Nem Estado-padrasto, nem a escola como quintinha
Parece impossível. Se não lesse nos jornais, não acreditaria que, num Estado democrático e de Direito, isto pudesse acontecer.
Li, há dias, que a Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo pediu clarificação pelo Governo “a propósito da aprovação, em Conselho de Ministros, de uma resolução que permite às escolas públicas e ao sector solidário efectuar despesas na realização de testes rápidos de antigénio à Covid-19”, deixando de fora alunos e professores das escolas do sector particular e cooperativo. A AEEP “avisou que não se conformará com uma ‘inaceitável discriminação’.”
Apesar de se tratar deste Ministério da Educação, custou-me acreditar que pudesse ser verdade. Na Covid? Em medidas básicas de prevenção sanitária? Tendo como destinatários crianças e jovens? Tratando-se de professores em qualquer lado? Sendo medidas de saúde pública? Depois de tudo aquilo que temos sofrido? Nãaaa… Não podia ser verdade.
Fiz umas buscas. É verdade.
Encontrei a primeira notícia. E o Comunicado do Conselho de Ministros é cristalino: “O Conselho de Ministros aprovou uma resolução que autoriza a realização de despesa, por parte da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares e do Instituto da Segurança Social, I. P., com a aquisição de serviços de realização de testes rápidos de antigénio em estabelecimentos de educação e ensino públicos e em respostas sociais de apoio à infância do setor social e solidário, até ao montante global de €19.802.880,00. O Governo pretende preparar a reabertura gradual e sustentada das atividades presenciais, dando continuidade à Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2.”
Clarinho, clarinho. Para o governo, uns são filhos, outros enteados. Se estás em escolas públicas ou sociais, tens. Se estás em escolas particulares ou cooperativas, não tens. Intolerável! Violação grosseira do princípio da igualdade e da Constituição.
Este governo tem tido, desde 2015, no Ministério da Educação, a crónica mais pesada de visão fechada, como se as escolas do Estado fossem quinta privativa, às vezes para recreio ideológico. Nunca vi tão mau, nem no tempo do PREC. A escola pública é o contrário dessa visão fechada e de quintarola. O governo tem de compreender e abraçar todas as escolas, incluindo as que não são do Estado, nas políticas públicas de educação e de ensino. Se não, as escolas não são públicas, mas privadas. Não pode discriminar. A escola é demasiado importante – importante para Portugal, para as crianças e jovens e para as famílias – para poder ser usada como brinquedo ideológico, um instrumento sectário apossado pelo “menino dono da bola”.
Desde que a pandemia começou, o Ministério da Saúde tem sido também acusado, por vezes, de discriminação contra o sector privado e até o social, em temas sensíveis da prevenção e do combate à Covid-19.
No fim disto, quando acabar e pudermos respirar, convirá fazer um livro branco – ou talvez negro – para inventariar orientações discriminatórias e erradicarmos com todo o vigor as violações do princípio sagrado do tratamento igual dos cidadãos.
Aqueles 19,8 milhões de euros para testes de antigénio – e mais euros que sejam – não são do Conselho de Ministros, não são do Estado, não são dos Ministérios, não são da DGEE e do ISS. São nossos, são dos contribuintes, que os pagamos para o melhor serviço de todos. Cada euro é nosso. Façam o favor de os usar sem discriminações: nem de crianças, nem de escolas e seus professores. Façam o favor de agir com decência.
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