Haverá leis à prova de Ivo Rosa?
Habitualmente, falamos de erro judiciário quando um tribunal condenou com grave injustiça, punindo um inocente sem razão, sendo o erro reconhecido, às vezes, muitos anos depois. Mas há-os também na inversa: casos em que o tribunal livra de responsabilidade culpados de actos criminosos.
O que o juiz Ivo Rosa fez, na decisão instrutória do Caso Marquês, em 9 de Abril, é um exemplo clamoroso de erro judiciário. É preciso tê-lo presente, ao acompanharmos o debate que, como eco deste caso, se intensificou para rever certas leis penais ou de processo penal. Independentemente do cabimento destas reformas, que devem ser avaliadas no seu mérito próprio, importa ter presente que: primeiro, só se aplicarão para o futuro; segundo, não devem distrair-nos dos erros e falhas do juiz Ivo Rosa; terceiro, por melhor que sejam as novidades, nenhuma será imune ao factor Ivo Rosa.
O juiz de instrução cometeu erros severíssimos, que devem ser estudados nas Faculdades de Direito como um caso de escola do mau. Para mim, a falta geral maior é o abuso da posição de juiz de instrução, furtando ao julgamento a apreciação de factos e de acusações que só o tribunal de julgamento - um tribunal colectivo, não um juiz singular como o de instrução - estaria em posição de avaliar, julgar e decidir. Houve gravíssimo atropelo da Justiça: negar o julgamento que é imperativo e garantia do Estado de direito. Dúvidas tendo, Ivo Rosa podia enunciá-las, mas não decidir sobre elas, pois só o tribunal de julgamento pode fazê-lo - e tem mesmo de o fazer. O julgamento é isso, a instrução não. Só pára na instrução aquilo de que, manifestamente, não há indícios suficientes.
O juiz Ivo Rosa foi ainda mais longe, impondo posições de direito gravemente lesivas do Direito. Já têm sido comentadas, mas é sempre necessário insistir.
Uma foi a grotesca explicação que apresentou para isentar José Sócrates e outros da acusação de fraude fiscal. Numa argumentação tortuosa, que de imediato suscitou chacota até entre não especialistas, sustentou que os rendimentos ilícitos não só escapam à ilicitude (como ele mesmo teve artes de fazer sumir da acusação), como escapam também à responsabilidade tributária e criminal tributária. Descobriu a porta criminosa para o Paraíso. Erro contra a doutrina e a jurisprudência, erro contra a prática corrente, erro contra a lei, erro montanhoso de torta construção mental. Chumbaria na Faculdade. Não passaria a Direito Fiscal, enquanto não corrigisse o erro.
Outra foi a montagem arrevesada da contagem dos prazos prescricionais, contando-os unicamente do momento em que o pacto de corrupção é estabelecido entre corruptor e corrompido e não do momento (cada momento) em que a corrupção é paga. Assunção Cristas escreveu já, no Diário de Notícias, um excelente artigo a este respeito: “Programar a corrupção: é preciso travar já”. E outras vozes também têm chamado a atenção para este aspecto. Se a tese de Ivo Rosa fosse seguida, passaria a ser possível corromper alguém, diferindo o pagamento para anos depois, passado já o prazo prescricional contado do acordo, assim evadindo acusação e condenação. Foi-nos servido o crime perfeito, na pasta de um engenhoso na posição de juiz.
Todas estas decisões aplicam um princípio que não existe: “in dubio pro criminale” - na dúvida, a favor do criminoso. Não se tratou de decisões “in dubio pro reo”, que, aliás, em geral não estão no caderno de encargos do juiz de instrução. Tratou-se da construção artificial de dúvidas em questões onde as não há e da definição de teses que favorecem a criminalidade tributária e o desenvolvimento impune da corrupção. Em abstracto, para fora da Operação Marquês, o juiz deste processo falou “pro criminale”. Não há lei que lhe resista. É preciso que a Justiça desmonte e desfaça esta gravíssima lesão ao nosso sistema jurídico.
Não será fácil. O último pedregulho que Ivo Rosa deixou são as 6728 páginas da decisão (seis mil, setecentas e vinte e oito!), que todos os actores processuais terão que ler e estudar daqui por diante, pesando de tal forma no curso do processo que tudo se tornará ainda mais pesado e lento, podendo mesmo acabar em prescrição definitiva.
Não. Não há leis à prova de Ivo Rosa. Juiz que escolhe decidir mal… pode decidir mal.
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