Aguentem-se aí, irmãs
É deprimente o Afeganistão. Chocante e deprimente. Soa a fracasso estrondoso. Está à porta o 11 de Setembro, terrível memória. Lembro-me como se fosse hoje. Parece voltarmos ao mesmo ponto de partida, vinte anos depois.
Não se previa que os talibãs tomassem o controlo total do país, incluindo Cabul, em cerca de uma semana. A queda da capital aconteceu no dia a seguir à vigorosa declaração do Presidente afegão Ashraf Ghani: “a remobilização das forças de segurança e defesa é a nossa principal prioridade”. Passadas 24 horas, o Presidente fugiu, para “evitar um banho de sangue”.
As imagens mostram os talibãs armados, pousando para as câmaras, sentados no coração do palácio presidencial; testemunhos de mulheres inquietas, assustadas, apavoradas, algumas já enterradas debaixo das burqas; os engarrafamentos nas avenidas de Cabul, com milhares a quererem fugir por onde quer que desse; cenas de pânico no aeroporto de outros milhares a correr pelas pistas, pretendendo apanhar um qualquer avião. Que raio de libertação é esta, que mete tanto medo?
São fotos, vídeos e relatos dramáticos que fustigam, dura e dolorosamente, a imagem dos Estados Unidos da América, da Casa Branca e do Presidente Biden. Simbólico, o helicóptero a evacuar pessoal diplomático da embaixada dos EUA lembra o cenário trágico de Saigão em Abril de 1975. É um fracasso devastador. Que mancha também Obama e Trump. Também envolve a NATO. Também compromete a União Europeia. Também entala os aliados em geral, como Portugal. E, no mais alto nível mundial, também responsabiliza directamente o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que aprovou, por unanimidade, as Resoluções 1378, 1383 e 1386 de Novembro e Dezembro de 2001, quando tudo começou.
A esquerda europeia e norte-americana ocupa, neste elenco, lugar de destaque. Não se cansou de sapar e desgastar o enorme esforço ocidental nos planos militar e financeiro no Afeganistão nestas duas décadas. Agora, chora lágrimas de crocodilo, enquanto, fiel a si mesmo, o campeão da hipocrisia e do cinismo, Yanis Varoufakis, incita as mulheres afegãs: “aguentem-se aí, irmãs!”
Ao ver a velocidade destes acontecimentos, ocorreu-me a frase de Mao Tsé Tung afixada pelo MRPP nos jornais de parede da cave da Faculdade de Direito de Lisboa, na minha juventude: “o imperialismo americano é um tigre de papel.” É o que os talibãs devem ter pensado por estes dias, olhando os poderosos em fuga. O Conselho de Segurança é um tigre de papel. UE, NATO, EUA – tudo tigres de papel. No saco, cabe todo o Ocidente, que sai desta crise funestamente amarrotado, mergulhado em quebra de confiança, desprestígio e descrédito, em risco de passar à História.
Honestamente, porém, não vejo como pudesse ser diferente. O erro da operação no Afeganistão é o mesmo que já sabíamos desde, pelo menos, o Vietname. Vimo-lo nalguns momentos dos Balcãs. Vimo-lo, a seguir, na invasão catastrófica do Iraque, determinada por Bush e seguidores, apoiados em argumentos fraudulentos. É possível, com apoio do direito internacional e objectivos justos, desencadear acções militares de curta duração, punitivas ou preventivas. Mas é erro colossal ficar a ocupar um país, para orientar uma reconstrução política. Esta tarefa só pode ser desenvolvida pelos próprios cidadãos, suas instituições e seus grupos sociais e políticos.
Biden está certo ao avisar que qualquer provocação dos talibãs terá resposta "rápida e poderosa" e "força devastadora, se necessário". Exactamente o mesmo que Biden, NATO, UE e outros terão que dizer face às preocupações de o terrorismo global poder voltar a ter ninho e trampolim no Afeganistão: sofrerá resposta "rápida e poderosa" com "força devastadora, se necessário". Mas não ficaremos lá. Neutralizaremos os alvos, mas o Afeganistão continuará assunto dos afegãos. Só eles o podem pôr nos eixos.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 18.Agosto.2021
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