O interior e a hipocrisia



Domingo passado, o “Diário de Notícias” olhou o esquecimento do território pelo ângulo das agências bancárias. É um dos muitos ângulos para olha este vastíssimo desconsolo.

Já perdi a conta aos Congressos partidários em que ouvi lamentos e protestos pelo declínio e abandono a que tantas terras têm sido votadas; e juras de os combater firmemente. Todavia, o problema do interior (hoje, “territórios de baixa densidade”) nunca parou de agravar-se.

O problema não está na falta das regiões administrativas, mas na destruição dos distritos. Acreditei na regionalização, embora em modelo diferente (próximo das antigas províncias). Mas o agravamento dos problemas do interior foi efeito do desmantelamento dos distritos.

Portugal tinha uma malha territorial assente nos distritos: 18 no Continente. A generalidade dos serviços do Estado (educação, saúde, economia, segurança social, estradas, polícias, etc.) tinha unidades desconcentradas nas capitais de distrito. A partir de final dos anos ’80, foram concentradas nas sedes das, hoje, CCDR. Como é bom de ver, quem de 18 faz cinco não descentraliza, centraliza. Foi o que os governos fizeram: centralizaram o país, pior do que era no século XV. As cidades do interior – e outras – viram partir os polos de proximidade. Ficaram mais mal servidas. As populações foram partindo: perderam possibilidade de carreiras técnicas nas suas terras; a vida tornou-se mais difícil; as decisões ficaram mais distantes.

Dirão: ah!, mas isso é desconcentração, não é descentralização. Certo, mas importa não desdenhar a desconcentração, que tem efeito enorme na vida das populações. Em muitas áreas, as direcções distritais fazem a diferença, porque, apesar de “dependentes do Terreiro do Paço”, estão sujeitas à pressão local: andam na rua, vão aos cafés, vão à missa ao domingo, têm os filhos nas escolas, frequentam o comércio local, integram muitos filhos da terra. Além disso, como se lembrarão os mais antigos, estavam sujeitas à fiscalização dos deputados, eleitos em base distrital. A desconcentração não resolve tudo, mas também opera o principal: aproximar a administração dos administrados.

Dirão: agora, são as comunidades intermunicipais. Pode ser um caminho, aliás, com maior proximidade: os distritos são 18, as comunidades 23, se juntarmos as áreas metropolitanas. Mas, a par do que seja descentralizado, é preciso prever, em todas, unidades desconcentradas dos serviços centrais e, além disso, definir a sede de cada uma, onde fiquem os órgãos descentralizados e as unidades desconcentradas. Se não, continuaremos a arrastar os pés.

Creio que todos os dirigentes já concluíram que a regionalização perdeu condições políticas para avançar desde o referendo de 1998. Por isso, as lágrimas que choram, quando o tema é debatido nos congressos partidários ou noutros fóruns, são largamente lágrimas de crocodilo.

Há hipocrisia quando fecham os olhos à violação gritante da Constituição. Diz o n.º 1 do art.º 291.º: “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a divisão distrital.” Ora, a divisão distrital foi apagada em quase toda a administração desconcentrada do Estado. E diz o n.º 3: “Compete ao governador civil, assistido por um conselho, representar o Governo e exercer os poderes de tutela na área do distrito.” Ora, os governadores civis foram extintos, ou melhor, deixados de nomear, numa esperteza saloia para evadir a inconstitucionalidade.

Este novelo está tão emaranhado que é preciso “regressar à casa da partida”, enquanto não apanhamos o fio da meada. Mas, enquanto se discute, o interior não pode continuar à espera – e a afundar-se. Cumprir o art.º. 291.º seria benefício extraordinário para as populações. Seria formidável quando territórios como os de Viana, Braga, Vila Real, Bragança, Aveiro, Viseu, Guarda, Leiria, Santarém, Castelo Branco, Setúbal, Portalegre e Beja se vissem regressar ao mapa estrutural da Administração Pública.

Isto é ir ao encontro das pessoas. O resto é hipocrisia e conversa fiada.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 21.Abril.2021

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