A hora da jurisdição
Um dos temas mais arruinados da vida partidária é o dos órgãos jurisdicionais. O normal é ninguém acreditar neles: são vistos como desprovidos de independência, facilmente instrumentalizáveis. O frequente é estarem ao serviço das direcções para impor e alargar o seu poder, mas também sucede porem-se ao serviço de opositores internos. É um dos factores que contribuem para o desprestígio dos partidos e o afastamento do eleitorado.
Há outro ângulo em que esta decadência tem impacto mais forte e nefasto. Tenhamos presente que os partidos e seus agentes se candidatam ao exercício do poder no Estado. O regime é democrático e de Estado de direito, com separação de poderes e independência da Justiça como princípios cardeais. Ora, a forma como se desacredita a justiça interna nos partidos, manipulando-a, tentando condicioná-la ou interferindo no seu funcionamento, diz muito mal da aptidão desses partidos para o exercício de funções de Estado. Os cidadãos podem perguntar-se: como vão eles cuidar da Justiça, se tratam deste modo a sua jurisdição?
No último Congresso do PSD, a eleição do Conselho de Jurisdição Nacional foi muito notada, após a eleição de Paulo Colaço, um militante que, segundo a crónica que correu, se candidatou uma vez, num Congresso, à frente de uma lista para a Jurisdição e nunca mais deixou de o fazer. Tantas vezes concorreu e tão genuíno se mostrou o seu propósito que ganhou simpatia geral e acabaria eleito presidente.
Cabe lembrar o que a Lei dos Partidos Políticos exige deste órgão nacional, um dos três legalmente obrigatórios: “Os membros do órgão de jurisdição democraticamente eleito gozam de garantia de independência e dever de imparcialidade.” Ora, esta jurisdição do PSD, ao surgir como “carta fora do baralho” face à eleição simultânea dos órgãos de direcção política (e, portanto, mais solto para a independência e a imparcialidade estatutárias), gerou interesse externo. Como faria, se posta à prova?
A sorte destinou-lhe um caso melindroso: uma queixa contra o Presidente do partido por desrespeito de uma deliberação do Congresso sobre a votação da eutanásia.
Não sou do PSD e não conheço suficientemente as movimentações da sua militância. E nada tenho contra Rui Rio, nem contra o PSD. Diria até que antes pelo contrário. Mas creio que a Jurisdição, no fundamental, decidiu bem e agiu melhor, neste difícil caso. Foi suficientemente verdadeira e séria para não fazer de conta, nem fingir não ver o que toda a gente viu e sabe. Revelou suficiente sageza para não cavalgar uma falta objectivamente grave, mostrando respeito pelo líder do partido. Foi séria na apreciação dos factos e moderada na sanção: líder sem sanção, líder parlamentar com advertência.
Sou de opinião que o líder do PSD fez mal, assim como os deputados que não respeitaram a votação do Congresso sobre eutanásia: não só quanto à lei, mas também na questão do referendo. Das duas, uma: ou o Congresso é o órgão máximo, ou não é. Se não é, deixem de o reunir. Se é, as suas deliberações são para acatar. É um dever político, é um dever jurídico. Não há volta a dar.
A Jurisdição, sob pena de patinhar no usual charco do descrédito, não tinha como ignorar. Decidiu com equilíbrio e, pelos ecos públicos, imagino que resistindo a fortes pressões. Com isso, conseguiu um saldo final de exigência, independência e inteligência. O que tudo concorre para outra rima: um crédito de decência. Ainda pode haver esperança para as jurisdições partidárias.
É talvez cedo para saber como o caso acabará. Mas, pela qualidade da democracia, seria bom que o PSD capitalizasse a seu favor este desempenho da jurisdição, em lugar de desmantelar o que é claramente bom e voltar ao pântano habitual. Quando há luzes que brilham, o melhor é deixá-las brilhar. E seguir por aí.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 26.Maio.2021
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