A europeização da política
O tema da europeização da política pode ser abordado em diferentes perspectivas:
- a da evolução das instituições;
- a da evolução da política internacional com emergência de novas organizações internacionais e supranacionais;
- a do conteúdo dos Tratados e leis e da sua evolução;
- e a da prática real da política.
A exposição que farei tocará todas estas perspectivas, embora se foque principalmente nesta última. A prática real da política é, no momento actual, aquela perspectiva da europeização da política em que estamos claramente mais atrasados, porque não assimilámos a evolução política do quadro europeu e, por isso, não aproveitamos plenamente a evolução das instituições.
As instituições evoluíram e avançaram, independentemente da nossa acção, limitando-nos a aderir e a ir atrás; a política internacional e a emergência de novas organizações, idem; os Tratados, idem; é a prática real e as nossas leis de acompanhamento (primeiro no seu teor tímido, depois ainda na sua prática limitada) que mais revelam um baixo grau de europeização.
1. Europeização não é federalismo, talvez mesmo o contrário
Não se pense, quando falo de europeização, que uso a palavra num sentido de integração tão intensa que iria ao ponto da diluição dos Estados-membros no todo europeu. Nada disso! Isso seria uma europeização perversa e nefasta. Eu creio que a europeização é necessária, virtuosa, positiva.
Essa visão seria até o contrário de europeização e provavelmente a sua destruição. A Europa é um continente policêntrico, diverso, multipolar. Sem esse mosaico, sem a pluralidade nacional e a diversidade cultural, social e política que lhe são características, seria outra coisa que não a Europa que conhecemos e desenvolvemos, pelo menos, nos últimos 16 séculos, a seguir à queda do Império Romano. A Europa tem a sua maior riqueza nessa diversidade, que deve ser protegida e valorizada e está ancorada nas nações europeias. Tudo o que for feito contra a individualidade nacional é contrário ao interesse europeu e, portanto, ao projecto europeu – torna-o mais fraco e vulnerável, abala-o nos seus alicerces e pilares e pode pô-lo em perigo.
Não sou federalista. Sou profundamente europeu, sou claramente europeísta, não sou federalista. Na visão que tenho da construção europeia, o federalismo europeu não é preciso para nada e atrapalha e confunde: por um lado, puxa aqueles que o defendem para uma visão errada da Europa, marcada por crescente concentração do poder; por outro lado, empurra progressivamente todos os outros para caminhos de contestação e ruptura, como vimos no Brexit.
O projecto europeu não é a construção de um novo Estado, qual fossem, com este ou outro nome, os Estados Unidos da Europa. O destino da Europa não é replicar, do lado de cá do Atlântico, os Estados Unidos da América. O futuro da Europa não passa pela edificação de um Super-Estado europeu (o que, por sinal, curiosamente, todos negam e recusam).
A 4 de Março de 2017, em entrevista ao EXPRESSO, o anterior Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, declarou: «O que posso dizer é que quando tinha 15 anos era federalista e agora não acredito nos Estados Unidos da Europa. A Europa não pode ser construída contra as nações e os Estados-membros.» É uma posição notável. Uma posição clara e desassombrada, uma posição nova num Presidente da Comissão Europeia, que devemos guardar e aprofundar como o novo paradigma.
O federalismo não tem préstimo, porque é uma forma de construção, formação e organização de Estados nacionais. Sem dúvida a mais perfeita para Estados de grande dimensão geográfica ou com acentuadas complexidades culturais e históricas no seu quadro populacional – mas perfeita para Estados nacionais; inadequada para o que não é, nem pode ser um Estado nacional.
O rumo da União Europeia não é entrar em competição com os Estados-membros, na projecção de um novo Estado federal. O rumo da União Europeia é enquadrar o trabalho em comum de numerosos Estados-membros que, por um lado, querem estar separados e, por outro lado, querem estar juntos. Querem estar juntos, porque querem ser mais fortes; querem estar separados, porque querem ser próprios, não querem deixar de ser quem são.
Os Tratados constitutivos da União Europeia não são Tratados de um dia e, depois, nunca mais. Não. Se entrevirmos nos Tratados como que a Constituição da União Europeia, essa Constituição não reside na deliberação de um qualquer órgão da U.E. ou dos cidadãos europeus no seu conjunto, no que seria um exercício de soberania europeia. Residem no contrato entre os Estados-membros, soberanos, iguais entre si – e assim se mantêm. Isto é, o poder constituinte dos Estados-membros não se extinguiu, nem se extingue com a contratação de cada Tratado; permanece e prossegue, sendo apenas os Estados-membros que podem rever, por novo contrato, aquilo que contrataram. Por outras palavras, os Estados-membros são os sujeitos da União Europeia, não suas partes subordinadas.
Este equilíbrio não deve ser posto em causa; deve ser bem servido. Esse é o eixo fundamental da europeização da política: fazer funcionar em comum uma união de diversas unidades individuais; e pô-la a funcionar cada vez melhor para ganho do conjunto e de cada um.
2. A longa carreira europeia de Portugal
O que chamamos de construção europeia é um efeito directo da 2.ª Guerra Mundial (1939/45), da destruição, das vítimas e do horror que provocou, com particular incidência e intensidade no nosso Continente. A guerra começou, aliás, aqui, tal como já acontecera, duas décadas e meia antes, com a 1.ª Guerra Mundial (1914/18).
Os sobreviventes animaram-se, nessa ressaca das duas terríveis guerras, a construir um quadro novo de relacionamento intraeuropeu, não marcado pelo exclusivo nacionalista, mas pela cooperação, pela aproximação e pela partilha, num espírito de paz e prosperidade: paz para sempre, prosperidade contínua.
Se as gerações da primeira metade do século tinham sido as gerações das guerras, as gerações da segunda metade prometeram-se ser as gerações da paz.
Surgem, assim, várias organizações internacionais europeias, ou aqui ancoradas, que, tendo embora objectos, âmbitos e modelos diferentes, se filiam naquele mesmo espírito: OCDE, Conselho da Europa, Comunidades Europeias (CECA, Euratom e CEE), EFTA e NATO.
A OCDE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico, com sede em Paris, é um organismo intergovernamental de cooperação entre os países-membros, cujo objetivo é coordenar as políticas económicas e sociais, num quadro comum de democracia e economia de mercado, oferecendo uma plataforma para comparar experiências políticas, buscar respostas para problemas comuns, identificar boas práticas e coordenar as políticas domésticas e internacionais de membros. Fundada em 1961, é composta por 37 Estados, não exclusivamente europeus. Porém, é a continuadora da Organização Europeia para a Cooperação Económica (OECE), resultado do Plano Marshall e da Conferência dos Dezasseis (Conferência sobre Cooperação Económica Europeia), que existiu entre 1948 e 1960, abrangendo apenas 16 países europeus – 18, no final. Correspondeu ao estabelecimento de uma organização permanente encarregada de assegurar o lançamento de um programa de recuperação conjunto (o Plano Marshall) e, em particular, de supervisionar a distribuição da ajuda – isto é, foi filha directa da guerra e da paz: a agenda da reconstrução da Europa.
