O 25 de Abril e Novembro, Otelo e a desumanidade na esquerda
O descaso e a falta de memória não podem apagar o incontornável facto estabelecido pela História: o 25 de Abril que celebramos devemo-lo ao 25 de Novembro. Devemos todos festejá-lo. Se não fosse o 25 de Novembro (ou neste ganhassem os que perderam), não haveria 25 de Abril para celebrar, mas outra coisa muito diferente, carregada de sangue e mortos, de violência, arbitrariedades e perseguições, quiçá guerra civil, decerto tirania, talvez totalitária.
Olhemos a Rússia de 1917, quando a guerra foi contexto do derrube do regime czarista. O Czar caiu na revolução de 23 de Fevereiro, abrindo a esperança democrática. Mas, em Outubro, triunfou a revolução bolchevique: afastou democratas e liberais, prendeu quase todos, exilou os restantes, engoliu a Revolução de Fevereiro. Hoje, ninguém sabe o que foi o 23 de Fevereiro. Só sobrou o 25 de Outubro de Lenine. A Revolução de Outubro gerou longa guerra civil sangrenta, prisões, assassinatos e execuções, os sovietes, o estalinismo e seu cortejo de horrores, deportações, o Holodomor na Ucrânia, décadas de totalitarismo e opressão, o Muro de Berlim e a cortina de ferro, o arquipélago Gulag, tanto mal... Ao invés, se em Outubro Lenine tivesse perdido e o governo Lvov/Kerenski triunfado, os russos talvez ainda hoje celebrassem o 23 de Fevereiro: teriam sido poupados à catástrofe e quiçá festejassem, todos os anos desde 1917, a liberdade em paz que teria raiado em Fevereiro, para ficar.
No Portugal de 1975, o PREC rolou desenfreado após o 11 de Março. Tensões enormes em crescendo, em que Otelo, com o poder político-militar do COPCON e temperamento fogoso, esteve quase sempre do lado errado: “reaccionários para o Campo Pequeno”, mandados de captura em branco, o social-democrata a virar revolucionário em Havana, o ameaçador enorme. Em Novembro, felizmente, tudo isto acabou. E pudemos voltar a “o dia inicial inteiro e limpo”, cantado por Sophia. Tudo seria perdoado, de um lado e doutro, porque triunfara a Liberdade para todos, a democracia para o país. Até que enfim.
Este “25 de Abril e Novembro” é o 25 de Abril puro. Mas se, como o Outubro de Lenine, Novembro tivesse sido vermelho (o da “revolução sempre”, dos “amanhãs que cantam”, da “morte à reacção”, dos “fascistas p’ró Campo Pequeno”), teria engolido Abril e os seus “fascistas”: Spínola, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares, Pires Veloso, Jaime Neves, Pinheiro de Azevedo, o grupo dos Nove e tutti quanti. Só ficaria o 25 da Revolução de Novembro e a narrativa épica que não deixaria de debitar. Teríamos o quê? Algo do Caribe? Uma coisa norte-africana? Sul-americana? Não estivemos longe. Talvez ainda hoje andássemos a procurar libertar-nos do medo, da violência do poder, do silêncio, do atraso, da pobreza.
Muitos companheiros apontam as contradições abundantes na natureza de Otelo, querendo proteger o seu lado bom, generoso, sonhador, perante a dureza dos factos que marcam a sua segunda história. Sabemos como, no teatro, às vezes, o personagem toma conta do actor e o arrasta. Pode ter sido isso: viver um destino para que não estava preparado e ser embriagado por ele, sob a pressão de multidões ainda mais ébrias. Pode ser. Como poderíamos defini-lo, então? Um populista! Exactamente: Otelo era um populista, essa “bête noire” dos nossos dias.
A segunda história foi escolha de Otelo, na altura em que os estampidos do PREC já se tinham extinguido. Actos do MDLP e do ELP, que muitos convocam à conversa, não servem para desculpar, mas para repudiar. E apagaram-se a seguir à acalmação. A FUP e as FP-25 foram constituídas, de modo premeditado, anos depois da acalmação – e para a destruir. Pelo terror.
