Um vento de estalinismo cultural
A técnica é conhecida. Chamemos-lhe “escandalização”. Um exemplo ajuda a compreender. Imaginemos uma praia cheia de gente. Alguém desata a gritar: “Cuidado! Cuidado! Vai a cair, vai a cair. Fujam! Fujam!” Se os mais próximos desatarem a fugir, gritando “Vai a cair”, “Fujam”, enquanto continuam os berros “Cuidado! Cuidado!”, é certo e sabido que se gerará uma onda de pânico. Todos a fugir desordenadamente, sem saber de quê, terminando em desgraça.
A escandalização é um fenómeno deste género, mas na má-língua social. Alguém agarra num facto banal ou declarações triviais e lança-os para a multidão, gritando “Escândalo! Escândalo!” e questionando “Já viram o que este fez?”, “Ouviram bem o que ela disse?” Se conseguir primeira página, temos escândalo garantido, por maior que sejam a banalidade da coisa e o direito de a fazer ou dizer. As pessoas apreciam o crocante dos escândalos, gostam de ecoá-los, repetindo-os, acriticamente, embrulhados em muitos “Oh!” e muitos “Ah!”. Com vento leste de feição, ganham outras primeiras páginas e alcançam editoriais.
O primeiro acto recente do vento de loucura que varre Portugal é uma escandalização deste tipo: agarrou no Prof. Caupers para atingir o juiz Caupers. Pescou um escrito do professor para seus alunos e arremessou-o, em excertos seleccionados, contra o Presidente do Tribunal Constitucional, bramando a acusação maldita do auto-de-fé: “homofobia”!
É claro que o velho texto não suporta a acusação, sendo até fonte de não-discriminação. O autor escreveu: “não sou adepto, nem pratico, nenhuma forma de discriminação, contra quem quer que seja. É-me indiferente que os meus amigos sejam homossexuais, heterossexuais, católicos, agnósticos, republicanos ou monárquicos. São minorias que, como tais, devem ser tratadas com dignidade e sem preconceito, tanto pelo Estado, como pelos outros cidadãos.” Irrepreensível. Mas, lançado o “escândalo”, as pessoas vão atrás. Só um contra-grito com eco suficiente poderia desmontar a coisa, mostrando o óbvio: “O escândalo vai nu”.
O moto político – cercar e condicionar o Presidente do TC – logo ganhou velocidade. A primeira notícia esclarecia o móbil do problema: o Tribunal irá apreciar em breve a constitucionalidade da lei relativa à autodeterminação da identidade de género. Eis o que explica as pressões movidas para obter um juiz-presidente policiado e sob rédea curta. A ILGA, por exemplo, contrastou passagens do texto do Prof. Caupers com o art.º 13.º da Constituição, mas não esboçou qualquer movimento para mostrar onde é que o texto de Caupers ofende o princípio da igualdade e da não-discriminação. Em parte nenhuma! Como poderia o juiz que é o máximo defensor dos direitos e liberdades abdicar dos seus como cidadão? Já li três vezes o texto original do Prof. Caupers de que tudo foi largado e não encontro qualquer fundamento válido para este ataque. Pelo contrário, cada vez que o li o achei ou mais banal, ou mais justo. Façam a mesma experiência que eu (leiam três vezes) e vejam se chegam, ou não, à mesma conclusão. Tendo Caupers declarado respeito por todos, alguém pode, com razão, discordar desta afirmação: “os homossexuais não são nenhuma vanguarda iluminada, nenhuma elite”? Quem se chega à frente a proclamar que os homossexuais são uma vanguarda iluminada ou uma elite?
A romaria escandalizada andou de jornal em jornal, como as pombinhas da Cat’rina de mão em mão. Sem atentarem no vazio, nem cuidarem (ou talvez cuidando) de se estar perante evidente manobra política e poderoso movimento censório, ofendendo os valores e códigos invioláveis da liberdade de expressão, que são a massa e o sal (e a pimenta também) da imprensa livre.
Enfim, a coberto da ventania mediática, o PAN prestou-se ao passo que faltava: avançou para o golpe de Estado, exigindo ao juiz ir responder na Assembleia da República. Ai liberdade! Ai separação de poderes! Ai independência dos tribunais! Ai democracia! Ai Estado de direito!
