À justiça o que é da justiça, à política o que é da política


A frase em título é um dos maiores embustes políticos em Portugal. Não que esteja errada. Mas porque tem sido instrumentalizada ao serviço da conveniência, num sentido diferente do real e para fim contrário ao que deve cumprir.

A parte “à justiça o que é da justiça” significa que juízes, magistrados, tribunais não fazem política, só fazem direito. A justiça não fecha os olhos porque é inconveniente; e não persegue porque é conveniente. Não obedece ao poder, nem às maiorias, seja para punir, seja para esconder. A justiça é ela própria um poder, soberano, independente e imparcial. 

A parte “à política o que é da política” significa que a política não julga pessoas, nem factos no plano criminal ou noutro confiado aos tribunais, pois os juízos políticos são de outra natureza. É a outra face: a política não se substitui aos tribunais, nem neles deve intrometer-se. Certíssimo!

Porém, a frase, que é redonda e bonita, é constantemente abusada noutro sentido: a de ser proibido à política apreciar determinados factos e comportamentos, única e exclusivamente, porque estão sob apreciação judicial ou são disso susceptíveis. Esta proibição é falsa. Não faz o menor sentido. Não pode admitir-se que a fiscalização política, por exemplo, possa apreciar o acerto de um concurso público, excepto se os seus decisores forem suspeitos de corrupção. Seria paradoxo ridículo que a frase fosse o salvo-conduto político para o suspeito de uma pendência judicial.

Em democracia, nada pode impedir o juízo da responsabilidade política. Este juízo, menos exigente de pressupostos que o da responsabilidade criminal, opera no quadro de suspeita, indícios suficientes, comportamentos inexplicáveis, ou qualquer factualidade politicamente inaceitável. A grelha de prova em processo-crime deve ser muito apertada, pois, aqui, lidamos com a liberdade e outros direitos fundamentais. Não assim na política, como é óbvio, ou a política ficaria amordaçada e algemada por qualquer pendência judicial. Aquilo que é mais grave seria politicamente premiado. Não é isto que a frase diz. Nem é para esse absurdo que serve.

A decisão de Ivo Rosa, no caso Marquês, ao invadir o campo dos juízes do tribunal colectivo de julgamento, abriu, na opinião popular, um debate sobre a sua independência. Ao furtar matérias fundamentais ao julgamento, lançou esta questão: pode um juiz favorecer alguém na linha, como o povo diz, de uma “justiça” para ricos e poderosos? É uma curiosidade à esquerda que só o recurso do Ministério Público e a decisão final sobre esta guinada irão esclarecer.

Já a política ficou livre para apreciar as questões deixadas sem tutela judicial. Tudo podia ter sido já apreciado, no plano estrito da responsabilidade política, pois a factualidade do caso incide sobre matéria política, tratando-se de um ex-primeiro-ministro. E, agora, a decisão instrutória não significa inocência – em muitos pontos, pelo contrário. Por isso, convoca ainda mais a política. Seria absurdo o vazio de tudo passar sem juízo do tribunal, nem avaliação da política.

Não se trata de ponderação jurídico-criminal, mas de conhecer e avaliar se são correctos e recomendáveis as decisões de favor, a promiscuidade de interesses, os envelopes, a omissão de declaração ao fisco, a circulação de milhões, o dinheiro a rodar fora do país, tudo o que, para Ivo Rosa, tenha prescrito ou não coubesse em acusação. A responsabilidade política não tem reserva de territorialidade. E a responsabilidade política não prescreve.

Politicamente, em democracia, o que sabemos é o que ajuizamos. Os responsáveis políticos só ficarão parados se também vestirem Ivo Rosa.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 14.Abril.2021

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