Não são só os crimes das FP-25 que não podem ser esquecidos. O acto político mais condenável para a esquerda – e, em verdade, Portugal inteiro – cometido por Otelo Saraiva de Carvalho foi dar o nome “25 de Abril” a um grupo terrorista, na linha dos Baader-Meinhof, das Brigate Rosse, da ETA. Ele o fez e deu-lhe cobertura. Destroçou o bom nome do dia de que foi estratega. Ele, que, pelo papel na “revolução dos cravos”, devia, mais que qualquer outro, proteger o 25 de Abril como nome sagrado, usou-o em capacho e jogou-o trapo imundo, ao entregá-lo às “Forças Populares-25 de Abril”: na década de 1980, encheram Portugal de terror, por assaltos, roubos, ameaças, atentados à bomba, ataques à bala, dezenas de feridos, assassinatos brutais.
Dos feridos, lembro o comerciante Fernando Rolo: levou 13 tiros, ficando paraplégico; ou Manuel Amaro de Carvalho, com várias lesões permanentes. Além da execução de um FP-25 “arrependido”, lembro os mortos inocentes: os militares GNR Henrique Hipólito, Agostinho Ferreira, Adolfo Dias e Evaristo da Silva; o agente da PJ Álvaro Militão; o director-geral Gaspar Castelo Branco; dois clientes apanhados em assaltos a bancos, José Lobo dos Santos e Fernando Abreu; três empresários “condenados à morte”, Diamantino Pereira, Rogério Canha e Sá e Alexandre Souto; Nuno Dionísio, bebé de quatro meses, e a sua avó, Rosa Pereira.
Há casos de terrível crueldade. Gaspar Castelo Branco, assassinado cobardemente com um tiro na nuca, no regresso a casa. Alexandre Souto, da Marinha Grande, abatido com cinco tiros, na rua, de braço dado com a filha de 18 anos. E podemos ler, em Barra da Costa, citado por Nuno Poças, o estado em que deixaram o bebé, neto do agricultor-alvo: «amputação traumática do membro superior direito no terço médio do braço, bem como uma ferida contuso-perfurante do hemitorax e o esmagamento, com exposição e perda de massa encefálica, do crânio».
Choca ler muita esquerda gabar-se, hoje, de ter votado Otelo em 1976 e clamar luto nacional, quando muitas destas famílias, senão todas, ainda não puderam fazer o seu luto e olham, perplexas, para um Estado que parece demasiadas vezes querer pôr-se do lado dos terroristas contra as suas vítimas, gente inocente, leais servidores do Estado democrático de direito, isto é, servidores do 25 de Abril. É pura desumanidade o que esta esquerda mostra ao agir e falar assim.
A evocação de Sérgio Bruno A. Carvalho, filho de Otelo, nas redes sociais em 25 de Julho, é forte e interpela: é inquieta, sofrida, do filho que ama o pai e quer acreditar nele. Na posição humana que é a sua, é um texto magoado e abalado, genuíno. Na sua humanidade singular, destoa da desumanidade da esquerda que quer ignorar e desafia, directamente, a da esquerda cobarde a que o pai deu a mão: “Talvez um dia os cobardes que se aproveitaram dele e da sua imagem para serem amnistiados sejam ‘homenzinhos’ e digam a verdade. Que tirem o capuz.” Até lá, temos os factos conhecidos e o que, cita Nuno Poças, disse a juiz-presidente do colectivo, antes da leitura do acórdão: “não tinha dúvidas quanto ao envolvimento dos acusados na organização terrorista, mas o tribunal, pura e simplesmente, não tinha conseguido provar quem tinha feito o quê.” Eles, porém, sabem. Todos eles sabiam quem fez o quê. Enquanto viverem, podem contar.
Otelo não é o 25 de Abril. Sem diminuir o comando, houve no 25 de Abril gestos notáveis de bravura e carácter nunca manchados, que estão à altura de Sophia e da História de Portugal. A maioria lembra Salgueiro Maia – eu também. Viveu talvez a situação mais perigosa do dia, ao encontrar, ao lado do Tejo, onde havia outros movimentos, uma coluna de blindados pelo Terreiro do Paço: enfrentou-a com serenidade, coragem e camaradagem militar; de pé firme e corpo descoberto, venceu a adversidade. E geriu o momento único – momento longo e tenso – do último acto do regime deposto, primeiro acto do nascente: a passagem do poder de Marcelo Caetano para Spínola. Com tais credenciais e currículo, Salgueiro Maia não pregou ventos de ódio, não fez bandos, nem partidos, não perseguiu, nem prendeu, não abastardou o nome do dia que fizera. É sempre bem lembrado, como as datas históricas merecem e precisam.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
JORNAL "I", 30.Julho.2021
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