Pela mesma altura, a morte do Tenente-Coronel Marcelino da Mata desencadeou vendaval semelhante de difamação e calúnia post mortem. No meio das homenagens oficiais, devidas a um militar altamente condecorado, muito admirado por camaradas de armas e estimado por companheiros combatentes, a esquerda mais radical tudo fez para o denegrir e manchar. Alguém acredita que as imputações levantadas pudessem ter estado escondidas durante 47 anos depois de a guerra acabar? Alguém acredita que “toda a gente sabia” do infamante e Spínola, Otelo, Fabião, Almeida Bruno, Matos Gomes, Duran Clemente, Eanes, tantos outros, calassem? Que dignidade há em esgrimir o Facebook (com sólida reputação de fake news) para lançar calúnias? Que justiça é essa de fuzilar – sem contraditório, nem julgamento – a honra e a memória de um valoroso militar português? Parece terem estado à espera de que morresse para não poder responder e metralharem-no à vontade. Cobardia e indignidade!
Nesta onda ultramarina, o vento de loucura passou a soprar sobre os Descobrimentos. Tinha de ser: foram as Descobertas que nos misturaram brancos e negros – e ainda bem – e também índios, indianos, chineses e timorenses. Marcelino da Mata veio daí: foi dos que gostou da nossa bandeira e do nosso hino. Não só lutou por ambos (hino e bandeira) como morreu com ambos vestidos. Merece a nossa gratidão e solidariedade. Mas quem não gosta dele tem de detestar aquilo que o fez nosso. Surge um deputado do PS a sugerir a demolição do “mamarracho do Padrão dos Descobrimentos”. Logo seguida pela líder parlamentar do PAN que quer remover os painéis do Salão Nobre de S. Bento, em assumido movimento de “revisionismo”. Uma vergonha.
Teremos de exigir a demolição de todos os Arcos de Triunfo que representam triunfos hoje incorrectos: no delicado dizer da deputada Inês Sousa Real, “que em nada espelham os valores da actualidade”. Comecemos pela exigência europeia de destruir o Arco do Triunfo, nos Campos Elísios, em Paris, que ofende o espírito da União Europeia, por celebrar as vitórias de Napoleão, isto é, a dor de tantos povos europeus agredidos. Macron que tenha paciência. Há que concluir Waterloo. Arrase-se o Arco! Libertemos a memória. Importa passar a cilindro Miróbriga, em Santiago de Cacém, pois as ruínas não chegam. É preciso reduzir a pó essa chaga humilhante da ocupação romana e, no campo restituído à natureza, semear tremoço e tremocilha, algum centeio e, nas encostas, esteva. Já nos basta ter de falar a língua deles, num crioulo que nos chegou, a que chamamos português. Mas não deixaremos pedra sobre pedra das pedras dos romanos. Vingaremos Viriato! Isto é só o começo. Tenham medo. Muito medo.
Rola, ainda, o arrastado caso inacreditável das duas crianças de Famalicão e seus pais, perseguidos pela intolerância inconstitucional do Ministério da Educação, que não quer respeitar a liberdade de ensino, a liberdade de consciência e o primado dos pais na educação dos filhos. Aquela família quer – e não abdica. Faz bem.
Este vento de loucura não é loucura. É um movimento político deliberado. Ao vento, podemos chamá-lo de estalinismo cultural. Garrotear o pensamento. Estrangular a sua expressão. Fuzilar a memória. Desenraizar-nos. Apagar a História, como na foto de Trotsky. Destruir ou esconder seus registos e seus símbolos. Apoderar-se das novas gerações. Colocar-nos nas mãos de um novo senhorio moral e cultural, com sua novilíngua. Não é uma mão invisível, que se movimenta pelos livres movimentos da liberdade. É uma mão visível, com comando férreo, correia e chicote.
Lembram-se do poeta? “Ninguém pode cortar a raiz ao pensamento.” Eles já esqueceram. Ou nunca souberam. Andaram sempre a enganar. E a mentir.
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