“In dubio pro” quem a gente sabe
O princípio “in dubio pro reo” é um clássico de direito penal. Um princípio tão velho que o dizemos em latim – vem já dos romanos. Princípio fundamental do Estado de direito, é da mesma família espiritual da presunção de inocência, de que é uma das vertentes, mas não se confunde com esta. Ambos mostram que a Justiça não existe para perseguir, mas para fazer justiça.
O princípio geral “in dubio pro reo” implica que o tribunal não possa condenar um acusado se mantém dúvidas sobre os factos, ou sobre a autoria, ou sobre a culpabilidade: quando assim é, deve pronunciar-se a favor do réu. É aquilo que, nas séries americanas sobre advogados e tribunais, tantas vezes ouvimos dizer: “beyond a reasonable doubt” – um tribunal só condena quando formou a sua convicção para além de dúvida razoável.
Por isto mesmo, o “in dubio pro reo” (na dúvida, a favor do acusado) é princípio que só pode operar em julgamento, no seu termo, no momento de decidir. Não opera em nenhuma outra das fases anteriores do processo.
Ouvi muitas vezes colegas que trabalham com penal defender que, na maioria das vezes, é perda de tempo requerer o debate instrutório, sendo melhor avançar directamente para julgamento – a menos que, lá está, o que se queira seja gastar tempo por alguma razão. O juiz de instrução não pode, não deve encerrar aí o processo, nem retirar parcialmente acusações, a menos que – casos raros – tenha sido feita prova inequívoca de serem totalmente infundadas e injustas, a ponto de ter ficado claro que jamais poderiam proceder em julgamento. No fim da instrução, a dúvida não funciona a favor do arguido, mas a favor do julgamento. Aqui, o princípio que podemos formular é “in dubio pro judicio”: isto é, todas as dúvidas são para ser esclarecidas em julgamento público, nos regimes com Estado de direito, em que os tribunais operam a Justiça com base na lei e em nome do povo. Seria grave desordem, se assim não acontecesse.
Vejo sempre com cepticismo e desconfiança notícias a referir com antecipação que, alegando dúvidas quanto a meios probatórios, uma decisão instrutória irá ilibar alguém total ou parcialmente, assim o fazendo escapar, no todo ou em parte, ao julgamento, que é garantia de todos: do arguido (ora quanto à culpabilidade, ora quanto à reputação) e de todos (quanto à justiça e à prevenção do crime).
Tribunal que o fizesse agrediria a ordem pública e lesaria, severamente, a confiança na Justiça. A decisão instrutória não condena, limita-se a levar a julgamento a pronúncia. O julgamento é que é o território incontornável onde todas as dúvidas têm de ser debatidas e dirimidas, permitindo julgar. Se o “in dubio pro reo” coubesse antes de propriamente se julgar, nunca poderia haver prisão preventiva, nem provavelmente qualquer medida de coacção, por se estar em fases do processo em que muitas vezes, por natureza das coisas, não há senão dúvidas – no caso, está tudo a começar.
Em rigor, nem poderia haver processo penal: como viatura sem combustível, morto pela dúvida que tem por função investigar e julgar, o processo engasgaria, pararia sempre que arrancasse. O favoritismo e a parcialidade cúmplice seriam tão evidentes que não se falaria de “in dubio pro reo”, mas de “in dubio pro” quem a gente sabe, “in dubio pro” quem a gente quer.
Nada que pudesse aceitar-se.
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