A democracia que deixamos fugir
A crise do sistema político e eleitoral é tão grande que mencioná-la tornou-se um lugar-comum. Não há praticamente ninguém que não diga que a representatividade está de rastos, que não aponte a baixa confiança nos deputados, que não toque o disco do “são todos iguais”, que não indique que a democracia está capturada por directórios e oligarquias e que o sistema não respira com a cidadania, como é a sua ideia de legitimidade.
A degradação tem sido profunda. Em vez de se avançar para a reforma do sistema, é favorecido o curso de ideias – populistas, como é moda dizer – de falsa “reforma”, que não conheço noutras partes do mundo. São ideias filhas do descontentamento com as eleições parlamentares, ideias que ganham oportunidade unicamente porque a reforma eleitoral não é feita.
Uma ideia é reduzir o número de deputados, hoje 230. O número mais ouvido é passar para 180, mas já se ouviu 115 (Paulo Portas, em 2011) ou mesmo 100 (André Ventura, ultimamente). Objectivamente o problema não está no número de deputados: comparando com os Parlamentos do resto da Europa, os nossos 230 correspondem ao rácio mais alto de eleitores por deputado em países de dimensão média (7 a 12 milhões de eleitores). Mesmo olhando à Hungria, único Estado que fez uma reforma radical nos últimos anos, tendo baixado o número de deputados de 386 para 199, o nosso rácio eleitores/deputados continua superior ao húngaro. Para termos o mesmo rácio, a nossa Assembleia teria de ter 259 deputados. Porém, é compreensível que ideias como esta corram facilmente, quando não é feita a reforma necessária e a impopularidade parlamentar cresce, ano após ano, ciclo após ciclo. É como quem diz: “Já que os deputados não nos representam, ao menos que sejam poucos, ao menos que não custem tanto.”
Outra ideia recente é a da limitação de mandatos, sendo frequente ouvir-se a limitação a dois mandatos por cada deputado. Mas a limitação de mandatos é uma ferramenta que se usa para funções executivas, não para órgãos representativos. Num sistema saudável e bem escrutinado, o interesse pode ser o contrário: quanto a um deputado que os eleitores conheçam bem e sintam como bom representante, querer-se-á poder elegê-lo muitas vezes. É o que se passa nos países com democracias sólidas: são frequentes e prestigiadas as carreiras parlamentares longas. É absolutamente normal e positivo. Mas, como não se faz a reforma eleitoral, aquela ideia ganha mercado dentro do mal-estar geral. É como quem diz: “Já que os deputados não nos representam, ao menos que rodem, ao menos não fiquem por lá instalados.” Esta ideia dos “instalados” fala por si: não são vistos como representantes, mas pessoas que se “instalaram” no sistema, ao abrigo de alguma captura, incluindo pelos seus interesses próprios.
O estado da arte é realmente muito mau. A abstenção fala por si: em 2015, já era de 44,1%; em 2019, subiu a 51,4%! Em 10,8 milhões de eleitores, 5,6 não foram votar. É deplorável. Na noite eleitoral, como em todas desde há duas décadas, ouvimos declarações de que “a mensagem foi ouvida” e iriam “cuidar do problema deste desinteresse dos cidadãos”, um “preocupante sintoma” de “descrédito do sistema” que constitui um “perigo para a democracia”. Os partidos tocam bem a música, mas continuam sem querer resolver o problema: o “preocupante” já não preocupa.
Há já 280 meses, a Constituição abriu portas à solução. Foi há 23 anos, em 20 de Setembro de 1997, que a 4.ª revisão constitucional, então publicada, permitiu a evolução do sistema de representação proporcional, que temos desde 1975, para um sistema de representação proporcional personalizado, muito bem concebido: combateria a captura do sistema por poderes oligárquicos fechados, devolveria a democracia à cidadania e garantiria o escrutínio dos eleitos, ou seja, a democracia como poder do povo, a democracia como expressão efectiva da cidadania.
A solução é simples, é possível, é fácil – como não me canso de repetir. É uma solução honesta, que guarda aquilo de que gostamos – a proporcionalidade – e que lhe acrescenta aquilo que não temos e, precisamente, nos faz falta – podermos escolher o nosso deputado. Na proposta que elaborei para o projecto da SEDES e da APDQ, a justa representatividade entre partidos era mesmo melhorada, por um pequeno círculo nacional de compensação, que permitiria repescagens e atenuaria a penalização actual dos círculos mais pequenos, sempre dentro da proporcionalidade da expressão eleitoral.
A solução está aí. É só fazê-la. Um sistema desses pode ser observado, por exemplo, na Alemanha, ou na Nova Zelândia, ou na Bolívia, consoante os gostos. São claramente falsas todas as ideias erradas que se põem a correr a respeito deste sistema misto de compensação. A Constituição acertou em cheio em 1997: a solução a que abriu a porta é realmente muito boa. E serve a todos.
Só apetece perguntar, como já fiz: por que é que nós não podemos ter os mesmos direitos que os alemães? Por que podem os alemães escolher partido e deputado e nós, portugueses, não?
Ao adiarmos esta reforma política fundamental, estamos a deixar fugir a democracia. A cada eleição, o quadro é tendencialmente pior. E se, em cima da falta de reforma, fizermos as falsas “reformas” daquelas ideias de reduzir o número e os mandatos, iremos ver-nos num quadro ainda pior. Além de um Parlamento não representativo passaremos a tê-lo definitivamente funcionalizado, em regime de turnos, com poucos deputados e em situação de “paus-mandados”, mais distantes dos eleitores e mais longe do território.
O imperativo é resolver o problema real que temos, em vez de continuar-se a fugir dele.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
O DIABO
20.Novembro.2020
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