A golpada (parte 2)
Já cá faltava
a cena do “parecer vinculativo” do Conselho Nacional de Jurisdição para a golpada ficar
mais composta. Foi a reprise de uma cena estreada há uns anos.
A peça do
dito Conselho, junto com os Estatutos e Regulamentos, merece ser lida na
íntegra e estudada nas faculdades de Direito: tem aptidão para ser um caso de
escola de manipulação da Jurisdição para fins políticos, assim como de decisão
irregular, ilegal e inconstitucional, cujo exame muito beneficiará os alunos a
aprender o que não se deve fazer.
O “parecer”
começa por se engalanar com a citação – e bem – do artigo 51.º, nº 5 da
Constituição: «Os partidos políticos devem reger-se pelos princípios da
transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de
todos os seus membros.» É assim mesmo.
Dir-se-ia que
seria para aplicar a norma. Nada disso. É efeito de ilusionista: enganas com
uma mão para distraíres o que fazes com a outra. Metendo-se em atalhos e
ruelas, curvas e contracurvas, o “parecer” conclui em negação da exigência
constitucional que citou de princípio. Querer impor, como faz, o voto secreto
na votação de uma moção de confiança é decretar e pretender forçar uma evidente
lesão do “princípio da transparência” – repito, da transparência – e, por via
desta, uma lesão também do “princípio da organização e da gestão democráticas”.
Os Estatutos
do CDS-PP contêm a norma habilitante em que o Conselho se montou. É o n.º 5
do art. 40.º: «Compete ainda ao Conselho Nacional de Jurisdição emitir, a
solicitação de qualquer órgão do Partido, pareceres, de carácter genérico,
permanente e vinculativo, sobre a interpretação de normas estatutárias ou
regulamentares e sobre integração de lacunas.»
O Regulamento
de Disciplina repete-o ipsis verbis no art. 8.º. Diz o n.º 3:
«Compete ainda ao Conselho Nacional de Jurisdição emitir, a solicitação de
qualquer órgão do Partido, parecer sobre a interpretação de normas estatutárias
ou regulamentares ou sobre a integração de lacunas.» E remata o n.º 4: «Os
pareceres do Conselho Nacional de Jurisdição têm sempre carácter genérico,
permanente e vinculativo.» Este regime foi introduzido, salvo erro, no período
do portismo, que foi o seu primeiro utente e creio que único.
O Conselho
pode, por conseguinte, interpretar normas – sobre que se suscitem dúvidas – e
integrar lacunas. Porém, não fez nada disso. Inventou. Para avançar para a
decisão pedida, teve de dar um garboso salto à frente em ousado mortal empranchado,
invocando apenas “eu posso” e “o que eu digo vincula”. Não é assim. Só é em
regimes de ditadura ou democracia iliberal.
Lacuna, não
há nenhuma. O Regimento
do Conselho Nacional regula directamente a matéria. E norma duvidosa, também
não é indicada. Espanta, na verdade, como, ao longo de oito prolixas páginas, o
“parecer” não se digna referir qual é a norma estatutária ou regulamentar que
está a interpretar. Lê-se da frente para trás e relê-se de trás para a frente
as oito copiosas páginas e não conseguimos ver onde está a norma interpretada,
qual a dúvida suscitada e porquê e, assim, a solução sabiamente descoberta para
o angustiante enigma. Nada.
O pedido, ele
próprio, não indica qualquer norma duvidosa. Limita-se a passar um atestado de
menoridade aos conselheiros nacionais do CDS, condoendo-se por, votando de cara
aberta, terem medo de expressar a sua vontade ou deixarem-se influenciar pelo
curso da votação nominal. Diz o peticionante, citado no “parecer”: «Na votação
nominal “cada Conselheiro Nacional é chamado, um a um, a indicar o seu sentido
de voto, diante de todas as restantes. As restantes, à medida que vão sendo
chamadas, não só exibem individualmente e solitariamente o seu sentido de voto,
como sabem, nesse momento, qual o resultado provisório da votação.”» Não é a
mui glosada angústia do guarda-rede antes do penálti, mas a inovadora angústia
do conselheiro antes do voto.
