O que só o CDS faz



Nesta legislatura, o processo de deliberação sobre a legalização da eutanásia foi recheado de peripécias e biombos. Começou por partidos principais terem, propositadamente, omitido o tema dos programas eleitorais, furtando a questão ao debate e à pronúncia dos seus eleitores. O Nobel do esconde-esconde vai para o PS, que buscava a maioria absoluta. Salvo erro, só BE e PAN o recolocaram nos programas eleitorais de 2019, após o chumbo parlamentar de 2018.

A seguir, o Parlamento rejeitou o referendo proposto por iniciativa popular de largas dezenas de milhar de cidadãos. Apesar de ser matéria que toca a consciência individual de cada um, dividindo vários partidos (sobretudo os que esconderam o tema dos eleitores), a Assembleia da República decidiu de novo contra a cidadania.

Depois, é impossível esquecer como os promotores da lei da eutanásia fizeram questão de a votar, na generalidade e várias rondas da especialidade, durante o pico mais agudo da crise Covid, quando, todos os dias, morriam milhares em Portugal, atingidos pela pandemia, e o Parlamento estava afectado no seu funcionamento normal.

Mais tarde, tendo o Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, os activistas parlamentares mergulharam o processo em câmara escura: aí iriam descobrir e produzir laboriosamente a fórmula mágica para contornar o veto do Tribunal. Meses andaram nisso, em segredo. Da substância, nada transpirou. Às tantas, final de Julho, anunciaram que o prodigioso achado fora alcançado. Nada mostraram, guardando o prodígio a sete chaves. Foi a dissolução da Assembleia da República que fez sair da gruta o novo texto das alterações: revelou-se ao mundo, à queima-roupa, em cima da sessão para que fora agendada a votação por um Parlamento já dissolvido e politicamente tombado.

Dir-se-ia que não seria possível mais manobras contrárias à transparência do processo legislativo parlamentar e democrático. Mas foi. Foi o “Público” que veio contar como o CDS as desmontou primorosamente. A notícia exibe um dedo reprovador ao “atraso” provocado pelo CDS. Não foi um “atraso”: foi a devida reposição da verdade legislativa. Não há que reprovar, mas aplaudir muito e agradecer: o CDS impediu um último logro processual.

Na fase final da redacção, à margem do que o plenário votara, a comissão de redacção atreveu-se a alterar, como se de detalhe técnico se tratasse, o texto de 23 dos 30 artigos do decreto, em todos fazendo substituir «antecipação da morte» por «morte medicamente assistida», como se fosse o mesmo. O texto da reclamação do CDS é um texto superior de qualidade jurídica. Para ser escrito, esgotou certamente os três dias de prazo que havia. Tão certeiro e contundente que triunfou por 23 a 0: o texto final parlamentar regressou à versão votada no plenário.

O uso abusivo da expressão «morte medicamente assistida» é uma velha questão, um eufemismo para camuflar uma fraude na linguagem. Já escrevi um artigo a denunciar este abuso escandaloso. É um absurdo e uma mentira o Decreto aprovado intitular-se: “condições em que a morte medicamente assistida não é punível”. A morte medicamente assistida nunca foi punida em Portugal: os meus avós, o meu pai, o meu irmão, tiveram morte medicamente assistida. Era o que mais faltava! Todos os anos, morrem assim dezenas de milhar em Portugal, dezenas de milhões em todo o mundo. O problema da eutanásia é provocar a morte – não é ser “assistida”. A apropriação da «morte medicamente assistida» é uma mascarada, um eufemismo para nos tratar como crianças a que se fantasia, para esconder a dureza da realidade. Não conheço outro país em que isto acontecesse.

Só nesta legislatura o procedimento esconde-esconde foi tão longe. Percorrendo o processo, percebe-se a escolha, já de si eufemística, da expressão “antecipação da morte”, com fonte no projecto do BE. Foi o compromisso dos activistas da lei entre textos que assumiam a verdade legal (PS: “eutanásia não punível”) e os que fugiam para a falsidade cor-de-rosa (IL, PAN e PEV: “morte medicamente assistida”).

É obviamente uma questão política de primeira grandeza, que só o plenário poderia alterar com os cidadãos a ver. O atalho de última hora pela comissão de redacção foi a derradeira manobra para esconder o fabrico real da coisa. Fosse acaso inocente, ou acto propositado, para não dar nas vistas alterar em plenário (em falsa resposta ao veto do Tribunal) 26 artigos e não apenas três, a “obra” feita acarretaria inconstitucionalidade formal e orgânica: é completamente irregular mudar a vontade legislativa substancial em etapa de mera redacção. Isto é tão evidente que choca como é que o Parlamento, casa da democracia e das liberdades, chegou a este extremo de amanuense mandão.

Há procedimentos regimentais que se têm degradado ao longo dos últimos anos, como escapar à dignidade da votação na generalidade pelo expediente da “baixa à comissão” sem votação. Uma decadência tão grande que, ao avizinhar-se a crise recente, chegou a aventar-se como expediente deixar escapar o OE sem votação. Ainda não chegámos aí. Mas, na eutanásia, no mesmo mês, fez-se pior, inaugurando uma era de a comissão de redacção avocar, às escondidas, poder legislativo próprio.

Não sabemos o que fariam o Presidente da República ou o Tribunal Constitucional se lhes chegasse um texto assim, laboratorialmente fabricado numa salinha de S. Bento. Nem sabemos se e como teriam acesso a essa evidência burocrática. Valeu o CDS, para repor ordem e saúde no processo. Sei como tudo aconteceu; e basta o essencial. A jurista que trabalhou e se dirigiu ao CDS sabe por que o fez. O deputado Miguel Arrobas, que avançou com a reclamação, fez um acto de que muitos se lembrarão por muito tempo. Pode e deve orgulhar-se disso. Assim como aquela que viu e mais trabalhou. Só o CDS tem ainda a matriz e tinha oportunidade para avançar em defesa da dignidade do processo legislativo e acautelar a verdade mínima numa lei que toca valores humanos fundamentais.

Quando tantos, enfurecidos, se movimentam para destruir o CDS, cabe realçar esta matriz e o facto que a mostra uma vez mais. E a sua importância. Não foram os que votaram a favor da lei: a esquerda (com excepção do PCP), a IL e alguns do PSD. Foi o CDS que o fez. Nem foram os que cozinharam a redacção ilegítima: todos aqueles do plenário, incluindo de novo a IL, mais o PCP e o PSD. Foi o CDS que o fez. Estive bem representado e sinto-me reconhecido.

Como cidadão, muito obrigado.

José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24.Novembro.2021

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