A mudança política nos Açores
As eleições açorianas desencadearam uma importante mudança política, cujos ecos ainda não se extinguiram e atingem a política nacional. Ao seguir os comentários, dá ideia que se desaprendeu como funciona a democracia de base parlamentar. Nos Açores, a maioria mudou; e, portanto, tem de mudar quem governa. Ponto final. É mesmo assim; e está certo.
Inverteu-se a cena do acontecido nas eleições nacionais de 2015, geradoras da famosa “geringonça”. A noite eleitoral açoriana foi um jogo de espelhos com 2015: se, aqui, tinham sido PSD/CDS a reclamar “ganhámos” e o direito de governar, em 2020 nos Açores surgiram PS e BE a dizer “ganhámos” e “a esquerda venceu”.
Compreende-se, por isso, que PSD e CDS, com outros, criticassem, fortemente e em farta risota, a pirueta nocturna do PS e do BE. Têm razão. Mas, ao fazê-lo, PSD e CDS têm de reconhecer, finalmente, o erro teimoso em que caíram em 2015, querendo converter em vitória uma não-vitória eleitoral. É bom que, enfim, o reconheçam, pois este erro (como várias vezes insisto) tem penalizado o desempenho estratégico e o discurso do centro e da direita desde há cinco anos. Ainda há poucas semanas, Miguel Poiares Maduro e Paulo Portas o repetiram: “ganhámos!”. Não é verdade. Os Açores ajudam a confirmá-lo.
O que se passou nos Açores foi isto: numa Assembleia Regional em que a maioria é de 29 deputados, o PS, em 2016, elegera 30 deputados, PSD 19, CDS 4, BE 2, PPM 1 e PCP/PEV 1. Ou seja, o PS ganhara com maioria absoluta, conquistando legitimidade suficiente para governar sozinho; a esquerda tivera ainda uma maioria maior (33 deputados); e a oposição à direita ficara minoritária, com 24 deputados. Em 2020, tudo mudou: PS obteve 25 deputados, PSD 21, CDS 3, Chega 2, BE 2, PPM 2 (um em coligação com o CDS), IL 1 e PAN 1. Ou seja, não só o PS perdeu a maioria, como a esquerda também: PS, BE e PAN não chegam aos 29 deputados. E também não há dúvida de que apenas à direita dos socialistas é possível haver maioria, embora incerta por causa da sua fragmentação – já lá irei.
Recapitulemos 2015 a nível nacional. Sendo a maioria parlamentar de 116 deputados, o PSD, em 2011, elegera 108 deputados, PS 74, CDS 24, PCP/PEV 16 e BE 8. Apoiados nos 132 deputados PSD/CDS, Passos Coelho e Portas formaram uma coligação com maioria absoluta folgadíssima. A esquerda, no conjunto, tinha apenas 98 deputados. Em 2015, mudou tudo: PSD/CDS elegeram 107 deputados, PS 86, BE 19, PCP/PEV 17 e PAN 1. Ou seja, resultou uma maioria de esquerda de 123 deputados, que enquadrou a “geringonça”. É facto que PSD/CDS foram mais votados, mas isto não serve de nada, se não se tem maioria, nem forma de a construir. (Agora, nos Açores, o PS também foi o mais votado, o que não lhe serve de nada, porque não pode construir maioria nem ao centro, nem à esquerda.) Em 2015, a PàF perdeu a maioria absoluta indispensável que PSD/CDS haviam tido, enquanto a esquerda reconquistou a maioria e, por isso, arranjou forma de se entender e governar. Ainda hoje pasmo pelo erro de leitura que se formou e muitos ainda repetem. Como podiam PSD/CDS ter triunfado com 107 deputados em 2015? Como podia isto ser, sendo menos que os 108 obtidos PSD sozinho em 2011 e que não chegaram, necessitando da coligação com o CDS?
Outro sinal da desaprendizagem é a obsessão com a “geringonça”. Diz-se que foi copiada à direita nos Açores. Nada disso. A “geringonça” foi uma forma atípica de acordos parlamentares separados. Nos Açores, regressou-se ao modelo clássico da coligação: PSD/CDS/PPM, com mais deputados que o PS (26 contra 25). Fica a dúvida sobre a viabilização parlamentar, uma vez que faltam três deputados para a maioria.
Aí, entra a IL e o problema do Chega, muito discutido. Um acordo de incidência parlamentar com a IL não teria problema; poderia ser positivo. Já com o Chega é indesejável qualquer acordo político e impossível qualquer acordo estável. Tudo está muito confuso e quero crer que não houve. O líder do Chega, querendo cavalgar um sucesso regional, logo proclamou que não viabilizaria um governo regional à direita do PS. Rapidamente foi chamado à pedra pelos eleitos regionais e arrepiou caminho. O mesmo líder do Chega, depois de um curso rápido de autonomia regional, iniciou, então, uma escalada de discurso oportunista sobre o líder do PSD, metendo a martelo questões de revisão constitucional. Entendeu-se bem como são totalmente diferentes, no Chega, as questões açorianas dos deputados e as exuberâncias nacionais do líder. Ora, quem vota são os deputados regionais com autonomia.
Não é preciso qualquer acordo com o Chega. É o Chega que tem de assumir as suas responsabilidades perante os eleitores. Se quer aliar-se a PS, BE e PAN para chumbar o governo PSD/CDS/PPM, que o faça. Se, a seguir a isso, quiser viabilizar um Governo do PS com BE e PAN, que o faça – e estes todos que expliquem o que acordassem com o Chega.
Democracia serve-se com democracia. O remédio é deixar a Assembleia Legislativa Regional funcionar, na sua lógica parlamentar. A verdade é que o governo PSD/CDS/PPM é minoritário – mas tem, em abstracto, condições para navegar num espaço maioritário. Por um lado, pode não precisar de mais votos a favor; podem bastar-lhe abstenções. Por outro lado, também o PS pode ser condicionado a abster-se, se não quiser destruir a reputação regional de partido de governo, ao enveredar pela irresponsabilidade do bota-abaixo. Um governo PS seria igualmente minoritário – mas com poucas condições para criar um espaço maioritário onde pudesse navegar.
Se este quadro originasse um impasse, o resultado não seria estranho: eleições outra vez. E o Chega seria por certo penalizado se traísse o mandato de mudança de 25 de Outubro, pondo-se ao serviço da esquerda.
O governo regional PSD/CDS/PPM tem legitimidade e condições para se formar e manter sem qualquer acordo com o Chega. Este seria, aliás, um desastre político. Nenhum dos partidos da coligação PSD/CDS/PPM, nem a IL podem comprometer-se numa barganha política com um partido cujo líder faz gala em apresentar propostas que violam a dignidade e a integridade física da pessoa humana, além doutros radicalismos impartilháveis. Ainda por cima, em patamar constitucional e correspondendo a propostas que não servem para nada, senão para exercício de músculo e garganta. Creio que não existe acordo. E ainda bem. Não seria a solução para um problema que não há. Longe disso. Seria um enorme problema que destruiria a solução resultante das eleições regionais. E ribombando mais alto.
O caminho da mudança é claro: governar bem. Se provocarem crise, vemo-nos em eleições.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade
DIÁRIO DE LEIRIA
DIÁRIO DE AVEIRO
DIÁRIO DE COIMBRA
JORNAL "I" (online)
13.Novembro.2020
Comentários
Enviar um comentário