O “parecer”, por
seu turno, na sua farta, pronta e solícita resposta, também se esquece de
indicar a norma que interpreta. Em verdade, não se esquece; omite-a propositadamente,
porque não existe. Não existe norma a esclarecer, nem dúvida atendível. O Regimento
do Conselho Nacional é claríssimo no art. 34.º, n.º 1: «Compete ao
presidente do Conselho Nacional fixar a forma e o processo das votações, sempre
que não haja disposição especial que os defina.»
Esta falta do
CNJ é gravíssima. Primeiro, porque andou por lá. O “parecer” cita o n.º 2 do mesmo
art. 34.º: «As deliberações que respeitem a matéria disciplinar, recursos,
eleições ou nomeações serão tomadas através de votação por escrutínio secreto.»
Mas, tendo lido o n.º 2, finge que não leu o n.º 1. Finge este esquecimento
porquê? Para esconder que aquilo que queria fazer era usurpar os poderes do
presidente do Conselho Nacional.
A matéria
sobre que o Conselho quis decidir é uma matéria que, nos termos dos Estatutos e
Regulamentos do CDS, compete exclusivamente ao presidente do Conselho Nacional.
Dizendo de outro modo: o CNJ cometeu flagrante usurpação de poderes; violou a
separação de poderes; e abusou, quando, sob o pretexto de interpretar normas
duvidosas, não interpretou coisa nenhuma, mas pretendeu emitir um decreto
autocrático, isto é, “legislou”. Ninguém lhe deve obediência. Pelo contrário.
Perante isto
e nas circunstâncias difíceis de um incidente processual, os dirigentes podiam conceder
a votação secreta. O presidente do Conselho Nacional tem esse poder e, se
necessário, o próprio Conselho o podia confirmar. Assim fizeram, na pressão do
calor da reunião e ponderando certamente, no plano político, o menos mau para o
partido naquelas circunstâncias. Não tenho nada a contestar, pois só estando lá
se pode ajuizar. Porém, tenho a opinião, que é discutível, de que, em bom
rigor, não se deve determinar, mesmo querendo, o voto secreto fora das matérias
expressamente previstas no Regimento: matéria disciplinar, recursos, eleições
ou nomeações.
O voto
secreto nos Parlamentos – os conselhos nacionais são os parlamentos dos
partidos – é a excepção. E a excepção deve ser rara. A regra democrática é a
votação aberta, que toda a gente pode seguir e ver. Não há democracia sem isso.
Não há
democracia, se as eleições não forem por voto secreto; e não há democracia se o
funcionamento dos órgãos eleitos não for de cara aberta. No fundo, é aquilo
que, com fonte na Constituição, o “parecer” citou de início e não segue: os
partidos «devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da
gestão democráticas e da participação de todos os membros.»
Os órgãos
eleitos são constituídos por pessoas eleitas directa ou indirectamente, que
estão sujeitas a escrutínio. Ora, o escrutínio só pode ser feito, se o sentido
em que votam é visto e conhecido. São representantes que têm de prestar contas
aos representados. Esconder é batota – é violação da democracia.
As moções de
censura e de confiança são actos políticos da prática parlamentar e momentos da
maior intensidade política. Não conheço nenhum Parlamento em que a votação
dessas moções, essenciais na vitalidade da democracia política e parlamentar,
seja feita por voto secreto. São sempre de cara aberta. Normalmente, por
levantados e sentados ou por braço no ar; às vezes, por votação nominal. Seria
grave lesão da democracia se o sentido em que os deputados votam fosse
escondido; e que o resultado publicado não se soubesse como tinha sido gerado.
Práticas escandalosas deste tipo talvez sejam consagradas na Venezuela ou na
Bielorrússia, ou regimes similares. Não sei. Mas, se existem, não são exemplos
para seguir.