O Conselho da Europa, com sede em Estrasburgo, é uma organização internacional de âmbito regional destinada a promover, através da cooperação dos Estados da Europa, a configuração de um espaço político e jurídico comum no Continente, baseado nos valores da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito. Foi instituída pelo Tratado de Londres em 5 de maio de 1949, sendo a mais antiga das organizações que perseguem os ideais da integração europeia e também a única que integra todos os Estados europeus, com exceção da Bielorrússia e do Cazaquistão, por causa dos seus regimes ditatoriais.
As Comunidades Europeias, com sede em Bruxelas, foram três, abrangendo os mesmos seis membros: Alemanha, França, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. A primeira foi a CECA - Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criada, em 1951, para superar um conflito fronteiriço entre França e Alemanha, já no pós-guerra, por causa da extração e uso de matérias-primas estratégicas: o carvão e o aço. Por causa deste objecto de forte simbolismo e da partilha em mercado comum que estabeleceu como solução do conflito, é considerada a “semente” da União Europeia. Em 1957, seriam instituídas a CEE – Comunidade Económica Europeia e o EURATOM – Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA). Este último fez com a energia nuclear o que a CECA já definira para o carvão e o aço. A CEE, instituída pelo Tratado de Roma, de 25 de Março de 1957, seria a Comunidade-rainha: introduziu novos modelos para dar novo impulso à cooperação dos Estados europeus seus membros, estabeleceu, pelo desarmamento pautal, a União Aduaneira entre estes e instituiu políticas económica comuns (a PAC – Política Agrícola Comum). Embora tivesse objecto meramente económico, conheceria grande sucesso político, vindo a alargar-se gradualmente a novos membros e a evoluir, pelo Tratado de Maastricht de 7 de Fevereiro de 1992, para a actual União Europeia, com objecto mais amplo e recebendo novos alargamentos. Hoje, tem 27 Estados-membros.
A NATO, em português OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte, corresponde à também chamada Aliança Atlântica: uma aliança militar intergovernamental baseada no Tratado do Atlântico Norte, assinado em 4 de abril de 1949. A organização, com sede em Bruxelas, constitui um sistema de defesa coletiva através do qual os seus Estados-membros concordam com a defesa mútua em resposta a um ataque por qualquer entidade externa à organização. O seu instrumento principal de resposta e dissuasão está no artigo 5º do Tratado: os Estados-membros irão em auxílio de qualquer membro que sofra um ataque armado. Inicialmente, a OTAN associou Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, França, Holanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal e Reino Unido, a que se juntou, em 1955, a Alemanha Ocidental. Hoje, tem 30 membros. Não sendo apenas europeia, mas transatlântica, foi a extensão dos anteriores Tratado de Dunquerque (1947) e Tratado de Bruxelas (1948) e tem sido, desde que estabelecida, o pilar fundamental da defesa e segurança da Europa, sobretudo no período crítico da Guerra Fria Leste/Oeste até à queda do Muro de Berlim em 1989, com a consequente derrocada da União Soviética e do seu bloco.
Por último, a EFTA, em português AECL – Associação Europeia de Comércio Livre, foi um bloco económico europeu, criado em 4 de Janeiro de 1960, em Estocolmo, que juntou Áustria, Dinamarca, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suíça e Suécia, para defenderem os seus interesses económicos através da criação de uma área de comércio livre: os produtos comerciados entre Estados-membros não estavam sujeitos ao pagamento de impostos aduaneiros. Era de certo modo uma resposta à criação da CEE, centrando-se na liberalização aduaneira dentro do seu espaço e sem quaisquer propósitos de integração. O seu âmbito geográfico registou entradas e saídas, estas ao sabor dos alargamentos da CEE e, posteriormente, da UE. Actualmente, tem somente quatro membros – Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça – e, desde maio de 1992, estabeleceu um acordo com a CEE/UE, para, nos domínios cobertos, estabelecer e reger em comum o chamado Espaço Económico Europeu (EEE).
Estritamente no quadro da política, o envolvimento europeu da política em Portugal intensificou-se a seguir ao 25 de Abril, no quadro dos chamados “partidos democráticos”: PS, PSD e CDS.
O sistema partidário alemão dispõe, com financiamento público, de um conjunto de fundações políticas próximas dos partidos com assento no Bundestag, focadas na formação política e apoiadas também para a cooperação internacional com partidos homólogos na área da formação política. Até à queda do Muro de Berlim e ao fim da Guerra Fria, estas fundações alemãs concentravam em Portugal e Espanha as suas atenções de cooperação internacional na Europa; a partir de 1989, viraram-se prioritariamente para o Leste, embora mantendo programas com Portugal e Espanha em modelo mais mitigado.
Na área da democracia-cristã, a Fundação Konrad Adenauer (ligada à CDU) e, em menor grau, também a Fundação Hans-Seidel (ligada à CSU) apoiaram, desde 1975, as acções de formação e editoriais de um Instituto ligado ao CDS, o IDL – Instituto Democracia e Liberdade (hoje, IDL – Instituto Amaro da Costa) e, mais tarde, também o IFPM – Instituto Fontes Pereira de Melo. Estes institutos foram o principal centro de formação política e técnica de quadros dirigentes do CDS e da sua juventude (JC/JP) e, no caso do IFPM, de formação de autarcas, por cursos e seminários ministrados em Portugal e algumas visitas de estudo à Alemanha. O CDS perdeu este apoio, a seguir à crise que o fez sair do PPE – Partido Popular Europeu em 1992, retomando-o a partir de 2005.
Na área do socialismo democrático, o PS criou a Fundação José Fontana (na área do sindicalismo, principal suporte dos sindicatos que viriam a dar origem à UGT), a Fundação Antero de Quental (na área das autarquias locais) e a Fundação Azedo Gneco (na área das cooperativas). Mais tarde, surgiu o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento (IED). Estes organismos autónomos de formação política e técnica eram apoiados pela Fundação Friedrich Ebert, ligada ao SPD alemão. Em 2005, as três fundações foram agrupadas como centros de uma mesma entidade, a Fundação Res Publica.
