Joacine, a censora
Construí a tese de Joacine Katar Moreira ser uma vibrante evidência do lusotropicalismo, da específica maneira portuguesa de estar no mundo, inclusiva e integradora. Uma leitura sociológica e histórica que informa correntes de pensamento português com o traço comum da multirracialidade e capacidade de abrangência religiosa. Uma teoria que, mais do que apenas leitura do passado, é sobretudo uma leitura para o futuro – e, assim, uma promessa, uma promessa radiosa.
Retirei a constatação de um episódio que marcou o começo político de Joacine. No pico da crise com o Livre, por que fora eleita e de que sairia, a deputada garantiu não “permitir” que ninguém lhe dissesse onde deve ou não estar e, referindo-se à Assembleia da República, proclamou: “Eu nasci para estar ali. E vou continuar ali. Eu não me imagino em mais sítio nenhum hoje.”
Joacine Katar Moreira nasceu em Bissau em 1982, oito anos após o fim da guerra e o reconhecimento da independência da Guiné. Que uma mulher guineense, negra, nascida num país independente, descolonizado e em paz, afirme, com convicção e firmeza, que nasceu para estar na Assembleia da República da antiga potência colonial, em Lisboa, só pode dever-se ao eco, ao rasto, ao fascínio lusotropical. Gilberto Freyre abraçaria certamente este caso como exemplo.
Este é o lado solar de Joacine. O lado lunar é o que mostra quando emparceira no populismo furioso de Mamadou Ba, francófono, nascido senegalês, que deve detestar Leopold Senghor e o seu pensamento a nosso respeito. Este lado lunar rompe, por exemplo, com Amílcar Cabral: “Nós temos uma longa caminhada juntamente com o povo português. Não foi decidido por nós, não foi decidido pelo povo português, foi decidido pelas circunstâncias históricas do tempo da Europa das Descobertas. Nós marchamos juntos. Existe toda uma ligação, não só de história, mas também de sangue, e fundamentalmente de cultura, com o povo de Portugal.”
Os fétiches do lado lunar joacínico são o Padrão dos Descobrimentos e os painéis do Salão Nobre da Assembleia da República. Logo a seguir a ser empossada, fez-se fotografar diante de um dos painéis principais e legendou a publicação: “No salão nobre da Assembleia da República, contrariando a lógica colonial e a subalternização exposta e institucionalizada do colonialismo e da Escravatura neste espaço.” A coisa caiu um bocadinho no ridículo, pois o painel nada tinha a ver com o colonialismo, África ou a escravatura: retrata a chegada de Vasco da Gama a Calecute e o acolhimento pelos emissários do Samorim.
Agora, volta à carga, querendo remover todos os painéis, depois de lhes aplicar legendas em “recontextualização” com “visão crítica da história colonial”. Censura chique e com guia mental. Compreende-se que Joacine, traumatizada pelo estrondoso engano da primeira vez que olhou os painéis, possa ansiar por legendas. Já o público dispensa ser infantilizado pela reitoria conceptual da censora. Qualquer um é livre de ver, ler, estudar, informar-se e pensar.
Os painéis não são do colonialismo, nem do Estado Novo. Representam momentos dos séculos XV e XVI. Referem-se em geral às Descobertas, o feito mais relevante da História portuguesa, extraordinário contributo para a Humanidade. Sem isso, não seríamos nós. As rotas que as Descobertas abriram rasgaram caminhos para um lado e para outro. Revelaram o mundo todo a todo o mundo. Entre muitas outras, são as rotas que nos levaram a Bissau e trouxeram Joacine para o lugar de que diz “eu nasci para estar ali.”
As cenas dos painéis estão cantadas n’Os Lusíadas. Espero que Joacine não pense que Camões era um propagandista do Estado Novo, nem proibi-lo nas escolas, escondê-lo nas bibliotecas, remover suas estátuas, cancelar o 10 de Junho.
Há quem queira expulsar a Joacine de volta à “sua terra”. Penso que escolheu bem a sua terra. Esta terra é boa, merece ser estimada. Este país e esta gente onde se acolhe é um belo país, uma boa Pátria, boa gente, cultura esplêndida, história rara e brilhante, que vale a pena conhecer e de que é magnífico gostar e amar.
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