O “parecer”
enveredou ainda por excursões ao interior de dois partidos, para ludibriar os
leitores. Primeiro, ao PCP, gastando tinta inútil com larga lengalenga a
respeito de práticas deste e da aprovação da lei dos partidos políticos. O que
diz está certo, mas não tem nada a ver com o assunto. O PCP opôs-se, porque era
contra uma lei que ingerisse na liberdade de definição estatutária e queria
manter a possibilidade de fazer eleições por braço no ar, se quisesse. Foi esta
a questão sobre a obrigatoriedade do voto secreto – e bem. Mas isso é pacífico
e não está em causa. Segundo, outra excursão ao PSD, dizendo que, num caso
semelhante, “o Conselho Nacional do PSD e o seu Presidente decidiram e optaram
pelo escrutínio secreto em vez de braço no ar, por se afigurar que só esta
forma de votação assegurava a transparência necessária e a total liberdade”.
Isto não é verdade; ou seja, é mentira, por sinal, grosseira. O que se passou é
que, na altura, o Regimento do PSD atribuía, sem qualquer restrição, a 10% dos
conselheiros o direito potestativo de provocarem a votação secreta. Accionado
este direito no caso de uma moção de confiança, gerou-se acesa controvérsia
entre a literalidade da norma (defendida pelos proponentes) e princípios gerais
(invocados pela Mesa). A Jurisdição foi chamada a pronunciar-se e apoiou a
literalidade da norma – no calor da disputa e em cima dos factos, nem podia decidir
de outro modo. Havia norma expressa, sem qualquer ressalva. O votação secreta
acabou por acontecer, por proposta da direcção. Mais tarde, o PSD reviu a norma
estatutária e esclareceu o regime que, a meu ver, está correcto. O art.º 13.º
do Regimento
do Conselho Nacional fixa, hoje: «O disposto na alínea c) do número
anterior [votação secreta requerida por 1/5 dos conselheiros presentes] não se
aplica à votação de moções de confiança ou de censura.» Onde há Estado de
direito e democracia, é assim.
No caso da
reunião do Conselho Nacional do CDS, o caso era ainda pior. Por causa da
pandemia, era uma reunião à distância, com recurso a meios telemáticos, o que
coloca problemas especiais não só para assegurar transparência, democracia e
participação, mas também a pessoalidade e liberdade do voto. O voto
electrónico, à distância, sendo secreto, perturba a garantia de quem vota ser o
titular efectivo do direito de voto estar a votar em plena liberdade. No voto
electrónico, é um problema clássico, bem conhecido e muito debatido. Por isso,
nos países onde se aplica em eleições (sempre secreto), o voto electrónico é
exercido em locais públicos (secções de voto), onde pode ser devidamente
garantida a pessoalidade e a liberdade de cada voto.
Esta
circunstância torna ainda mais grave a decisão ilegal e inconstitucional do
CNJ: abusou dos seus poderes, quis usurpar poderes atribuídos a outra instância
e quis impor ao Conselho Nacional um sistema de voto frágil e vulnerável, na
forma e na circunstância. Essa imposição – legislação em ditadura, pelo CNJ –
ficou a pairar como uma assombração sobre o futuro do CDS.
A deliberação
de favor, tomada na véspera à noite de um Conselho Nacional já com carga muito
elevada, prestou mais maus serviços ao CDS – que bem os dispensa – e criou mais
atritos, de que ninguém precisava. O partido precisa de união – que não é
unanimidade –, a qual só pode existir na paz das regras. Isto é, quando todos
conhecem, aceitam e respeitam regras de convivência, de debate e de decisão. A
Jurisdição deve, aliás, ser o mais alto exemplo disto, para poder ser o seu mais
fiel e respeitado zelador – em vez de principal ofensor. Quando se abre e
reabre consecutivas zaragatas sobre as regras, cava-se o caminho para o
desastre.
Pena ainda
que muitos conselheiros, agitados defensores de um “parecer” ilegal, não
tivessem considerado também os deveres que constam do art. 5.º do Regimento:
«Observar a ordem e disciplina referidas neste Regimento e respeitar a
autoridade do Presidente do Conselho Nacional ou dos Vice-Presidentes em
exercício de funções; Contribuir pela sua diligência para a eficácia e prestígio
dos trabalhos do órgão a que pertencem.»
Por isso, na
linha do que já acontecera no Conselho Nacional de 12 de Janeiro, a reunião amolgou
muito a imagem pública e o prestígio do CDS, com a única excepção do muito bom discurso
do Presidente do partido, que salvou o dia e ganhou a moção de confiança.
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