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Desde os anos ’70, quando primeiro lidei com articulados e peças judiciais, não foi só a vida que mudou. Vou ser provocador. Duas mudanças tiveram forte impacto na Justiça: a abolição do papel selado e os computadores.
A arte de articular esvaiu-se. Imperava a exigência de escrever por parágrafos curtos, cada um narrando apenas um facto ou enunciando um só argumento ou conclusão. A arte era dizer muito escrevendo pouco. A arte era fazê-lo de modo directo, sem rodeios: sucinto, claro, inteligível, impressivo.
O papel selado e a velha máquina de escrever (sem corrector e com papel químico), ajudavam à frugalidade. Escrever era caro. Bom advogado era o que apresentava de modo enxuto as suas posições; e o mesmo estilo seguiam juízes e procuradores. Escrevia-se o imprescindível: o necessário e suficiente.
O fim do papel selado eliminou a penalização tributária da escrita excessiva. E os computadores concluíram a revolução que começara, tímida, com as máquinas eléctricas de escrever. Passou a ser muito fácil escrever muito: fosse escrever e corrigir textos longos, fosse a simplicidade do “copy/paste”, podendo aproveitar pedaços inteiros de um texto para o inserir noutro. No final dos anos ’90, recebi, numa acção de despejo, uma contestação de mais de 300 páginas, de que 90% eram o que chamamos “palha”. Mas havia que ler tudo. Nunca se sabe se há agulha no meio do palheiro.
Hoje, nos processos não pesa só a volumosa prova coligida ou a complexidade da tramitação; pesa o volume dos actos das partes e respectivas decisões. Com a agravante de o volume dos actos contaminar a tramitação, ocupando cada vez mais tempo do tempo dos juízes e procuradores e das outras partes. Gostaria de ver um estudo sobre a evolução média do tamanho das peças processuais nas diferentes jurisdições e o impacto no tempo de tramitação e julgamento.
Há casos célebres de acórdãos que levaram horas a ser lidos, ou peças processuais gigantes. O mais recente foram as 6.728 páginas da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa. É um enorme pedregulho processual. Não foi proferida no fim do debate instrutório. Também não nos 10 dias que o Código admite para casos complexos. Dispôs de meses para ser escrito. O resumo demorou três horas a ser lido, em 9 de Abril passado.
Fiz um cálculo ao tempo necessário para as 6.728 páginas. Quem tenha de as ler demora 11 dias, não fazendo mais nada senão ler Ivo Rosa. O cálculo é arbitrário: o tempo pode ser mais curto para quem ler mais do que 10 horas por dia ou mais de uma página por minuto; mas bastante mais lento se quiser conferir o que diz o n.º 2 do art.º 357.º ou como se articula este com a alínea b) do n.º 3 do art.º 312.º … Não surpreendeu, por isso, que o Ministério Público pedisse 120 dias para o recurso. Não surpreenderá que os arguidos peçam outro tanto para responder. Não surpreenderá se a decisão do recurso tiver dimensão quilométrica. E, assim sucessivamente, até tudo prescrever em absoluto.
Estava eu nestes cálculos, quando alguém ao meu lado perguntou: “E não é isso que se quer?” Só os factos poderão responder. Uma coisa é certa: a justiça portuguesa jaz morta, debaixo de toneladas de papel.
Em 2010, era aguardada com ansiedade a decisão do Tribunal de Justiça sobre a “golden share” do Estado Português na PT, um caso que fez correr muitíssima tinta. O Acórdão saiu a 8 de Julho, sobre o processo C-171/08. O Estado perdeu. Curioso, deixei a leitura para o fim-de-semana – acreditei que tivesse umas 300 páginas. Enganei-me: a decisão do tribunal europeu tem cerca de 20 páginas. Vinte.
Se não é limitado o tamanho das peças processuais e suas decisões na operação da justiça portuguesa, incluindo alegações, a justiça portuguesa jaz morta em sarcófagos de papel.
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