Censura, disseram eles


O caso da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, Lei n.º 27/2021, de 17 de Maio, diz muito da decadência do sistema político: a democracia não respira com o Parlamento, nem o Parlamento com a sociedade. Há ali um circuito fechado que se torna obscuro não só para os que estamos fora do circuito, mas até para aqueles que lhe pertencem. A reforma política é precisa, entre outros efeitos, para evitar estes factos inaceitáveis: um sistema que escapa ao escrutínio externo, um sistema que ilude o próprio escrutínio interno.

É isso que mais surpreende: que ninguém desse pelo que estava a ser feito. Ninguém notou que, sob uma aparência boa e lustrosa, se instalava uma porta aberta à censura. Lembro-me de um caso de 2014 que inspirou a preparação do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade: a Lei n.º 11/2014, de 6 de Março, atacada como a lei da “eutanásia social”, porque proibia os reformados de trabalhar ainda que de graça. Ninguém dera por esta norma, perdida no meio de um articulado complexo. O escândalo só ribombou depois de publicada. Como fora possível? Falta de escrutínio externo, falha total do escrutínio interno entre pares.

Agora, António Barreto fez as perguntas certas no artigo “A Inquisição, a Censura e o Estado” no PÚBLICO: «Que se passa com os intelectuais, os jornalistas, os académicos e os artistas que não prestaram atenção a esta lei repressiva e embrionariamente totalitária (…)? Que se passa com os sindicatos, as confederações, os magistrados e as sociedades profissionais tão alheios à aprovação desta lei? Que se passa com os partidos que votaram a favor do condicionamento da liberdade de expressão e de pensamento? Que se passa com a Assembleia de deputados e o Presidente da República que não se aperceberam do que aprovaram (…)? Que se passa com os partidos que se abstiveram? Que se passa com 230 deputados portugueses, eleitos pelo povo, que não criticaram o mais grave atentado contra a liberdade de expressão desde a aprovação da Constituição de 1933? Que se passa com os cidadãos deste país que não viram o que estava a acontecer e que assim permitem que o Estado venha a ter um papel determinante na definição dos limites do pensamento e do tom da sua expressão

Não tomo isto, nem o cito, como ataque à Assembleia ou ao Presidente da República. Tenho consciência de que, se lá estivesse, mergulhado no sistema, eu próprio poderia ter sido apanhado na procissão legiferante. E, como cidadãos, quer eu, quer António Barreto também falhámos nalgum grau, embora muito menos do que os actores directos e indirectos.

Esta lei espreitou, primeiro, em 2019, na legislatura anterior, numa iniciativa do PS apresentada perto das eleições. Não tendo sido discutida, viria a caducar: era a Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital, denominação mais comedida. Seria reapresentada, com o mesmo título, em 20 de Julho de 2020, há um ano. Meses depois, a 11 de Setembro, o PAN juntou-se com uma proposta de Carta dos Direitos Digitais, designação ainda mais humilde. Há debate e votação em plenário, em 2 de Outubro, sendo os dois textos aprovados na generalidade, sem percalços: os proponentes PS e PAN votaram a favor; IL e Chega contra; e PSD, BE, PCP, CDS-PP, PEV e deputadas não-inscritas abstiveram-se (com a dep. Joacine a votar a favor do PAN).

Tudo bem, portanto. Nada saltou para o terreno do debate público. Aparentemente, nenhum partido denunciara com consistência questões graves que gerassem clamor e mobilizassem a atenção pública. Os jornalistas parlamentares (trabalhadores da matéria e especialistas do tema) também não levantaram a lebre. E a amplitude da abstenção consolidou o desinteresse.

Será interessante estudar com rigor onde estava o gato ou por onde é que entrou. O controvertido artigo 6.º já lá estava no texto do PS – não exactamente como saiu no final, mas no essencial. E os deputados da IL e do Chega logo apontaram o dedo à matéria preocupante. O deputado Cotrim de Figueiredo acusou os projectos de serem «uma desculpa mal disfarçada para aprovar instrumentos avulsos de monitorização e controlo digital por parte do Estado». E o deputado Ventura fustigou: «o Partido Socialista assumiu-se hoje como o grande censurador em Portugal, mas não conseguirá calar as redes sociais». Afinal, havia gato.

Porém, passou-se coisa estranhíssima. Na fusão dos dois projectos, consolidaram-se os aspectos melhores (os direitos digitais), mas os piores também (o controlo, a possibilidade de censura, a vigilância estatal). Estes é que deviam merecer mais atenção, pelo perigo social, cívico e político que representam. Aconteceu o inverso. O gato sumiu.

A lei deu um salto estratosférico na pompa das suas vestes, galgando para o patamar exuberante de “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”. Ena! E, com todos os 230 deputados talvez encadeados por este cartaz a néon bem luminoso, a maioria ampliou-se à quase unanimidade. Na votação final global, a 8 de Abril passado, votaram a favor PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN e as duas deputadas não-inscritas, mantendo-se PCP e PEV na abstenção, a que se juntaram ainda IL e Chega. Nem um voto contra! Como pergunta o outro: “que passou-se?” Que se passou, por exemplo, para IL e Chega terem deixado de ver, no texto final, os defeitos originais que haviam detectado na generalidade? Misterioso, na verdade.

Esta lei teria passado na inconsciência geral, se não fosse a atenção de alguns que nos alertaram, mas só dias depois da publicação em Diário da República, a 17 de Maio. A lei passou também em Belém, que não viu mal, da mesma forma que a pronúncia de várias entidades chamadas ao processo legislativo também não disparara qualquer alarme público atempado. Não foram poucas as ouvidas. A lista é longa. Sustenham a respiração: ANACOM, Associação ISOC Portugal, Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos, Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação, APEL, Associação Portuguesa de Imprensa, Associação Portuguesa de Marketing Direto, Centro Nacional de Cibersegurança, CNPD, Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior do Ministério Público, CSTAF, DECO, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, GEDIPE e FEVIP, Ordem dos Advogados, Sindicato dos Jornalistas, Sociedade Portuguesa de Autores.

A generalidade não levantou objecção quanto à questão da liberdade e da censura, o que surpreende naquelas de quem se esperaria sensibilidade e exigência na tutela dos direitos fundamentais. Ainda assim, os comentários da ANACOM, da ERC e do Sindicato dos Jornalistas mostram que os deputados legisladores não levaram a sério as observações mais sérias sobre as questões mais sérias. Compulsando os documentos destas consultas, conclui-se que o processo legislativo foi demasiado curto: tocando em matérias tão vastas e tão delicadas quanto estas, não teve tempo para amadurecer e assimilar os contributos pedidos e que recebeu de várias fontes qualificadas. E a lei tem ainda esse traço de leviandade inconcebível, ao invocar um “Plano Europeu de Acção contra a Desinformação” que não existe. Lá está: fake news!

A lei é uma boa ideia, mas convém descer à Terra: uma Carta de Direitos Digitais. É este, aliás, o seu melhor lado. Não deve misturar a consagração e garantia destes novos direitos com a introdução de restrições no exercício de direitos humanos gerais em modo digital. Não pode pôr em causa liberdades fundamentais. Não pode licenciar a censura, seja directamente, seja em regime de franchising – aqui, a lei é uma nódoa, a remover rapidamente. Além disso, precisa de amadurecer muitas questões abordadas na fase de consultas e que não foram consideradas. Em suma, o melhor seria voltar à casa da partida.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 11.Junho.2021


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