A perigosa erosão das eleições presidenciais
Não há democracia sem partidos. Também não há partidos em acção representativa sem democracia. Os partidos não são os únicos actores, nem são sequer os sujeitos principais – convém sempre lembrá-lo. Os sujeitos são os cidadãos: constituem o povo, que é o corpo da democracia. Fossem os partidos o principal, o regime seria partidocracia.
A função dos partidos é instrumental: organizar a expressão da vontade popular. Exprimem ideias, por que os seguidores se agrupam no debate colectivo, influenciando a opinião e organizando as escolhas eleitorais. É nefasto para a democracia que os partidos galguem a cidadania, se apossem inteiramente do sistema e se imponham como alfa e ómega da coisa pública.
A nossa democracia atravessa há muito uma crise profunda, cuja génese está nos excessos partidocráticos. O sistema eleitoral das legislativas foi a primeira vítima dessa gula. O aparelhismo partidário e as oligarquias internas atacaram pela vulnerabilidade das listas fechadas: apossaram-se totalmente destas, desprestigiaram a função parlamentar, afastaram os deputados dos cidadãos, generalizaram o desinteresse e o descrédito.
O perigo é fazerem o mesmo às eleições presidenciais.
O Presidente da República, no nosso sistema político, não é um chefe partidário. Tem o papel de “Presidente de todos os portugueses”, cabendo-lhe, além do escrito na Constituição, o bom rasto do Poder Moderador da antiga tradição constitucional. Todos os nossos Presidentes não tinham ou afastaram-se de vestes partidárias: Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco, Marcelo. Os seus principais contendores também: Freitas, Alegre, Sampaio da Nóvoa.
Porém, a semente do partidarismo esteve quase sempre na abordagem do PCP: apresentava um candidato para defender o seu território eleitoral – Octávio Pato, Carlos Brito, Carvalhas, Jerónimo de Sousa, António Abreu, Jerónimo de Sousa de novo, Francisco Lopes, Edgar Silva. Algumas vezes o candidato desistia antes da votação, como sucedeu em 1980, 1991 e 1996 e era já a táctica comunista em eleições presidenciais no regime anterior.
Depois, surgiu outra ideia: instrumentalizar as eleições presidenciais para novos partidos ou partidos pequenos conseguirem um efeito de projecção e lançamento. Começou com a UDP, com candidatos desistentes (em 1991 e 1996) e foi prosseguido pelo BE (Rosas, Louçã e Marisa), pelo MRPP (Garcia Pereira) e pelo PND (José Manuel Coelho). Pelo meio, surgiram ainda candidaturas a representar partes de um partido, o PS: Alegre e Soares, em 2006; Maria de Belém, em 2016.
As melhores eleições presidenciais na expressão livre e aberta da cidadania foram as de 1986, a que concorreram quatro grandes figuras da vida portuguesa, agindo com independência e completa desvinculação relativamente aos partidos e direcções partidárias, cada candidatura com um projecto próprio para o país: Mário Soares, Feitas do Amaral, Salgado Zenha e Maria de Lurdes Pintasilgo. Foram as mais belas eleições presidenciais de todas, as mais marcantes e as únicas que registaram mobilizações extraordinárias e tiveram segunda volta. A partir daí, de ciclo em ciclo, foram perdendo o fulgor de cidadania e derrapando para o alagamento pelo partidarismo.
Esta eleição presidencial é a pior de sempre na derrapagem. Só há um candidato a Presidente da República: o incumbente Marcelo Rebelo de Sousa. Todos os outros não correm para a Presidência; utilizam as eleições para cumprir missões partidárias. Não há outros candidatos a representar áreas alargadas e a apresentar projectos presidenciais alternativos, com visão de cidadania livre. Independentemente do valor pessoal dos candidatos, o quadro global é muito pobre. Há candidatos a procurar projecção e crescimento partidários (Mayan, IL e Ventura, Chega), outros a defender território (Ferreira, CDU e Marisa, BE), a afirmar uma parte do PS (Ana Gomes) ou em busca de antena (Tino, RIR).
As eleições presidenciais, apesar de debates interessantes, não servem para isto. Servem para eleger o Presidente da República, o cargo mais importante do país. Os debates poderiam ter acontecido, noutra altura, numa escola secundária ou numa Universidade, seriam igualmente interessantes. Estariam igualmente ao lado de qualquer escolha.
A fragmentação e pulverização partidária de todas as candidaturas, menos uma, empobrece muito as eleições. Faz lembrar as barraquinhas de tiro nas feiras populares, em que com uma pressão de ar procurávamos acertar num alvo, frequentemente uma serpentina, para ganharmos um cálice de prémio: “Ó amigo, vai p´rá ginjinha?”, “Um abafadinho?”, “E agora, um Eduardinho?”, “Mais um para a amêndoa amarga, freguês?” É divertido, mas as eleições presidenciais não se ajustam a ser passerelle de partidos. Esta erosão pode matá-las. E tornar mais fraca e pior a nossa democracia, de que os cidadãos se afastam cada vez mais.
Os partidos políticos existem para servir os cidadãos. Fazem mal ao usurpar a democracia com a agenda dos seus interesses e cavalgar a cidadania em vez de a exprimir.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 20.Janeiro. 2021
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