o número mais baixo foi em 2010 (8.000 mortos) e o mais alto em 2014 (44.000 mortos). Impressionamo-nos com os ataques em Nova Iorque, Londres, Paris, Madrid, Bruxelas, Berlim, Nice, Barcelona, etc. Mas há muito mais do que aquilo que nos toca. A larguíssima maioria das vítimas ocorre em países islâmicos, de onde provém predominantemente esta vaga contemporânea: Iraque, Síria, Afeganistão, Somália, Nigéria, outros. É um flagelo global que esquecemos com demasiada facilidade. No ano de 2018, por exemplo, houve no mundo 8.073 incidentes terroristas, que mataram 32.876 pessoas e feriram 22.651, fazendo ainda 3.534 reféns ou raptados. Quem tem consciência disto? Quem, tendo sabido destes números, ainda se lembra desta cruel mortandade dois anos depois? 

Perguntei-me muitas vezes como é possível que o mundo ainda não tenha sido capaz de acabar com o terrorismo. A conclusão a que cheguei é que é por falta de ilegitimação. 

A verdade é que, apesar do longo cortejo de horrores, a consciência moral do mundo ainda não enterrou o terrorismo – por isso, mantém-no vivo. Continua a atacar, conseguindo surpreender-nos com modos novos de brutalidade. O terrorismo é político. Tem lados. É frequente odiar um lado e desculpar outros – nem sempre em voz alta, mas nas acções e omissões. Além disso, cava uma bipolarização extremista, favorecendo a lógica do “olho por olho, dente por dente”. 

A conclusão a que cheguei – e defendo – é a de que não chegam as medidas policiais, judiciárias e militares, nem de prevenção, vigilância e informações. Estas são fundamentais. Têm registado progressos na cooperação internacional. Mas não chegam. Importa ir ao fundo, ao coração do problema. Há que ilegitimar radicalmente o terrorismo, criando e fortalecendo uma sólida barreira moral contra ele, seja qual for a sua inspiração e o respectivo contexto. Só um espírito global “terrorismo, tolerância zero” poderá fazê-lo passar à História como as execuções públicas, a tortura, a escravatura legal e outras grandes violências. 

Para o conseguir, há dois passos estratégicos essenciais a dar na abordagem do terrorismo: um, passá-lo do plano do Estado para o plano das pessoas, tirando-o da armadilha da disputa política; outro, não o abordar apenas como problema de segurança, mas principalmente como questão de direitos humanos. É aí que o foco contínuo e dominante nas vítimas assume o papel de erradicador fundamental: é por causa dos seus nomes e rostos que o terrorismo é abjecto, repulsivo, intolerável. Temos de lembrar todos, lembrar sempre, chorar com os que perderam os seus, abraçar os que carregam chagas e mutilações, levantar a voz pela libertação de reféns. 

Nunca podemos esquecer. Não podemos tornar barata a memória, nem fazer descontos à pesadíssima lembrança. Cada morto soma a todos os outros e a todos temos de evocar todos os anos em todo o lado. O papel dos Dias em Memória das Vítimas do Terrorismo é esse. Glosar os números, decifrá-los por extenso, com nomes e caras, com histórias de vida, cortadas cerce de repente ou mutiladas para sempre. É preciso amesquinhar, envergonhar, encurralar moralmente, socialmente, politicamente, os que fazem o terrorismo e aqueles que o financiam. 

A seguir à aprovação em 2004, o Dia Europeu ainda teve algum efeito na rua, em 2005 e 2006. Depois, a pouco e pouco, foi-se descafeinando. E nunca saiu de Bruxelas – com excepção, por razões óbvias, de Madrid, algumas vezes. A ideia não era ficar confinado nas instituições europeias, mas irradiá-lo por todas as capitais nacionais da União Europeia (e outras europeias que quisessem juntar-se). A ideia é a de que o Dia ecoe em todos os Parlamentos nacionais, em cerimónias públicas adequadas, ou noutros actos públicos solenes, evocando as vítimas e mostrando-nos todos ao lado das suas famílias. O mesmo digo quanto ao Dia Mundial, que nunca chegou a levantar voo. Na União Europeia, os Presidentes do Conselho e do Parlamento e algum membro da Comissão emitem sempre uma mensagem a cada 11 de Março, assim como, a nível mundial, agora o Secretário-Geral das Nações Unidas, a cada 21 de Agosto. Uma ou outra vez ensaia-se uma tímida cerimónia, mas sempre sem fôlego e para cumprir calendário. As instituições europeias e as Nações Unidas nunca se esforçaram por que os Dias se comunicassem ao plano nacional de cada país, criando grandes patamares de união continental e universal pelas vítimas do terror e suas famílias. Gente concreta, não uma vaga lembrança, fugaz e inútil. 

Lembro-me muitas vezes de Janeiro 2015, quando do ataque ao “Charlie Hebdo”. Causou enorme comoção, chegando a gerar uma manifestação enorme em Paris com líderes de todo o mundo, Mahmoud Abbas e Benjamin Netanyahu lado a lado. Tal como em 2004, o Conselho Europeu convocou uma reunião extraordinária sobre o terrorismo. Quando ocorreu, em meados de Fevereiro de 2015, o tema já tinha saído da agenda mediática, submergida pelo galope incessante doutros acontecimentos. No 11 de Março seguinte, não mereceu mais do que menções circunstanciais. As vítimas, e também o facto, já tinham sido sepultados. 

Defendo há anos que o terrorismo é, hoje, a maior ameaça aos direitos humanos em todo o mundo. Vem de actores não-estatais, mas é a maior, a mais traiçoeira, a mais brutal. É-o directamente, nos ataques violentos que perpetra e no medo que infunde. É-o indirectamente, nas medidas restritivas e intrusivas que provoca nos Estados, para nossa protecção e segurança. Continuaremos a sofrê-lo, enquanto não mudarmos de estratégia e não a completarmos, em permanência e em todo o mundo, com o rosto humano das centenas de milhares de vítimas. São estas caras concretas de crianças e velhos, de mulheres e homens, é este imenso rosto humano destroçado que tornam o terrorismo uma desumanidade insuportável e intolerável, em vez de apenas mais um jogo da política ou outro movimento no xadrez frio dos Estados. 

Essa é a importância dos Dias Europeu e Mundial em Memória das Vítimas do Terrorismo, em todas as capitais da Europa e do mundo inteiro, como noutras acções de espírito similar. Deles depende podermos virar a página. Vivermos, enfim, com mais paz, liberdade e segurança. Sem o terror.



José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 14.Outubro. 2020


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