Na área do PSD, estes apoios seguiram o trajecto das peculiaridades de definição e relacionamento externo da “social-democracia” portuguesa. De início, a Fundação Oliveira Martins beneficiou do apoio da Fundação Friedrich Ebert (SPD), no tempo em que o PSD aspirou a integrar a Internacional Socialista – nas vicissitudes da vida política, a Fundação Oliveira Martins acabaria por afastar-se do PSD e cair para a órbita do PS. Quando o PSD se aproxima e integra a Internacional Liberal, o IPSD – Instituto Progresso Social e Democracia passa a beneficiar da cooperação e do apoio da Fundação Friedrich Naumman, ligada ao FDP alemão; e, a partir de 1996, quando o PSD adere ao PPE – Partido Popular Europeu, da cooperação e do apoio da Fundação Konrad Adenauer.
Portugal tem, portanto, uma já longa experiência de participação na construção europeia, que vem desde antes do 25 de Abril e, naturalmente, se intensificou no regime democrático, desde 1975/76. Esta experiência envolveu mesmo a criação de relações muito estreitas no quadro dos sistemas partidários europeus, entre dirigentes e jovens quadros políticos, tudo isto ainda antes da participação de Portugal na integração europeia, a partir de 1986. Vejamos.
Portugal é membro da OCDE, desde a sua predecessora OECE, em 1948, envolvendo vasta cooperação e diálogo nas políticas económicas, no quadro europeu.
É também membro da NATO desde a fundação em 1949, envolvendo extensa cooperação militar, de política de defesa e de política externa, no quadro europeu e transatlântico.
Foi fundador da EFTA, em 1960, com impacto na articulação do comércio externo intraeuropeu, tendo saído apenas em 1986, quando aderiu à CEE.
No Conselho da Europa, Portugal foi admitido em 1976, depois de iniciado o regime democrático constitucional.
E, em 1977, pediu formalmente para aderir à CEE (o Mercado Comum, como se dizia), fazendo valer o mesmo estabelecimento do regime democrático constitucional, mas culminando conversas anteriores entre as Comunidades e diversos países da EFTA, que vinham dos anos 60. A adesão seria assinada em 1985 e concretizada a partir de 1 de Janeiro de 1986, tendo Portugal integrado o quarto alargamento da CEE e feito parte ainda dos primeiros 12 Estados-membros. Participa nas instituições das Comunidades (hoje, a União) há quase 35 anos, já presidiu à CEE/UE por três vezes (no próximo 1.º semestre de 2021, será a quarta Presidência portuguesa da União Europeia) e participou já por oito vezes em eleições directas para o Parlamento Europeu. Este quadro envolve vasto compromisso institucional, intensa cooperação política em todas as áreas de Governo, acolhimento de legislação europeia em cuja produção participamos pelo Conselho (governos) e pelo Parlamento Europeu (deputados), definição e aplicação de algumas políticas comuns, diálogo interparlamentar. É o quadro político e institucional que mais europeíza a política, colocando-a num patamar intermédio ou híbrido entre política externa e política interna, o que é uma realidade completamente nova.
Como estamos, então, quanto a este desafio?
3. O desinteresse democrático pela Europa e pela política europeia
São poucos os países europeus que têm este currículo de Portugal no tocante a europeização da política. E, todavia, dá muitas vezes a ideia de que olhamos para a Europa ainda como estrangeiros. Individualmente, ainda não damos mostras de termos assimilado a condição de cidadãos europeus e, mesmo ao nível das instituições políticas, a nossa visão é limitada, a participação superficial e a intervenção escassa, muito aquém do que poderíamos e deveríamos fazer.
O primeiro e mais evidente sinal desta “estrangeirização da Europa” em Portugal está no generalizado desinteresse pelas eleições europeias, expressa numa altíssima abstenção. É um fenómeno crónico.
Nas eleições para o Parlamento Europeu, a participação eleitoral em Portugal tem estado sempre na casa dos 30%, desde 1994, com abstenção a oscilar entre os 60% e os 70%. Aquando das últimas eleições em Maio de 2019, a participação foi apenas de 30,7%, correspondendo a uma abstenção record e 69,3%: não foram votar 7.470.000 eleitores.
É sabido que este fenómeno não acontece apenas em Portugal, sendo matéria que a União Europeia deve cuidar melhor, aproximando-se mais da cidadania. Mas, por um lado, escusávamos de ser dos piores: em 2019, a participação eleitoral em Portugal esteve 20 pontos abaixo da participação média na União Europeia (50,6%); e cotámo-nos entre os três piores da U.E., apenas ultrapassados pela Eslovénia (28,9%) e pela República Checa (28,7%). E, por outro lado, nós precisamos de fazer melhor que os outros: saber mais, conhecer mais, participar mais, procurar influenciar mais, mostrarmo-nos mais.
A participação democrática é excelente ferramenta para combater e apagar a periferia, sobretudo quando é periferia mental. Cidadãos europeus que somos – os portugueses nascidos desde 1975 são-no desde sempre na sua maioridade –, devemos ser especialistas em assuntos europeus. Devemos tratar por tu as questões e os problemas europeus; ora, não os tratamos sequer por você, mas ainda por Vossa Senhoria, ou deles nem sequer cuidamos de todo.
Conhecemos a música habitual das campanhas eleitorais das eleições europeias e suas noites eleitorais: “os eleitores não estão informados”, “não sabem para que servem estas eleições”, “há uma grande distância entre a União Europeia e os cidadãos”, “entendemos bem a mensagem dos eleitores”, “nos próximos cinco anos vamos tê-la bem presente”, “vamos fazer mudanças e conseguir que essa percepção se altere”. Cinco anos depois… é a mesma música; e, outros cinco anos volvidos, exactamente o mesmo.
Os eleitores não percebem porque, ao longo dos cinco anos de cada mandato em Bruxelas e Estrasburgo, ninguém lhes mostra o que se faz por lá, ou melhor, ninguém os envolve no que se faz por lá.
Há alguns programas na televisão e algumas notícias vão sendo dadas. Mas nada disso é cerzido com a actualidade nacional, com o dia-a-dia dos cidadãos. São dois mundos à parte: a nossa realidade nacional e a Europa, como o estrangeiro mais próximo.
O problema começa nos próprios partidos que elegeram eurodeputados: o que fazem não é tratado no quadro do processo decisório normal e comum do partido. É como se fossem enviados para uma missão no estrangeiro, uma missão importante, mas no estrangeiro.
Quantas vezes, nestes 35 anos, um Congresso partidário se deteve a debater e fixar orientação sobre uma importante questão europeia? Quantas vezes um eurodeputado foi chamado a apresentar uma candente questão europeia ao Secretariado ou Comissão Executiva, para aí obter decisão política, nela participando? Quantas vezes o Conselho Nacional, a Comissão Nacional ou o Comité Central apreciou e decidiu a respeito da linha política quanto a problemas europeus estruturantes, apresentados pelos eurodeputados do partido? É fácil: que eu saiba, nenhuma.
