Se ainda vou a tempo


Se ainda vou a tempo, quero pedir aos deputados que viabilizem o referendo sobre a eutanásia. É essencial que seja realizado para que as decisões legislativas a tomar pela da Assembleia da República nesta matéria sejam alimentadas pela expressão democrática da cidadania e da vontade popular. 

Se ainda vou a tempo, venho pedir que, tendo-nos sido sonegado pela maioria dos partidos o debate e a escolha nesta matéria nas últimas eleições, os deputados não nos soneguem agora a última oportunidade para os cidadãos debaterem e decidirem. Peço-o por favor. Por favor à democracia.

Se ainda vou a tempo, quero esclarecer o senhor deputado Bacelar de Vasconcelos que não tem razão em indignar-se, como fez ontem no debate, com a pergunta proposta para o referendo. A Assembleia pode definir outra, mas a pergunta proposta coloca-se na perspectiva de manter o regime vigente, como é a posição dos proponentes e é também a posição, desde sempre, do Direito português. 

É sabido que usar o verbo “matar”, como na proposta, incomoda os defensores da eutanásia e do suicídio assistido. Compreendo. Mas essa é a dura realidade. É costume usarmos para as crianças expressões e imagens que suavizem, adocem até realidades mais duras. Mas nós somos todos adultos, somos maiores, conhecemos a realidade,  temos a obrigação de a conhecer e contar. Com verdade. 

O único problema na legislação que se prepara é mesmo esse: é matar. Se fosse possível eutanasiar alguém (ou assisti-lo no seu suicídio) sem matar, não haveria o menor problema. O problema é mesmo esse: matar, ainda que a pedido. O senhor deputado Bacelar de Vasconcelos, que é um muito qualificado jurista, conhece a epígrafe do artigo do Código Penal que pretende modificar: é exactamente “homicídio a pedido da vítima”. E também sabe por certo qual é o verbo utilizado neste mesmo artigo, escrito pelo punho de outros qualificadíssimos juristas. O verbo que está na lei penal é precisamente o da pergunta proposta para o referendo: “matar”. Porquê? Por mau gosto, por maldade, por acinte? Nada disso. Apenas porque é a verdade e porque é esse o único verdadeiro problema ético e jurídico.

Se ainda vou a tempo, pretendo retorquir à deputada Mónica Quintela, tendo-a ouvido proclamar, no plenário parlamentar, que “a vida não é Sim ou Não”, que está totalmente enganada. E não pode levar-nos neste seu engano. A vida é precisamente um dos poucos bens, senão o único em termos absolutos, que é mesmo um bem de Sim ou Não: ou estás vivo, ou estás morto; não há meio termo. Por isso, na colisão de direitos, em que os juristas usam as ferramentas da harmonização ou da concordância prática, fazendo encolher um direito para poder acomodar o outro igualmente encolhido, por forma a caberem os dois, o único bem jurídico que o não consente de todo é a vida. Não há vida a 80%, ou a 50%, ou a 30%. Uma vida amputada de parte não existe, é morte. A vida é Sim ou Não. Perdê-la é irremediável, não tem retorno.

Se ainda vou a tempo, solicito à senhora deputada Mónica Quintela que nunca mais diga que “referendar os direitos de todos, é pôr os direitos nas mãos de alguns”. Não diga isso, senhora deputada. Fica-lhe mal. Nós queremos referendar os direitos de todos para, assim, poder pôr os direitos nas mãos de todos. O que a senhora deputada ontem defendeu é que é pôr os direitos de todos nas mãos de alguns: os deputados. Ainda por cima, deputados que foram eleitos fugindo à transparência quanto a estes direitos de todos. Não podem ser esses alguns a decidir dos direitos de todos, sem mandato.

Se ainda vou a tempo, faço um só último pedido: respeito pela vontade popular. Não impeçam a cidadania de debater num quadro de decisão, não proíbam o povo de decidir. Depois, a Assembleia da República poderá legislar. Com democracia, se puder manifestar-se.



José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

RÁDIO RENASCENÇA, 23.Outubro.2020

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