Eutanásia: a hora do povo


Há alturas em que é imperativo lembrar à esquerda, que tanto gostava de fazer “grandoladas” contra Pedro Passos Coelho, o mote de Abril: “o povo é quem mais ordena”. Será que esqueceram? Será que era a fingir? 

A semana começou com o Acórdão do Tribunal Constitucional que mandou para trás a lei da eutanásia. Ponto final. Os autores da lei desdobraram-se, logo a seguir, em comentários laterais, exercícios de adivinhação sobre eventuais possibilidades futuras de outras ideias poderem passar. Assim mostraram não encaixar o essencial do Acórdão. É este: “o Tribunal decide, com referência ao Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do seu artigo 2.º, n.º 1 (que definia a “antecipação da morte medicamente assistida não punível”); e, em consequência, pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º do mesmo Decreto.” Ou seja, o texto de lei votado pela Assembleia da República… chumbou! Ponto final.

Convém responder de modo democrático à decisão do Tribunal Constitucional. Ter um pouco de modéstia e humildade e ouvir, de facto, quem manda. Assim como os tribunais administram a justiça em nome do povo – di-lo a Constituição – a Assembleia deve ler bem e escutar quem a elege: o titular do poder democrático, o povo. Sem isto, mais nada.

Os partidos andaram, na maioria, muito mal no tratamento político de uma matéria de tão grande importância e sensibilidade. Já seria uma questão exclusiva da titularidade individual do mais profundo da nossa consciência pessoal por se tratar da vida e da morte. Mas é ainda mais do que isso: é uma questão da hora da morte, uma questão do sofrimento, a questão da última partida, a questão de que não há regresso, a questão de que um engano não tem remédio, a questão final, definitiva. E é também um problema axial do nosso sistema de valores constitucional e da ordem colectiva.

É pura banalidade dizer que o direito à vida não é um dever de viver em quaisquer circunstâncias. Claro que não é. Temos o testamento vital, temos o repúdio do encarniçamento terapêutico ou distanásia, temos os cuidados paliativos e outras respostas. E temos já a morte assistida. A morte assistida é mesmo um dever moral, familiar, social, médico: assistir o doente, o idoso, o moribundo. 

Não nos baralhem a ética social e comunitária. Não confundam morte provocada (o acto de matar, alegando compaixão) com morte assistida: a morte daqueles que, nos últimos meses ou dias de vida, são acarinhados por familiares e amigos e cuidados pelos médicos, enfermeiros ou cuidadores. 

A maioria dos partidos quiseram fintar o povo, furtar à cidadania a questão da eutanásia. Se exceptuarmos o PCP e o CDS, contrários à mudança da lei actual, apenas o BE e o PAN apresentaram nos programas eleitorais a eutanásia em determinadas condições. Todos os outros – PS, PSD, PEV e os novos IL e Chega – tinham obrigação de declarar a sua posição nas eleições e não o fizeram. A situação é pior nos dois maiores partidos: o PSD, porque o líder tem posição diferente da maioria do partido; o PS, porque escondeu a intenção a fim de tentar alcançar a maioria absoluta que buscava.

Democracia não é conversa, é decisão. Estes partidos feriram gravemente a legitimidade política do Parlamento para decidir a eutanásia. E quase todos fizeram pior ainda, mais tarde, ao recusarem o referendo proposto por uma petição popular de 100.000 subscritores. Que democracia é esta? Onde está o povo que mais ordena?

O acórdão do Tribunal Constitucional dá nova oportunidade à democracia. Numa alternativa, a Assembleia espera pelas próximas eleições legislativas e todos os partidos declaram, aí, nos seus programas o que querem. Na outra, convoca oportunamente um referendo por se tratar de uma questão de consciência, que é indelegável, devendo ser pessoalmente expressa pelos cidadãos.

Em democracia, é assim. Esta é a hora do povo.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade

DIÁRIO DE LEIRIA
DIÁRIO DE AVEIRO
DIÁRIO DE COIMBRA
DIÁRIO DE VISEU

19.Março.2021

Comentários

Mensagens populares