Eleições justas, eleições verdadeiras


1. Quando um dia se fizer a história de como chegámos ao pântano em que nos atolámos, o sistema eleitoral figurará como circunstância principal. A forma como o sistema partidário, nos partidos de poder, se apoderou do sistema proporcional e aprendeu a manipulá-lo, constitui o contexto dos males que cresceram e da incapacidade para os vencer. Caciquismo, interesses de negócios e doentia tribalização, favoreceram a consolidação de oligarquias cristalizadas ou tiranetes que tudo foram submetendo sob aparência democrática. Capturados os partidos, é fácil capturar a democracia pelo poder na formação das listas. Chegadas as eleições, o povo vota entre partidos, não representantes. Ou seja, o povo não escolhe, carimba.

Assim caminhámos de eleição em eleição até à troika final, no meio da corrupção endémica no sistema público e no sistema financeiro. Ainda aí estamos, dançando à beira do precipício. Só sairemos de vez, se, além de sanear o sistema, o reformarmos para não voltar às rotinas do desastre.

A maioria já se deu conta. Ouvimos a rua. Vemos a abstenção. Os portugueses votam com os pés: afastam-se das urnas. 


2. É urgente passar do tempo do descrédito ao tempo da mudança. No Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade, cremos que é aqui que estamos. Há que mobilizar para um novo desenho do sistema eleitoral que devolva poder à cidadania, reponha a confiança e salve a democracia. Importa vencer fantasmas e falsidades que as oligarquias instaladas usam para confundir as pessoas e prolongar a captura.

O sistema que defendo, no quadro da Constituição, é um sistema proporcional inspirado no modelo alemão, mas melhorado – um sistema misto, que, na minha proposta, teria círculos eleitorais de três níveis: círculos uninominais de base, círculos plurinominais regionais e um círculo nacional, também plurinominal.

É essencial desmistificar o “papão” dos círculos uninominais num sistema que é misto. Há quem reaja de forma epidérmica, sem pensar sequer, atacando-os como se o sistema fosse uninominal e maioritário. Não é assim: o sistema mantém-se proporcional e até melhor e mais justo do que temos hoje. Nos sistemas mistos, os círculos uninominais cumprem tão-só a função de assegurar a efectiva representatividade dos deputados, quer naqueles que são individualmente eleitos, quer no efeito político democrático que essa maré tem na formação das listas plurinominais regionais. Os círculos uninominais não decidem a composição parlamentar: a repartição dos mandatos na Assembleia faz-se rigorosamente de acordo com as percentagens das listas nos círculos regionais.

Imaginemos uma área regional a que coubessem 20 deputados. Será subdividida pela metade, em 10 círculos uninominais. Cada eleitor vota para 1 deputado no círculo uninominal e para o partido no círculo regional, plurinominal, com listas de 10 deputados. Se um partido tem 20%, teria direito a 4 deputados dos 20 da região: se elegeu 2 uninominais, vai buscar mais 2 à lista; se não elegeu nenhum uninominal, vai buscar os 4 à lista; se elegeu 5 uninominais, já não vai buscar nenhum à lista e guarda esse mais 1 eleito directamente, chamado deputado supranumerário. 

Os círculos regionais, com apuramento proporcional e listas plurinominais, continuam a ser, como temos hoje, a coluna vertebral da eleição, definindo a justa representação do país, sem truques, nem manipulações. Mas recuperam a sua saúde. A articulação com os círculos uninominais, no seu interior, devolve-lhes respiração e autenticidade, contrariando a captura por aparelhismos e amiguismos.

O círculo nacional não existe no sistema alemão. Permitido pela nossa Constituição, vejo-o como modo adicional de garantir representação proporcional ainda mais rigorosa, à semelhança do círculo regional introduzido nas eleições açorianas desde a reforma de 2006. Tem efeito compensatório, corrigindo eventuais insuficiências na repartição de mandatos nos patamares inferiores. É um círculo virtual, no sentido de que não se vota para ele; os seus resultados são a soma das votações, por partido, nos círculos regionais. E, na minha tese, seria duplamente virtual, no sentido de que, embora plurinominal, esse círculo não teria listas. 

Como atribuir os mandatos do círculo nacional? Imaginemos que lhe caberia distribuir 20 mandatos. Atribuídos os mandatos da distribuição regional, uninominais incluídos, verifica-se que, considerado o globo da votação nacional, o partido A está em débito de 3, o B em débito de 5, o C em débito de 4, os D e E em débito de 2 e que há ainda quatro com direito a eleger 1 cada. Estes mandatos serão atribuídos aos mais votados não eleitos das respectivas listas regionais, dando-se preferência aos círculos em que esse partido ainda não elegera deputados. Vantagens deste sistema? Primeiro, evitar que o círculo nacional se torne na limousine onde viajam “deputados de luxo” – todos os eleitos têm de ter base e provir das listas regionais. Segundo, premiar o território.


3. Temos sido burlados na ideia de o nosso sistema assegurar boa representação. Não é verdade. Na Alemanha, partido que não alcance 5% dos votos não elege para o Bundestag. Em Portugal, esta regra seria inconstitucional – e ainda bem. Mas, na prática, o nosso sistema é muito pior, em larga parte do território, por mero efeito matemático. Em Portalegre, que elege 2 deputados, partido que não tenha, pelo menos, 30% não elege ninguém. Em Bragança, Beja ou Évora, com 3 deputados cada, só com um mínimo de 25% se elege alguém. Em Castelo Branco e Guarda, com 4 deputados, ou nos Açores e Vila Real, com 5, ou na Madeira e Vila Real, com 6 deputados, quem não consiga respectivamente 20%, ou 15%, ou 11% é quase certo que fica a ver navios: votos para o lixo. E há outro efeito negativo, que a experiência confirma: por razões sociológicas ou de peso relativo, aqueles que são eleitos acima desse limiar elevado são, predominantemente, das capitais ou impostos pelos directórios, sem palavra a dizer pelo eleitor. Ou seja, também a representação territorial é afunilada.

O sistema que temos desenvolvido no Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade – um sistema proporcional com articulação justa entre círculos uninominais, círculos regionais e círculo nacional – repõe a justa e verdadeira representação democrática sob três ângulos: dos cidadãos, do território, das correntes políticas. É o que assegurará o reencontro da democracia com a cidadania e a salvação nacional em liberdade. 

Quanto mais poder efectivo tiverem os eleitores, melhor funcionarão os partidos e mais arredaremos essa hidra que é a corrupção. Porquê? Simples. Afastamos o poder de captura.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 1.Março.2017


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