Ora, se os cidadãos não se apercebem de que os partidos em que votam continuam a seguir a ação dos seus eurodeputados e a articular a linha política europeia com a nacional, aproveitando todas as oportunidades e garantindo a coerência entre ambas, é natural que pensem que o desempenho europeu não vale muito. Se não se vê que os órgãos do partido são regularmente ouvidos nos termos normais quanto a matérias de importância política, é natural que pensem que a matéria não é muito relevante e o trabalho feito pelos deputados também não.
Quando voltei à actividade no CDS, no final dos anos 90, suscitei uma reforma estatutária para que o chefe da delegação do partido no Parlamento Europeu tivesse estatuto equiparado ao líder parlamentar. Chocou-me que, quase 15 anos depois da adesão, estivesse tudo na mesma. As necessidades de europeização da política impunham, na minha visão, que os postos principais de cada partido tivessem de passar de quatro a cinco: ao líder, ao responsável pela organização, ao porta-voz e ao líder parlamentar, havia de se acrescer, com estatuto similar, o chefe da representação europeia. Creio que o CDS foi o único partido que fez esta mudança estatutária. Mas lamento ter de dizer que, apesar de o CDS ter modernizado os estatutos, a realidade prosseguiu na mesma: o primeiro deputado europeu continuou como um agente no estrangeiro.
Esta desatenção e descuido quanto à europeização da política passa-se também nas eleições nacionais e quanto à Assembleia da República. O facto de haver eleições europeias não significa que as questões europeias não devam também ser tratadas nas eleições nacionais.
É o Governo, emergente da Assembleia da República, que mais se ocupa das questões europeias, quer no diálogo permanente com a Comissão, quer pelas participações nas diferentes formações do Conselho e no Conselho Europeu. E a Assembleia da República tem competências de fiscalização de toda a acção do Governo, incluindo na política europeia, e de acompanhamento, apreciação e pronúncia em matérias da União Europeia. Ou seja, seria normal e desejável que as questões mais relevantes da política europeia fossem colocadas, enquanto programa de acção política, quer na agenda do Governo, quer na agenda parlamentar de fiscalização e acompanhamento. Ora, nada disto se passa.
Repeti muitas vezes esta frase em que acredito totalmente: «Bruxelas é uma capital da política portuguesa. Lisboa é uma capital da política europeia. Enquanto não entendermos, nem fizermos assim, estaremos a perder.»
Na verdade, creio que estamos a perder. Perdemos maturidade, perdemos consciencialização, perdemos envolvimento da cidadania, perdemos força, perdemos balanço, perdemos visão, perdemos oportunidade.
Deveríamos saber levar as questões nacionais às eleições europeias; e saber levar as questões europeias as eleições nacionais. E, nos intervalos, fazer o respectivo escrutínio (e ver que os partidos também o fazem) dos deputados europeus e nacionais, assim como dos governantes.
Se esta mudança for feita, traduzindo a consciência da europeização da política, acredito que os cidadãos passarão a votar muito mais e até a acreditar, porque entenderão para que servem as instituições e as eleições. Desejavelmente entenderão que Portugal é uma pequena Europa, própria nossa, e a Europa um outro Portugal, onde conseguimos mais do que alcançaríamos sozinhos.
O passado que nos arrastou no alheamento face à dimensão europeia da política teve dois factores adjuvantes.
Um foi a concepção da construção europeia em Portugal como um domínio reservado de dois partidos – o PSD e o PS –, ao modo de uma “carruagem para dois”. Isso favoreceu uma abordagem oligárquica da acção política nesta área, o que contrariou o desejável enraizamento popular e democrático das questões europeias, da agenda europeia do país, da nova cidadania europeia.
Em contraste com a democracia, a Europa era privilégio d’ “os que sabem”; e “os que sabem” eram apenas daqueles dois partidos, que tudo negociavam e repartiam, fosse em Lisboa ou em Bruxelas. Por isso, não havia necessidade de reuniões democráticas para debater e decidir; tudo era decidido nas altas esferas. Assim é que estava bem, afiançavam, porque eles eram “os que sabem”. Este método oligárquico a dois cobriu sensivelmente os governos Cavaco Silva e Guterres, assim como Durão Barroso (um pouco mais mitigado, dada a coligação com o CDS). Uma das manifestações mais sintomáticas desta “carruagem a dois” foi a representação da Assembleia da República na Convenção Europeia que elaborou o projecto de Constituição Europeia ter sido confiada exclusivamente a deputados do PSD e do PS, arredando qualquer deputado do PCP e do CDS. O interesse nacional e o da democracia eram exactamente ao contrário: face à ambição do empreendimento (que viria a fracassar, como sabemos) o interesse nacional e o interesse da democracia eram a mais ampla participação, tanto mais que a maioria nunca estaria em causa.
O outro foi a contínua resistência à realização de um referendo europeu em Portugal. Ainda não o fizemos, sendo um dos poucos Estados-membros que nunca o fizeram. Considero-o um erro fatal, pois tem impedido o povo de se apoderar da temática europeia, familiarizar-se com ela, deixar de a olhar como estranha, distante, mero privilégio sofisticado d’ “os que sabem”.
Há muito que considero que a forma mais eficaz de rapidamente vencer o défice que existe na nossa europeização da política é o referendo, sem dúvida o melhor instrumento disponível.
O referendo europeu colocaria o país a discutir em exclusivo a participação europeia de Portugal e a avaliar insuficiências e virtudes dos nossos sistemas de acompanhamento e intervenção; e, portanto, constituiria uma alavanca de transformação positiva. Ao mesmo tempo, daria resposta a problemas de legitimidade política que, um dia, poderão pôr-se por causa de não estarmos a ouvir o povo soberano a respeito de questões muito sensíveis.
Não creio que os portugueses votassem contra a construção europeia, pelo que o referendo só teria efeitos positivos. Seria um instrumento político de “empowerment”, que rapidamente nos tornaria muito mais maduros e mais ágeis quanto à Europa. E precisamos muito, na verdade, de, quanto ao modo e à substância da política europeia, sermos muito mais maduros e mais ágeis do que somos hoje.
Estivemos quase a fazê-lo, em 1998, para referendar o Tratado de Amesterdão, primeira revisão do Tratado de Maastricht. Em 29 de Junho de 1998, o plenário da Assembleia da República aprovou a “Proposta de realização de referendo sobre a participação de Portugal na Construção da União Europeia”. Ficou a constar da Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98, publicada no Diário da República do dia seguinte, em que se propunha ao Presidente da República um referendo com a seguinte pergunta: «Concorda com a continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão?»
