Francisco Sá Carneiro, o cometa de 1980
Francisco Sá Carneiro tem três tempos principais de intervenção na política portuguesa.
Primeiro, político da transição democrática. É aí que se torna conhecido do país como líder da Ala Liberal, posição em que sucedeu a José Pedro Pinto Leite, tragicamente falecido em 1970. Aquando do 25 de Abril, Sá Carneiro tinha acabado de liderar um grupo de deputados, eleitos em 1969, que pretendiam, na “abertura” de Marcelo Caetano, reformar o regime por dentro, o que se frustrou por inteiro em 1973.
Segundo, fundador do Partido Popular Democrático, logo em Maio de 1974. As autoridades revolucionárias sabiam quem era, conheciam a sua identidade política à frente dos deputados dissidentes da “Primavera marcelista”. Obteve reconhecimento imediato, integrando logo o I Governo Provisório, de Adelino da Palma Carlos, ao lado de Mário Soares e Álvaro Cunhal, líderes do PS e PCP. Enfrentou adversidades. Por razões de saúde e conflitos internos, esteve várias vezes ausente da liderança do PPD. Saiu e voltou, com a tensão dramática própria destes momentos. Muitos passaram a vê-lo como difícil e conflituoso. Sá Carneiro era exigente e de posições fortes: por exemplo, depois da queda de Palma Carlos, nunca mais aceitou integrar qualquer outro dos governos provisórios, por considerar um erro ter feito cair Palma Carlos – e tinha razão. Dos líderes de PS, PSD e PCP, foi o único que nunca integraria os governos gonçalvistas.
Terceiro, líder da Aliança Democrática, o líder dos líderes da AD: Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Ribeiro Telles. É nesta qualidade que melhor o conheci, nos 329 dias que, como secretário de Estado de Freitas do Amaral, estive no governo que liderou. Grande primeiro-ministro! Foi uma experiência curta e intensa. Não era a pessoa “difícil e conflituosa” que lhe haviam colado como fama, mas um líder, forte e carismático.
Se há terreno difícil para liderar em política é uma coligação, pela natural tensão dos interesses das partes. É um fortíssimo teste à capacidade de liderança. Sá Carneiro relevou-se muito acima das expectativas, desde o primeiro minuto. Introduziu uma visão comum de Portugal e da AD, sem linhas tracejadas a dividir as partes: PSD, CDS e PPM. Impediu, assim, trincheiras internas e calculismos pequeninos. A AD teve uma química poderosa, que emanava da coesão exemplar dos líderes. Isto era também animado pelos dirigentes do CDS e do PPM, mas nada seria possível se o líder do maior partido seguisse uma dinâmica egocêntrica. O instinto e a sabedoria de Sá Carneiro viram-se logo na forma como conduziu o PSD a aceitar as listas conjuntas, que foram determinantes para a vitória eleitoral. E que vitória! Em 1976, os três partidos tinham somado 40,9%, elegendo 115 deputados em 263. Em 1979, obtiveram 45,3% e ganharam 128 deputados em 250. Nesse tempo, ninguém tinha dúvidas de ser preciso maioria absoluta para ganhar as eleições e formar governo – conseguimos. A química da AD irradiou tão pujante que se replicou nas autárquicas desse Dezembro de viragem. Nas eleições locais de 1976, o CDS ganhara 36 municípios e o PSD 115, empatando com o PS com outros 115; em 1979, a AD e os seus partidos subiram de 151 para 194 presidências de municípios! A base da AD era fortíssima.
Além da capacidade de liderança, era um resistente. Atravessou aquele ano de 1980 debaixo de fortes ataques políticos e até pessoais. Em Outubro de 1980, quando o povo falou de novo nas eleições, a AD subiu mais 2,3 pontos em apenas 10 meses: 47,6% dos votos, 134 deputados em 230!
Estava tudo pronto para uma grande legislatura e numerosas realizações. Aconteceu Camarate. Levou-nos Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa – e a AD também.
Ninguém sabe como seria com Sá Carneiro essa legislatura até 1984. Até porque começaria sempre com um revés importante: a derrota nas presidenciais. Nesse contexto, dizia-se que Sá Carneiro deixaria o lugar de primeiro-ministro e passaria para a bancada parlamentar. Duvido que aí se mantivesse muito tempo. E acredito que, num processo acelerado pela adversidade estratégica das presidenciais, a falada “institucionalização da AD” ter-se-ia concretizado sob a sua liderança incontestada. Freitas do Amaral e Amaro da Costa apoiavam-no por inteiro. no CDS. Passaríamos a ter o equivalente a um grande partido do centro, como a UCD de Adolfo Suarez na vizinha Espanha. E quem sabe se esta parceria peninsular não teria ajudado a UCD a manter-se e a escapar à desagregação anos depois, curiosamente na mesma altura em que a AD também ruiu e acabou em Portugal.
Olhando para trás, dá ideia de que com Sá Carneiro tudo teria sido possível. Até, como queríamos, antecipar para a revisão constitucional de 1982 aquilo que só se obteria na de 1989 e concluindo a desideologização da Constituição. Portugal teria ingressado nas Comunidades Europeias com um regime económico aberto e aproveitado em pleno o choque da adesão.
Ouvi alguém comparar Sá Carneiro a um cometa, pela forma luminosa como cruzou o ano de 1980, inspirando multidões. Alguns dos mais famosos cometas voltam novamente, passadas algumas décadas. Sá Carneiro não voltará mais. Deixou-nos o legado, o combate vitorioso, a memória. Nunca nos desapontará.
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