A golpada (parte 3)
Esta questão concreta interessa sobretudo a filiados no CDS, como eu. Mas os problemas que o caso revela dizem respeito aos cidadãos em geral, como eu também. O que está em causa é a qualidade da democracia e o declínio ou a elevação da vida política e da autenticidade cívica no quadro do sistema partidário.
Os partidos são essenciais à democracia, enquanto instrumento de preparação e concretização das grandes escolhas pela vontade popular. Por isso, é essencial estarem à altura da responsabilidade democrática, não a degradando pela prática que adoptam. Os partidos são essenciais, mas não são donos da democracia.
O CDS caiu num vale difícil nas eleições de 2019, europeias e legislativas. Já o comentei noutras ocasiões. Este facto exigiria de todos os que dirigiam o partido nessa altura unir-se para trabalhar com a direcção que o Congresso escolhesse. Não é o que tem acontecido, o que torna mais difícil a recuperação. Pequeno é pouco; pequeno e dividido é ainda menos. As crises dos partidos nunca são culpa dos eleitores, resultam de erros próprios. Não erros ocasionais, a que ninguém escapa e que podem ser rapidamente reparáveis, mas erros estruturais de linha política ou métodos e processos que afastam apoiantes, abalam e destroem a confiança.
Os processos de disputa interna no CDS são, a par da tentação para a salada doutrinária, um dos factores que mais explicam uma grande fragilidade e quebra de atractividade. Não é o único partido de que os eleitores podem queixar-se por essa causa, mas é o que exibe a taxa mais elevada de bulhas, rasteiras e zaragatas por metro quadrado. Outros partidos, maiores, ainda poderão ter espaço para isso – embora não o recomende. O CDS já não tem.
O ano abriu com o que chamei “A golpada”, em artigo no Diário de Notícias: um ataque contra a direcção eleita há um ano, movido pelos que haviam perdido o Congresso, tentando interromper o mandato e precipitar novo Congresso; um ataque claramente inoportuno, poucos dias depois da reeleição destacada do Presidente da República, o que era um ponto a favor da direcção em funções.
A direcção convocou o Conselho Nacional para discutir e votar uma moção de confiança. Posto o que se passou à “A golpada (parte 2)”, que comentei no Observador: o sector atacante, mobilizado para derrubar a direcção, manobrou para obter do Conselho de Jurisdição um “parecer vinculativo”, à última hora, a fim de obrigar o Conselho Nacional a votar a moção por voto secreto. Os promotores acreditavam que, assim, conseguiriam provocar defecções no campo da direcção e, “às escondidas”, vencer. Seguiu-se o dramalhão habitual, que a comunicação social reportou com alarido e proveito, menos para o CDS. No final, o Conselho Nacional, pelos seus meios decisórios, optou pela votação secreta e a direcção venceu.
Discordo do estratagema dos “pareceres vinculativos”, habilidade que se presta a abusos e a atropelos dos Estatutos, apenas para impor orientações que, numa luta interna, visam favorecer um lado contra outro. A Jurisdição não se fez para manipular. No caso concreto, não havia qualquer norma duvidosa para interpretar, nem lacuna para preencher, como as regras do CDS exigem ser pressuposto indispensável para aqueles “pareceres vinculativos”: o parecer tem que ser necessário, realmente indispensável; se não, não tem cabimento. O parecer emitido foi feito para dar um jeito a favor do ataque à direcção, atropelando as regras do Conselho Nacional, que atribuem a este, como é normal, a competência para decidir do seu próprio funcionamento.
Por isso, decidi recorrer para o Tribunal Constitucional, para que se pronunciasse sobre o “parecer vinculativo”. A decisão saiu há um mês, pelo Acórdão n.º 162/2021. O Tribunal decidiu não se pronunciar. Mas, ao decidir e fundamentar, invocando jurisprudência anterior conforme ao “princípio da intervenção mínima”, decidiu que o parecer não é realmente vinculativo: «não se pode considerar que o parecer corresponda a uma decisão interna inapelável.» E acrescenta: «é ao Conselho Nacional, em reunião, que compete deliberar, no momento da votação do assunto relevante, acerca do procedimento a seguir.» Segundo o TC, «o Conselho Nacional de Jurisdição tem competência para indicar a interpretação devida de uma norma interna, mas não tem competência para deliberar substancialmente sobre matéria de competência de outro órgão partidário, como são as votações do Conselho Nacional do CDS-PP.»
É confrangedor verificar como, na resposta dentro do processo, citada pelo Acórdão, a Jurisdição do CDS reafirma – e até agrava – algumas das enormidades do parecer impugnado. À cabeça, mostra que não consegue perceber a diferença entre eleições ou decisões sobre pessoas (em que a regra é o voto secreto) e outras votações de exercício do mandato político de representação (em que a regra é o voto público dos representantes). Não entende a diferença, nem a razão da diferença. Nunca se interrogou porque é que, por exemplo, na Assembleia da República, todas as eleições são por voto secreto e as moções de censura e de confiança nunca foram por voto secreto e, muito menos, por voto secreto imposto. Não conheço, aliás, qualquer Parlamento do mundo em que tal aconteça. Faz-me a maior das confusões como dirigentes com larga experiência, especialmente quando se trata de advogados com prática e até docentes de direito, militam no disparate e na manipulação, induzindo o erro e a prepotência e aparentando uma ignorância que obviamente não têm. É o efeito da crença popular de que nos clubes de futebol e nos partidos o direito é outro: vale tudo. Não é assim.
A Jurisdição vai mesmo mais longe na obsessão do “secretismo”, colando-se ao pensamento maçónico de exercício do poder, que tem andado também na ordem do dia: «aquele Ilustre militante parece aderir a uma conceção perigosa e que, levada ao seu extremo, põe manifestamente em causa os mais elementares fundamentos de qualquer democracia representativa, reclamando a "vigilância" do modo como os representantes (os membros do Conselho Nacional) votam.» A Jurisdição crê que os mandatários eleitos devem poder esconder como votam nas questões políticas para que foram eleitos (incluindo as mais importantes) e que o medo de representar deve ser protegido. A Jurisdição confunde com “vigilância” o normal escrutínio democrático de qualquer representante político em democracia, vendo no eleitor não a fonte do poder democrático, mas um polícia ameaçador. Baralha planos e confunde o “princípio democrático” com o seu contrário. É de pasmar. A democracia em Portugal patina na crise profundíssima em que se atolou desde há anos, precisamente por falta de escrutínio.
Os partidos têm que arejar processos, que devem ser transparentes e sérios. Tornam-se atraentes se jogam aberto e limpo, como é indispensável a que as ideias vivam e vibrem com autenticidade e de modo genuíno. O golpismo tem sempre os dias contados; e, muitas vezes, conta os próprios dias da organização que o sofre. O escrutínio democrático é absolutamente essencial. É o sal da democracia. Todos os que o evadem acabam por perder e fazer perder.
A crise da democracia em Portugal tem muito a ver com a fuga ao escrutínio, que minou a confiança e a credibilidade. Isso é também verdade para o CDS. Sempre tive a ideia de o CDS precisar de ser um partido melhor que os outros. Os antigos diziam “CDS = Como Deve Ser”. Ainda deve haver pichagens nas paredes com esta ideia de 1974/76. Infelizmente, estamos longe.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
JORNAL "I", 23.Abril.2021
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