A tentação da açorda e a redundância democrática
Dois meses depois do início da crise e a um mês das eleições, é pouco claro para que vai isto servir. Tínhamos maioria de esquerda; é provável que continue, embora encolhida. A novidade poderia ser o bloco central, reunindo PS e PSD. Independentemente da forma concreta, é a ideia que baila no espírito dos dirigentes do PSD, por mais que, às vezes, procurem disfarçar; e é também a que anima outros sectores recuados dos socialistas e do PSD, além dos comentadores da área. Isso, porém, não seria bem a alternância democrática, antes mais uma redundância democrática, em modo de açorda. PS e PSD seriam vistos como duas faces da mesma coisa, ou seja, a mesma coisa. O espírito do “centrão” não é bom. Não é preciso ter muita memória para lembrar o “centrão” como a fonte do pior que aconteceu à política, à administração pública e a boa parte da economia em Portugal.
Uma parte da direita resolveu tratar unicamente do próprio quintal, esqueceu o país (se alguma vez olhou para ele) e decidiu optar pela estratégia do fracasso. Em vez de querer vencer, jogou para o empate. Condenou Portugal outra vez à maioria de esquerda, isto é, à redundância propriamente dita: saímos do mesmo para o mesmo.
Precipitada a crise inesperadamente em fim de Outubro, o que o PSD devia ter feito era convocar de novo a AD, única forma de enfrentar e vencer a maioria de esquerda. A AD histórica (com PSD, CDS, PPM e mais quem pudesse unir-se) era o único instrumento capaz de mobilizar o eleitorado para uma alternativa de governo suportada numa nova maioria. Era também o caminho que vinha na esteira das novas coligações que foram o sinal da mudança nas eleições autárquicas: Lisboa, Coimbra, Barcelos, Funchal, Portalegre, etc. Ao não o fazer, o PSD deu dois sinais claros: primeiro, não acreditar na possibilidade de vencer o PS e toda a esquerda; segundo, estar pronto para o bloco central, ou seja, governar com o PS. Chega e IL focaram-se também unicamente nos seus quintais.
O bloco central é solução má. Mas, para quem lhe veja centelha de virtude, importa perceber que será impossível. Só há bloco central se for liderado pelo PS, como já aconteceu. Nunca houve, nem haverá com primeiro-ministro PSD. Só haverá bloco central se, primeiro, se repetir a maioria de esquerda; segundo, o PS não quiser governar à sua esquerda; e, terceiro, quiser governar com o PSD. Se houvesse maioria de direita, nunca o PSD teria condições para se propor governar com o PS. E também não haverá bloco central, se se repetisse 2015: isto é, maioria de esquerda, mas sendo o PS o segundo partido – nenhum líder do PS teria condições de ser “vice” da direita, com maioria de esquerda no Parlamento.
Tudo ficou mais problemático depois das últimas declarações de António Costa, ao pedir maioria absoluta (no dizer suave de “metade mais um”) e acrescentar que, se assim não acontecer, interpretará os resultados como “voto de desconfiança” e ir-se-á embora. Ora, nada aponta para que o PS obtenha essa maioria reforçada. Continuando a seguir a entrevista de António Costa, isto significaria que Pedro Nuno Santos ascenderia à liderança do PS, enterrando de vez qualquer veleidade laranja de bloco central. Os socialistas seriam liderados mais à esquerda e teríamos possivelmente um acordo formal entre todos os seus partidos, ou seja, uma fórmula de união de esquerda mais forte do que a geringonça.
É a isto que os sábios oficiais à direita nos foram conduzindo, por entre os jogos dos vários quintalinhos – com excepção da direcção do CDS que, embora sob ataque, manteve até ao último minuto a única ideia estratégica que fazia sentido: a AD.
Os sábios acharam que basta ficar à frente do PS. É mentira; só chega vencer a maioria de esquerda. E acharam que não era necessário vencê-la. É mentira; só isso chega. E acharam que não era possível vencê-la. Claro que era possível: com a AD, como em 1979.
Tiveram a tentação da açorda, entregaram-nos à redundância.
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