A ordem e a cornada
O Congresso do PAN teve a mudança de líder no centro, o fim das touradas como fonds de commerce e o PS como ambicionado sócio. As ambições de governo do PAN são da mesma escola de André Ventura: se este ditou os termos a Rui Rio e posicionou-se, dramático, entre a clandestinidade e os 15%, o PAN cresce para o PS, de que se vê já parceiro de governo com cerca de 3%.
Estes momentos são propícios a grandes declarações. E há frases que definem um tirano: “Não temos medo deles, no PAN pegamos a tauromaquia de caras”, disse André Silva, líder do PAN de saída. Medo de quê? “Eles”… fazem medo a quem? A verdade é outra: têm direitos que quer proibir. E reforça, fazendo títulos grossos: “Não conseguem juntar mais que 20 pessoas, incluindo o Chicão e o Ventura.” Faz parte da retórica dos tiranos amesquinhar os alvos como quase nada.
O PAN beneficia da pouca atenção que outros partidos têm dedicado à análise atenta do seu programa e pensamento. Primeiro a espelhar uma ideologia animalista, tem beneficiado da simpatia que dedicamos aos que gostam de cães e gatos, cavalos e passarinhos, porcos abaixo de leitão, coelhinhos, cordeiros e tantos outros. Eu também. Cuidar dos animais é um dos traços da nossa humanidade.
É também traço da nossa humanidade olhar os animais de maneiras diferentes e tratar deles de maneira distinta. Há animais domésticos e, dentro destes, os mais queridos, os de companhia. Há animais selvagens, alguns muito bravos. Há animais de alimento. Há animais que criamos e outros que caçamos (ou pescamos), às vezes os mesmos. Há-os de trabalho e de transporte. Há animais de desporto. Há animais de combate, como os touros. Há animais que amamos e outros de que temos medo ou repulsa, como lacraus, cobras, baratas, ratos e mosquitos, eu sei lá. Tudo isto é definido pela relação humana e dos povos com a natureza, sedimentada pelos usos e pela história. Não é igual em todo o mundo. Faz parte da cultura e deve ser vivida com inteira liberdade das pessoas – porque a liberdade é das pessoas.
Quando André Silva acrescenta que “a tauromaquia é parte da herança cultural, assim como a escravatura, a Inquisição ou a caça à baleia, legados culturais que não nos merecem saudosismo”, mostra não saber o que está a dizer. A escravatura e a Inquisição são factos históricos, mas não são legados culturais para ninguém – só se para ele. E, a seguir, quando ironiza que “a tauromaquia faz falta à cultura portuguesa como um acordeão a um funeral”, dá uma excelente ideia. Deve ser maravilhoso o acordeão a acompanhar um “requiem” ou exéquias – invulgar certamente, mas belo.
Um dos problemas dos animalistas é o lobo vestido de cordeiro. Hitler gostava imenso de animais, havendo inúmeras imagens dele com a sua cadela Blondi. Os nazis introduziram, aliás, na Alemanha a primeira legislação moderna de protecção de animais, a Reichstierschutzgesetz. E conhecem-se as mascotes de Estaline e outros tiranos soviéticos ou da história russa. Enganam muito.
A tourada, posta debaixo de fogo, tem pouco a ver com os animais e tudo com o poder. A tourada não nos faz mal, mas esse poder que quer acabar com elas ameaça-nos – e de que maneira. A toda a gente, incluindo os animalistas. A medida da liberdade é se respeitamos, ou não, as minorias.
É chocante, mas revelador, este galope vocal de uma minoria fanatizada que se associa ao patrão grande para espezinhar. Na RTP, já rola o vergonhoso ataque.
Este PS é radicalmente diferente do PS histórico de 1975. Mário Soares liderou a resistência civil contra ditaduras de ideias, de poder, de gosto. Hoje, o PS, agachado pelo poucochinho que lhe falta para a maioria, aceita mercadejar a liberdade civil e a própria liberdade cultural no mercado dos votinhos e das lentilhas.
A ordem é do PAN, a cornada é do PS.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 9.Junho.2021
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