A pergunta era arrevesada, o que se compreende face a uma dificuldade de monta. Foi só a revisão constitucional de 1989 que introduziu os referendos no nosso ordenamento, mas, além de uma complexa perífrase quanto a “questões de relevante interesse nacional”, impedia referendos sobre tratados em geral, estando expressamente mencionados “os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais” – o que, em 1992, foi um dos argumentos usados para não convocar um referendo sobre o crucial Tratado de Maastricht, como foi reclamado por várias vozes, incluindo altas figuras, em linha com o que aconteceu noutros Estados-membros. Em 1998, o referendo quanto ao Tratado de Amesterdão era um eco do debate havido quanto a Maastricht, anos antes.
A revisão constitucional de 1997 aligeirara, entretanto, um pouco aquela restrição, que era mantida, mas poderia ser contornada em determinados termos. Foi necessária alguma ginástica para conceber uma pergunta que perguntasse sobre o Tratado, sem perguntar sobre o Tratado. O resultado foi o citado: «Concorda com a continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão?»
Esta engenharia frásica não teve sucesso. Em 29 de Julho de 1998, um mês depois da aprovação parlamentar, o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 531/98, reprovou a pergunta, considerando que «não respeita os requisitos de objectividade, clareza e precisão exigidos pelo art.º 115.º, n.º 6, da Constituição e art.º 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo.»
Assim se gorou o único referendo europeu em Portugal, em vias de se realizar.
Em 2005, no contexto da preparação da Constituição Europeia, o regime do referendo europeu foi totalmente facilitado, porque a Europa mandou. As instâncias europeias, sempre desconfiadas quanto a referendos, nunca os favoreciam e sempre os contrariavam – é que houve alguns casos de dissabores. Mas, na onda da preparação da Constituição Europeia, que iria abrir toda uma nova era, o clima mudou: houve uma ordem geral para se fazerem referendos em todos Estados-membros, a fim de dotar a Constituição de uma legitimidade triunfal. Foi assim que, em Portugal, se levantaram as trancas, permitindo que, em 22 de Junho de 2005, a Assembleia da República aprovasse, em revisão constitucional extraordinária, um artigo novo. É o artigo 295.º (Referendo sobre tratado europeu), que abriu «a possibilidade de convocação e de efectivação de referendo sobre a aprovação de tratado que vise a construção e aprofundamento da união europeia.»
Ficámos, então, à espera do referendo.
Quanto ao projecto de Constituição Europeia, já não veio a ser feito. A França e a Holanda, em referendos de 29 de Maio e 1 de Junho de 2005, rejeitaram o proposto Tratado Constitucional, com 54,7% e 61,5% de votos “Não”. Este tropeção, ao fim de algumas avaliações da situação criada, levaria ao abandono do projecto de tratado, não se tendo realizado mais nenhum referendo nos Estados-membros a partir desta decisão.
Em 2007, o processo seria retomado, na Presidência alemã, por um projecto de tratado que era um derivado do fracassado Tratado Constitucional. Chamou-se-lhe Tratado Reformador e viria a ser assinado em Lisboa, em 13 de Dezembro de 2007, na Presidência portuguesa. É o Tratado de Lisboa, que está em vigor.
Muitos ficaram à espera da ronda geral de referendos, como aquando da Constituição Europeia; e nós à espera do referendo europeu que nos foi prometido e que, finalmente, já era possível sem obstáculos, nem dificuldades constitucionais. Porém, agora, depois do tropeção em França e na Holanda, as orientações eram ao contrário: se antes havia referendo para todos, agora era referendo para ninguém. Por isso, só viria a realizar-se o habitual referendo irlandês (obrigatório por exigência constitucional, na Irlanda) e Portugal voltou a ficar sem referendo europeu, vendo fugir mais uma oportunidade.
É uma grande falha para a nossa europeização da política, faltando-nos este trampolim que nos permita ganhar conhecimento e à vontade com uma dimensão incontornável da política contemporânea em Portugal. Precisamos de ser mais informados, mais maduros e mais ágeis e, como referi, o referendo pode ser a alavanca acessível que nos faz falta.
Há, quanto à Europa, uma grande preocupação com a soberania. É uma preocupação justa e necessária. Mas o espírito de oligarquia com que vamos funcionando, longe do permanente enraizamento democrático e do tempero popular quanto às políticas portuguesas na Europa e às políticas europeias em Portugal, é que nos vai despojando da soberania.
Não é tanto a Europa que nos tira o senhorio sobre nós próprios, mas são os nossos dirigentes que nos vão tirando a soberania popular, ao não favorecerem – e, às vezes, até impedirem – o conhecimento, a apreciação, a participação, o voto dos cidadãos nas matérias europeias. Assim, ficamos mais fracos.
4. O fraco acompanhamento da acção europeia pela Assembleia da República
O sistema de acompanhamento e apreciação pela Assembleia da República da participação de Portugal na União Europeia foi sempre insuficiente e com pouco relevo público.
A seguir à adesão, foi adoptada a Lei n.º 111/88, de 15 de Dezembro, ainda no quadro das Comunidades Europeias. Estabelecia um quadro interessante de matérias, mas um regime de escrutínio frágil, com preponderância do Governo. O facto de estarmos no período em que as questões europeias eram tratadas, em sofisticado exclusivo, como numa “carruagem a dois” (PS e PSD), conjugado com uma ideia aduladora do “bom aluno” e com a circunstância de estarmos com um governo monopartidário de maioria absoluta, marcou profundamente o espírito português de escrutínio parlamentar da política europeia: pouco, fraco, venerador.
O mesmo espírito se manteve na revisão deste regime legal para o quadro novo da União Europeia: a Lei n.º 20/94, de 15 de Junho. A única mudança significativa foi para pior: a lei de 1998 previa que, na Assembleia da República, «a Comissão de Assuntos Europeus reúne regularmente com os deputados eleitos em Portugal para o Parlamento Europeu» (artigo 5.º). A lei de 1994 veio tornar estas reuniões numa mera possibilidade, à mercê do interesse dos eurodeputados: «encontros regulares com os deputados interessados, designadamente os eleitos em Portugal» (alínea c) do artigo 4.º, n.º 2). Terá sido possivelmente uma exigência dos respectivos passageiros da “carruagem a dois”.
Hoje, rege a Lei n.º 43/2006, de 25 de Agosto, lei de acompanhamento, apreciação e pronúncia pela Assembleia da República no âmbito do processo de construção da União Europeia, entretanto já revista em 2012, 2018 e 2020.
