Acuso


No final do ano lectivo de 2018/19, duas crianças que acabavam os 5.º e 7.º anos no Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, em Vila Nova de Famalicão, transitaram de ano conforme aos méritos próprios: são alunos com as mais altas classificações e comportamento exemplar.

Houvera, porém, um problema: o Tiago e o Rafael não tinham frequentado a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, por objecção de consciência manifestada pelos pais, fundada em razões protegidas pela Constituição, pela lei e por numerosas declarações internacionais de direitos humanos. Para os fundamentalistas do autoritarismo burocrático, as crianças deveriam ser chumbadas. Mas, com inteligência e sensibilidade, pedagogia e justiça, os professores decidiram o que seria normal: a passagem – e com louvor e distinção. Diz o processo aberto no gabinete do secretário de Estado Adjunto e da Educação: “os conselhos de turma analisaram a situação global dos alunos e perante o nível de excelência das aprendizagens desenvolvidas pelos mesmos (nível 5), a decisão foi de transição para o ano de escolaridade seguinte, 6.º e 8.º anos”.

Esta foi a avaliação, por unanimidade, dos conselhos de turma: “pedagogicamente cada um reunia todas as condições de transição, uma vez que foi assíduo a todas as outras disciplinas, tem um excelente desempenho escolar, revela atitudes cívicas exemplares, tem sensibilidade e é solidário para com os outros, cumpre com todas as tarefas propostas, é responsável e revela integridade nas suas acções, é rigoroso no cumprimento de todas as actividades e é autónomo.”

Os conselhos de turma interpretaram a lei, ponderaram os factos e decidiram de acordo com a competência pedagógica e a sua consciência. Constituídos por quem melhor conhece os alunos e o problema, decidiram bem: passaram-nos.

Isto enfureceu o Ministério. A partir daqui, o secretário de Estado João Costa, à frente, e o ministro Tiago Brandão Rodrigues, atrás, desencadearam sobre os órgãos do agrupamento escolar, sobre a escola, sobre os professores, sobre os alunos e sobre os pais, um longo processo administrativo em que valeu tudo: pressões, ameaças, inquirições, aceno de processos disciplinares, acosso judiciário, mobilização da CPCJ, bullying constante. Mostrando que perdeu a cabeça, o Ministério foi ao extremo de crueldade de, no ano seguinte, impor o chumbo das crianças por dois anos consecutivos: o ano lectivo 2019/20, que então terminara, e, retroactivamente, também o de 2018/19, anulando a decisão anterior.

A família e os jovens mostram apreciável solidez psicológica e moral e forte saúde pessoal e mental. Apesar do bullying ministerial, as crianças têm transitado de ano e mantêm as mesmas aptidões, classificações e comportamento de excelência que os conselhos de turma atestaram. Passam contra o ministério, amparadas apenas em recursos judiciais e medidas cautelares. Um quadro até há pouco suficiente, mas frágil, face à obsessão persecutória de governantes que não desistem de punir o justo. No termo do ano lectivo 2020/21, foi ordenado novo chumbo (o terceiro). Novo recurso judicial, nova passagem precária. Há dias, o dique judicial abriu brecha: o Tiago e o Rafael vão perder o ano, por ordem do Ministério e acção dos seus advogados. Vão recuar, à força do porrete, no seu percurso escolar.

Quem são estas pessoas, capazes de fazer isto a crianças que acossam desde os 10 e 12 anos até aos actuais 13 e 15 anos? Que monstruosidade é esta que guia o Ministério da Educação de Portugal? O ministério não tem razão. Mas, ainda que a tivesse nalguma medida, como ordena este atropelo gritante do princípio da proporcionalidade? Como aceitar que o Ministério, incapaz de combater eficazmente o insucesso e o abandono escolar, decrete o insucesso de alunos de excelência por perseguição ideológica contra a sua liberdade pessoal?

Acuso o ministro Brandão Rodrigues e o secretário de Estado João Costa de agirem para demitir os alunos da condição de estudantes, esmagando elementares critérios pedagógicos. De agirem para demitir o Tiago e o Rafael dos êxitos e do progresso escolares a que têm direito pelos seus méritos. De agirem para demitir os pais da sua qualidade de pais. De agirem para, a pretexto de ensinar a cidadania, demitirem da condição de cidadãos estas crianças e seus pais – afinal, os grandes e únicos campeões de cidadania neste caso.

Se não repararem de imediato a grave injustiça por que são responsáveis, determinando que o Tiago e o Rafael possam continuar normalmente no ano que iniciaram em 2021/22, o ministro e o secretário de Estado têm que ser demitidos, por não estarem à altura das responsabilidades e usarem o poder para perseguir.

Entre muitas outras normas aplicáveis, a Constituição diz: «Incumbe (…) ao Estado para protecção da família (…) cooperar com os pais na educação dos filhos.» É intolerável ver seguir a ideia de que incumbe ao Estado combater e perseguir pais e filhos na educação destes.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 4.Novembro.2021


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