A calamidade do Estado e as listas de deputados
Anteontem, manhã cedo, ouvi pela rádio: “Portugal foi posto na lista negra por Hong-Kong”. Depois da entrada, o jornalista concretizou: junto com Japão e Suécia, Portugal entrara na lista de “países de elevado risco Covid-19”, daí resultando a proibição de entrada em Hong-Kong de não-residentes que tivessem estado em Portugal por mais de 21 dias.
Falando, à tarde, com um amigo macaense, retido em Portugal desde há dois anos por causa da pandemia – Macau aplica regime muito restritivo –, comentou-me que a medida de Hong-Kong fora precipitada por Portugal anunciar o “estado de calamidade”. E acrescentou que, dias antes, o primeiro-ministro doutro país asiático alertara para a “calamidade” em Portugal.
No estrangeiro, políticos, outros responsáveis e jornalistas não conhecem a nossa Constituição, nem as subtilezas jurídicas das nossas leis. Entendem naturalmente as palavras pelo seu valor facial: calamidade é uma calamidade. E, se alguém tentasse explicar-lhes que, aqui, “calamidade” é menos grave que “emergência”, julgariam estarem a querer enganá-los. O meu amigo alertava, ainda, que a opinião pública é assim mesmo: literalmente – “calamidade” que se diz é calamidade que existe. Ou seja, o aviso de altíssimo perigo fica disseminado.
Esta encruzilhada desconcertante decorre de um problema que nem Governo, nem Assembleia da República conseguiram resolver ao fim de quase dois anos: dispormos de uma lei que responda de forma capaz às exigências sanitárias de enfrentamento da pandemia. O problema foi discutido dezenas de vezes. Discutido, mas… sem resposta.
Quando, em Março de 2020, fomos confrontados com o imperativo de decretar medidas sanitárias e de segurança para fazer face à Covid-19, não havia alternativa senão fazê-lo ao abrigo do estado de emergência, aplicando pela primeira vez uma lei que data de 1986. É um dos dois quadros constitucionais que permitem a adopção excepcional de medidas que impliquem a suspensão temporária de direitos, liberdades e garantias, incluindo a sua limitação – o outro quadro é o estado de sítio.
O estado de emergência carecia de expressa renovação quinzenal. Em Maio de 2020, quando se dissipava a primeira vaga e podia aliviar-se as medidas, tornou-se evidente para todos a falta de uma lei que definisse outro quadro diferente do estado de emergência.
Essa nova lei, que poderíamos chamar “de emergência sanitária”, ou “de crise sanitária”, ou “de urgência pública em caso de epidemia ou pandemia”, poderia ser autónoma, ou uma alteração na Lei de Bases da Protecção Civil, ou na Lei de Bases da Saúde, ou da Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública. O essencial seria que definisse: a situação nova a enfrentar; o naipe de medidas que poderiam ser accionadas; a duração temporal de cada determinação concreta de medidas; e o regime da declaração de entrada nesse quadro, sua renovação e actualização.
Tornou-se evidente para todos, mas… nada se fez. Ninguém fez. Passado um ano e meio de entrada e saída no estado de emergência, e de muita conversa, continuamos exactamente na mesma. E, por isso, descaímos – é o verbo certo – para a Lei de Bases da Protecção Civil e os estados que declara do menos ao mais grave: de “alerta”, de “contingência” e de “calamidade”. Continuámos em solo escorregadio: não é só a confusão criada por chamarmos “calamidade” a situações menos graves que “emergência”, mas é também podermos estar a forçar os limites da Constituição por agirmos com leis que não levaram em conta este quadro nunca ocorrido.
A nova lei permitiria o quê? Deveria permitiria a adopção de todas as medidas adequadas a uma crise de saúde pública desta gravidade e complexidade, sem ter que entrar Constituição adentro, isto é, sem chegar ao imperativo do estado de emergência. Esta seria a maior utilidade do debate legislativo: estabelecer aquele patamar específico e clarificar tudo aquilo que, em casos destes, excepcionais e temporários, pode ser determinado para protecção da saúde e da segurança, individual e colectiva, sem colidir com a protecção dos direitos, liberdades e garantias. Esta lei estaria sujeita a fiscalização pelo Tribunal Constitucional, pelo que o regime normativo que resultasse teria a solidez e segurança jurídica indispensáveis.
Pode pensar-se que só o Governo poderia preparar essa lei. Não é assim. A competência legislativa principal é da Assembleia da República, sede por excelência do Poder Legislativo. Os deputados estão lá para isso. Os grupos parlamentares é que podiam – e deviam – tomar a iniciativa. O Governo poderia concorrer com uma proposta de lei e, provavelmente, fá-lo-ia. Na Lei do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, aprovada em 1986, a iniciativa partiu dos deputados: um projecto de lei do PS, outro do PRD. Só depois, o Governo (então, PSD) apresentou uma proposta de lei, resultando o texto final dos três contributos.
Face à pandemia, era dos deputados que a iniciativa deveria ter provindo. Os projectos de lei para iniciar o processo não necessitariam de mais de cinco ou seis artigos, identificando as questões essenciais acima indicadas. O Governo seria, então, desafiado a apresentar a sua proposta. E a lei, no final, ponderando tudo, não deveria, ainda assim, ser muito extensa: uma lei de bases, com princípios gerais. A regulamentação e a concretização viriam depois; e estas, sim, com especial pela complexidade técnico-sanitária, são competência do Governo.
O facto de, após quase dois anos de pandemia, continuarmos sem quadro legislativo próprio, é claro fracasso do Estado, imputável principalmente à Assembleia da República, enquanto braço legislativo. A responsabilidade maior é dos deputados dos partidos que, nas votações do estado de emergência votaram contra ou abstenção: Chega, IL, CDS, PAN, PCP, PEV e BE. Divergindo sempre (ou só às vezes) da necessidade do estado de emergência, tinham a obrigação de desencadear a definição alternativa do quadro ajustado a proteger as pessoas, as famílias e a sociedade da ameaça pandémica. Ano e meio foi mais do que suficiente.
A Assembleia gastou meses em curvas e contracurvas com a lei da eutanásia – ainda por cima, para fazer tristíssima figura. Mas os deputados, com o país confrontado com prolongada crise de saúde pública, não foram capazes de produzir, nem sequer de iniciar, a lei mais ajustada a fazer-lhe frente. É muito mau.
O Parlamento não pode não responder ao prioritário. A sua função não é o espectáculo político, mas o desempenho das suas responsabilidades de Estado. A primeira é legislar: legislar bem e, desde logo, legislar com oportunidade.
É fundamental que, nas próximas listas de deputados, pese também o critério das aptidões legislativas. Quando a alínea c) do artigo 161.º da Constituição fixa que “compete à Assembleia da República (…) fazer leis sobre todas as matérias”, é aos deputados que está a referir-se. As listas das próximas eleições têm de incluir candidatos capazes de responder ao que é necessário, quando está a acontecer. Se é mau o regime de “casa roubada, trancas à porta”, é muito pior quando nem assim acontece.
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