É uma lei muito mais avançada e exigente do que as anteriores, sendo filha da nova abordagem política em Bruxelas quanto ao papel dos Parlamentos Nacionais na construção europeia, desenvolvida no Tratado de Lisboa, convidando-os mesmo a exercer diversos poderes de pronúncia e introduzindo um sistema de alerta e de contestação em defesa do princípio da subsidiariedade. A intervenção por pronúncia da Assembleia da República não se circunscreve apenas às áreas de reserva de competência legislativa. Diz o artigo 1.º-A, introduzido em 2012: «A Assembleia da República emite pareceres sobre matérias da esfera da sua competência legislativa reservada pendentes de decisão em órgãos da União Europeia e sobre as demais iniciativas das instituições europeias, assegurando a análise do seu conteúdo e, quando aplicável, o respeito pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.»
O painel de matérias e de meios de intervenção previstos, quer em plenário, quer em comissão, é bastante amplo, podendo assegurar um escrutínio muito intenso, satisfatório e eficaz, se essa fosse a vontade política dos líderes políticos e dos parlamentares. Porém, o trabalho desenvolvido impressiona apenas do ponto de vista estatístico. Quanto ao impacto e relevância políticos, é infelizmente quase nulo.
Apesar de a lei ter mudado substancialmente em 2006, e daí para cá, nunca se desvaneceu por inteiro o espírito inicial da lei de 1988 e, sobretudo, da de 1994, quanto ao acompanhamento parlamentar da União Europeia: pouco, fraco e venerador. Tivemos um sinal disto na ideia recente de reduzir a metade as presenças do primeiro-ministro nos debates da política europeia, em plenário da Assembleia da República. Foi uma ideia do PSD, apoiada pelo PS – de novo a “carruagem para dois” –, que só foi travada pelo veto do Presidente da República. Por outro lado, os textos europeus são incontáveis, não sendo possível atingir quaisquer resultados significativos se não houver foco nalgumas prioridades, nomeadamente quando é para apreciar o accionamento, ou não, do “cartão amarelo” ou do “cartão laranja” no controlo do princípio da subsidiariedade, ou quando se trata de outra matéria em que Portugal pretenda marcar vigorosamente e articular posição própria.
Desde que estes mecanismos foram introduzidos pelo Tratado de Lisboa, o procedimento de “cartão amarelo” só foi accionado, na União Europeia, por três vezes; e o “cartão laranja” nunca foi utilizado.
Em 2012, o limiar necessário para accionar o “cartão amarelo” – um terço dos votos atribuídos aos parlamentos nacionais (um voto por câmara nos sistemas bicamerais, dois votos por parlamento nos sistemas unicamerais) – foi atingido pela primeira vez: tratava-se de uma proposta de regulamento relativo ao exercício do direito de ação colectiva. A Assembleia da República também participou nesta contestação. A Comissão não concordou que houvesse desrespeito do princípio de subsidiariedade, mas acabaria por retirar a proposta porque constatou que não teria o apoio político necessário no Parlamento Europeu e no Conselho.
Em 2013 e em 2016, o “cartão amarelo” foi accionado mais duas vezes por Parlamentos nacionais: num caso, quanto à proposta de regulamento que institui a Procuradoria Europeia; no outro, quanto à revisão da directiva relativa ao destacamento de trabalhadores. Em ambos os casos, a Assembleia da República considerou que estava tudo bem, colocando-se do lado da Comissão, que considerou o mesmo e decidiu manter as propostas.
A lei em vigor abre, na letra e no espírito, um vasto campo para a europeização da política. Mas falta, na acção política, organização, método e ambição política, traduzindo efectiva participação parlamentar na construção europeia, com gosto e com propósito. A verdade, desde logo, é que os líderes partidários não ligam nada a este acompanhamento, assim como os órgãos de direcção dos partidos, o que contribui para a total menorização da sua importância e o completo desconhecimento da opinião pública. Se o sistema se atolar apenas na rotina e numa mera burocracia de reporte, não passará de mais uma das múltiplas burocracias em que a União Europeia é fértil, a afastam dos cidadãos e a tornam incompreensível.
Seguindo uma classificação adoptada por Maria Teresa Paulo e Cristina Leston-Bandeira, no estudo “O Impacto da Europeização no Parlamento” (IPRI – Instituto Português de Relações Internacionais, Universidade Nova de Lisboa, Working Paper nº 21, 30.11.2006), o acompanhamento parlamentar europeu em Portugal evoluiu de um sistema informal de influência recíproca (nas leis de 1998 e 1994) para um sistema de escrutínio sistemático e de influência formal (na lei de 2006 e suas alterações posteriores). São sistemas que, mais o primeiro que o segundo, «permitem uma maior flexibilidade ao Governo no momento da negociação e que, por isso mesmo, é o modelo de menor intervenção do Parlamento».
Sempre preferi o sistema de mandato «em que o Governo segue as orientações do Parlamento no processo de negociação e votação (aplicado na Dinamarca e seguido, pelo menos de jure, pela Finlândia, Suécia, Áustria, Polónia, Letónia, Estónia, Eslovénia, Lituânia, Eslováquia, República Checa e Hungria).» Por paradoxal que possa parecer a alguns, é o sistema que mais assegura a europeização da política, na concepção que dela tenho, porque é o sistema que, além dos outros mecanismos, traz a Europa até à Nação e leva a Nação até à Europa, na sede dos Parlamentos nacionais, permitindo maior proximidade com os cidadãos e o envolvimento efectivo das democracias nacionais.
Creio que o desiderato do Tratado de Lisboa quanto à participação dos Parlamentos nacionais na construção europeia não se cumpre sem esta componente, que é essencial para se restabelecer e manter um forte laço de confiança com a cidadania. A nossa experiência confirma isso mesmo: mudámos de um sistema informal de influência recíproca para um sistema de escrutínio sistemático e de influência formal, mas, do ponto de vista dos resultados e do impacto político, a diferença não foi grande. Até os debates parlamentares com o primeiro-ministro têm tido tão pouca relevância que se pensou reduzi-los, em vez de melhorar o sistema.
O sistema de mandato tem, ainda, uma grande vantagem nos países pequenos ou, como Portugal, de dimensão média. Diversamente do que se pensa e diz de que prejudica a «maior flexibilidade ao Governo no momento da negociação», penso que efectivamente protege a capacidade de negociação europeia. É frequente nas negociações europeias que os pequenos e médios países sejam postos, em reuniões, debaixo de enorme pressão dos países grandes ou de uma quase maioria de Estados já formada. Aí, o sistema de mandato é um instrumento precioso: sem criar grandes atritos, o representante do Estado pressionado contra os seus interesses limita-se a dizer que tem de ir conversar com o seu Parlamento. Este não recusará algo que, afinal, em segunda apreciação, possa revelar-se correcto ou vantajoso para o país; mas manterá a rejeição do que realmente não tiver condições de aceitação.
Para a boa europeização da política, feita em democracia, não em oligarquia, o mandato do Parlamento protege sempre o negociador: impede-o de errar, protege-o de pressões negativas, serve o melhor interesse público, prestigia o funcionamento da Europa, mantém a Europa próxima dos cidadãos e das Nações.
5. Europeização para valorizar os nossos recursos e cumprir a estratégia nacional
A experiência europeia ensinou-me que é indispensável ter uma estratégia bem definida e persistente para obter ganho na U.E.; e também o como e o porquê dessa indispensabilidade.
A União Europeia é uma grande organização, juntando 27 países com 450 milhões de habitantes e funcionando numa estrutura orgânica vasta e complexa. As decisões são precedidas de longa e larga maturação e o processo decisório é, por isso, demorado. No processo legislativo por co-decisão, são várias as rondas no Conselho e nas duas leituras no Parlamento; e, no início de tudo, a iniciativa da Comissão foi precedida já por várias consultas e audições. Por vezes, este processo gora-se e é retomado anos depois. Outras, a iniciativa só tem condições para ser tomada depois de vários anos de arremetidas políticas. Salvo nos imperativos urgentes, o mais rápido que se consegue trabalhar em normalidade é no médio prazo e é muito frequente agir-se no longo prazo.
Isto não é um defeito, é uma virtude. É a garantia de ninguém ser atropelado no processo decisório e as decisões de fundo serem fruto de uma cuidada ponderação por todos os membros nacionais e todos os órgãos institucionais competentes.
Ora, neste quadro, é difícil que os artistas do improviso e do repentismo tenham grande sucesso. Podem impressionar num ou noutro momento de espectáculo, mas realmente a partitura pertence aos especialistas do planeamento, aos estudiosos da preparação, aos diligentes no método. São estes que realmente prevalecem. Num quadro em que as reformas de fundo levam sete a dez anos a ser decididas e as inovações uns cinco anos a triunfar, só conseguem ter êxito aqueles que: primeiro, têm antecipadamente um pensamento claro, sabendo muito bem o que querem e para onde vão; segundo, em consequência desse pensamento, definem uma estratégia de acção; e, terceiro, se municiam da persistência indispensável à aplicação determinada dessa estratégia até final.
Importa, portanto, ter isto claro na União Europeia: não é possível alcançar sucesso na europeização da política sem ter pensamento, estratégia e persistência. Lido assim, parece óbvio – e, na realidade, é. Mas, infelizmente, não o tem sido.
Nestes 35 anos de pertença às Comunidades Europeias, o que mais demonstrámos colectivamente é grande sofreguidão pelos fundos comunitários, desde o tempo das ajudas de pré-adesão. São milhões e milhões, muitos milhares de milhões, em sucessivos quadros comunitários, que alimentaram disputas e sonhos e encheram várias primeiras páginas dos jornais. Agora, com a “bazooka” europeia, estamos numa nova etapa, particularmente exuberante, desse fado.
É o que chamo de visão mamífera da Europa: olhar a União Europeia como vaca leiteira. Se a Europa manda fundos, a gente gosta; se não manda, a gente zanga-se.
Embora a questão dos fundos seja importante para conseguir a coesão entre Estados-membros, é uma visão muito redutora focarmo-nos única ou principalmente nesse tema. Nesse espírito, não nos envolvemos suficientemente na definição das questões europeias principais, desleixamo-nos na determinação da nossa ideia e dos nossos interesses quanto à Europa, marginalizamo-nos na influência sobre os eixos fundamentais do futuro.
Bem vistas as coisas, com aquela visão mamífera, nem sequer temos tirado verdadeiro proveito dos fundos, apesar de os termos gastado. Ao fim de cinco quadros comunitários de muitos milhares de milhões de ajudas, continuamos a cerca de 75% da média europeia nos indicadores fundamentais e a sermos continuamente ultrapassados por outros que entraram na U.E. depois de nós. Não é nada brilhante.
Importa escolher outro caminho e outro método.
Nos últimos anos, reflectindo sobre o conformismo do discurso de Portugal ser um país pobre, sem recursos e periférico, longe dos grandes, aos quais estimaríamos encostar-nos, e um pouco saturado com esta ladainha, desenvolvi uma teoria sobre os nossos recursos estratégicos que designo de teoria dos quatro recursos e uma circunstância. Os recursos são: primeiro, as pessoas; segundo, o território; terceiro, a posição geográfica; e, quarto, a Língua (e também a História). E a circunstância é a Europa.
As pessoas são o nosso principal recurso: os portugueses. Um grande pensador francês do século XVI, Jean Bodin, escreveu: «Il n’y a richesse, ni force que d’hommes.» - a única riqueza e força que há são as pessoas. As famílias, os jovens, desenvolvidos pela escola e pela Universidade, a criatividade e a inovação, a criação cultural e a ciência, as capacidades técnicas e tecnológicas, as diversas profissões, os empresários, os velhos e a sabedoria, as comunidades de emigrantes, embaixadas do país e polos para internacionalização da economia, a miscigenação são um poderoso recurso do país, que devemos valorizar continuamente pelas políticas de Educação, Ensino Superior, Ciência, Cultura, Formação Profissional e Comunidades Portuguesas.
O território é o nosso segundo recurso, um recurso de recursos, uma arca onde estão guardados muitos outros recursos naturais: o território terrestre, infelizmente tanto ao abandono e um interior dramaticamente esquecido; e o mar, território imenso, a sair ainda de décadas de abandono até ao princípio deste século.
A posição geográfica é o terceiro recurso. Um recurso formidável, cujo valor facilmente apreendemos ao olhar o mapa. Mostra-nos que não somos periféricos e como devemos reconstruir a nossa própria centralidade.
E, quarto, a Língua Portuguesa – e a nossa História e a Diplomacia ao mesmo tempo, pois a Língua viajou na História por todo o mundo, a par com uma Diplomacia que se fez uma ferramenta de relacionamento global. A Língua é um recurso poderosíssimo compreendendo, hoje, 300 milhões os países onde é língua materna ou língua oficial, incluindo as respectivas comunidades de emigrados. Uma língua presente, como língua oficial, nos cinco continentes – o que só é igualado pelo inglês – e que é a 3.ª língua europeia global, a 4.ª língua mais falada no mundo e a língua mais falada no hemisfério sul. Uma língua que define um espaço precioso de cumplicidade, de irmandade e de comunidade: a lusofonia.
E a circunstância? A circunstância é a Europa, no caso, a União Europeia. É na relação com a União Europeia que mais e melhor podemos potenciar aqueles quatro recursos: as pessoas que somos nós, também cidadãos europeus; o território que é nosso e parte do espaço europeu; a posição geográfica de Portugal, na ponta ocidental da Europa, no interface euro-atlântico, varanda da Europa e porta de entrada no Continente; e a Língua Portuguesa, que põe a Europa em comunicação directa com outros povos nos demais continentes e estes com a Europa.
A europeização da política é neste cruzamento que tem lugar e que nos faz toda a falta. Apercebemo-nos intuitivamente da sua importância ao olhar ao recurso que é a nossa posição geográfica; ou ao nosso mar, simultaneamente recurso português e europeu; ou à Língua Portuguesa, também simultaneamente recurso português e europeu. Mas a europeização pode e deve servir a valorização de todos aqueles quatro recursos estratégicos.
É desse pensamento que devemos extrair parte da nossa estratégia europeia, aplicando-lhe, depois, determinação e persistência.
6. A próxima Presidência portuguesa: oportunidade para melhorar e conseguir
No primeiro semestre de 2021, a próxima Presidência portuguesa da União Europeia será a nossa quarta vez: a primeira, com Cavaco Silva, no 1.º semestre de 1992; a segunda, com António Guterres, no 1.º semestre de 2000; a terceira, com José Sócrates, no 2.º semestre de 2007; a quarta, agora, com António Costa. Além da aplicação – esperemos que com diligência e êxito – do respectivo programa, uma Presidência é sempre uma oportunidade para melhorarmos as nossas práticas e legarmos melhores rotinas.
Desejo que isso aconteça quanto ao modo como operamos a europeização da política entre nós, onde necessitamos claramente de um salto qualitativo. Referirei duas linhas que podem ter vértice na REPER, embora não dependam da autoridade desta e exijam a cooperação e abertura de outros actores.
Um tem a ver com o Parlamento Europeu. Enquanto aqui fui deputado, vi a REPER melhorar a relação com os eurodeputados e ir tão longe quanto podia na informação aos deputados das posições de Portugal (governo) quanto a legislação europeia em preparação e outras matérias relevantes na agenda parlamentar. Faltou sempre uma reunião política mensal que me parece essencial: na semana de reunião dos grupos políticos, uma reunião de todos as delegações parlamentares portuguesas com a REPER.
Esta reunião, na semana anterior ao plenário de Estrasburgo, não se destinaria a prepará-lo: já seria tarde para isso e, nessa altura, cada um o prepara no seu próprio grupo político. A reunião seria para preparar a agenda do Parlamento Europeu a dois ou três meses de vista: relatórios ou propostas da Comissão acabados de entrar, identificando aqueles que têm especial interesse para Portugal, para que os deputados portugueses se batam nos seus grupos políticos para obter posições de relator ou relator-sombra; identificação de outros interesses vitais de Portugal, que os deputados poderão defender, se quiserem; questões que Portugal tem em defesa no Conselho ou na Comissão e a que os deputados poderão dar apoio e cobertura, pelo instrumento das perguntas escritas ou por intervenções breves no plenário; candidaturas de portugueses a posições na administração europeia; e outras questões que superem o plano partidário e se prendam com o comum interesse nacional. A reunião poderia ainda antecipar o plenário do mês seguinte, afinando a abordagem dos debates em pré-agenda em que mais aflorem os interesses nacionais, assim como responder a outras preocupações mais imediatas.
É evidente que há muitas matérias em que as posições políticas dos deputados serão muito contrastantes, conforme os grupos políticos a que pertencem e as filiações ideológicas. Mas há muitas – a experiência mostra-o – em que a posição de Portugal é comum a todos ou quase todos; e é aqui que é imperioso olear a preparação comum e atempada, em articulação com a REPER e a acção política e diplomática conduzida pelo Governo.
Melhoraríamos muito com este novo mecanismo. A disponibilidade da generalidade dos deputados para se articularem nos interesses nacionais já se manifesta com alguma espontaneidade. Mas importa organizar melhor esta linha de coordenação a fim de atingirmos mais eficácia na europeização da política.
O problema, no tempo em que insisti por esta ideia até 2009 (quando deixei o Parlamento Europeu), foi a falta de vontade dos dois maiores partidos em iniciarem a prática proposta com a indispensável regularidade mensal. É um caso em que a “carruagem a dois” não tem funcionado – e, aqui, bem falta fazia. Por razões óbvias, a iniciativa deste novo tipo de reunião tem de partir dos próprios eurodeputados portugueses e, dentro destes, a iniciativa e a coordenação devem caber à delegação que tem maior número de deputados, isto é, desde 1986, umas vezes o PS, outras o PSD.
A outra coordenação com vértice na REPER seria a melhor articulação das três frentes:
- A acção junto da Comissão e do Conselho, com uma nova linha de coordenação diplomática;
- A acção junto do Parlamento Europeu, incluindo o trabalho regular com os deputados portugueses como acabado de referir;
- A acção junto da Assembleia da República, através da Comissão de Assuntos Europeus.
A acção junto da Comissão e do Conselho, de que a REPER principalmente se ocupa, pode melhorar muito com a nova articulação com os deputados no Parlamento Europeu, assim como, de modo algo similar, com a Comissão de Assuntos Europeus, em Lisboa. Mas pode melhorar também se lhe forem definidas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros competências de coordenação do trabalho diplomático das nossas embaixadas nas diferentes capitais da U.E., a fim de conseguir melhor e mais apoio dos outros Estados-membros para posições portuguesas em pontos relevantes, nas reuniões do Conselho ou na influência sobre a Comissão.
O novo método de trabalho no Parlamento Europeu já foi desenvolvido, cabendo apenas colocá-lo também nestes três carris de acção política e diplomática.
E a acção da REPER junto da Assembleia da República deve também ser acrescentada neste tríptico. Por um lado, isso poderá dar ao trabalho da Comissão de Assuntos Europeus uma utilidade, importância e visibilidade que tarda a assumir. A Comissão de Assuntos Europeus poderia, com esse diálogo regular, focar-se mais facilmente naquelas matérias que têm mais interesse para Portugal, em lugar de trabalhar vorazmente para a estatística. E poderia pôr ao serviço daquilo que sejam a cada momento a estratégia de Portugal e as prioridades portuguesas a sua rede de contactos com os outros Parlamentos nacionais, conseguindo mais apoio e melhor informação para o andamento dos interesses e aspirações nacionais em Bruxelas e Estrasburgo. Se algumas destas batalhas ecoassem no plenário da Assembleia da República o efeito da visibilidade e do conhecimento da opinião pública também seria conseguido, como é desejável e, em verdade, indispensável.
Não há realmente europeização da política, se não houver democratização dos seus métodos e rotinas.
Recordo, a terminar, a minha frase de que tanto gosto: «Bruxelas é uma capital da política portuguesa. Lisboa é uma capital da política europeia.» A chave para o sucesso de Portugal está aqui.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Deputado ao Parlamento Europeu (1999/2009)
INSTITUTO UNIVERSITÁRIO MILITAR
Curso Avançado de Estudos Europeus (CAEE)
16.Novembro.2020
- por
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